quinta-feira, janeiro 31, 2008

A Origem das Religiões


Rodrigo Constantino

“A religião primitiva da humanidade surgiu principalmente de um medo dos acontecimentos futuros.” (David Hume)

O filósofo David Hume, em História Natural da Religião, trata das origens e das causas que produzem o fenômeno da religião. Hume encara todas as crenças religiosas como mero produto da natureza humana, ou seja, um resultado das paixões humanas mais primitivas e básicas, dos instintos naturais como medo e esperança. O filósofo não era ateu, e sim um deísta. Mas seus constantes ataques às crenças religiosas despertaram a ira de muitos crentes, e em 1761 todas as suas obras acabaram no Index da Igreja Católica. Mergulhando nos seus escritos, não é difícil entender o motivo: seus argumentos são poderosas armas contra a ignorância e a superstição. Sua mentalidade estava bem à frente do seu tempo, que ainda exalava extrema intolerância religiosa.

Para Hume, uma contemplação racional da natureza, com sua uniformidade, levaria à concepção de um criador único. Entretanto, ele reconhecia que “as primeiras idéias da religião não nasceram de uma contemplação das obras da natureza, mas de uma preocupação em relação aos acontecimentos da vida, e da incessante esperança e medo que influenciam o espírito humano”. Os homens seriam guiados por algumas paixões até às crenças religiosas, mas não pela curiosidade especulativa ou o puro amor à verdade, motivos refinados demais, segundo Hume, para um entendimento tão grosseiro. Hume diz: “As únicas paixões que podemos imaginar capazes de agir sobre tais homens incultos são as paixões ordinárias da vida humana, a ansiosa busca da felicidade, o temor de calamidades futuras, o medo da morte, a sede de vingança, a fome e outras necessidades”. Agitados por esperanças e medos, num cenário desordenado, os homens vêem “os primeiros sinais obscuros da divindade”.

Não escapou aos olhares atentos de Hume a característica humana de conceber todos os seres segundo sua própria imagem. Além disso, há uma tendência em transferir a todos os objetos as qualidades com as quais os homens estão familiarizados. Como exemplo, basta pensar nas faces humanas vistas na lua, as formas nas nuvens, ou a maldade e bondade que atribuímos a tudo que nos faz mal ou nos agrada, ainda que simples fenômenos naturais. Logo, a ansiedade em relação ao futuro desconhecido e a ignorância levam o homem à crença de que ele depende de poderes invisíveis, dotados de sentimentos e de inteligência. Segundo Hume, “quanto mais um homem vive uma existência governada pelo acaso, mais ele é supersticioso, como se pode particularmente observar entre os jogadores e os marinheiros”. O medo e as angústias que a incerteza gera são insuportáveis para muitos. Hume conclui que “os homens ajoelham-se bem mais freqüentemente por causa da melancolia do que por causa de paixões agradáveis”.

Uma característica que anda de mãos dadas com o medo é a adulação. O deus criado pelos homens por conta desse medo passa a ser visto como um protetor particular, e seus devotos tentarão por todos os meios obter seus favores. Transferindo as paixões humanas a este deus, os crentes imaginam que ele ama o louvor e as lisonjas também, e não pouparão nenhum elogio ou exagero em suas súplicas. “À medida que o temor e a miséria dos homens se fazem sentir mais”, diz Hume, “estes inventam, todavia, novas formas de adulação”. Os deuses criados são representados como seres semelhantes aos homens, sensíveis e inteligentes, movidos por amor e ódio, suscetíveis às oferendas e às súplicas, às pregações e aos sacrifícios. Para Hume, aqui está a origem da religião e, conseqüentemente, da idolatria. Os semideuses ou seres intermediários, por serem ainda mais familiares à natureza humana, convertem-se no principal objeto de devoção. Se os gregos tinham seus heróis semideuses, os católicos criaram seus santos.

As disputas quase sempre violentas entre as diferentes religiões foram analisadas por Hume também. Como “cada seita está convencida de que sua própria fé e seu próprio culto são totalmente agradáveis à divindade, e como ninguém pode conceber que o mesmo ser deva comprazer-se com ritos e preceitos diferentes e opostos, as diversas seitas acabam naturalmente em animosidade e descarregam umas contra as outras aquele zelo e rancor sagrados, que constituem as mais furiosas e implacáveis de todas as paixões humanas”. Como exemplos, Hume cita “o espírito estreito e implacável dos judeus”, os princípios ainda mais sangrentos dos seguidores de Maomé, e não poupa os cristãos, que teriam abraçado os princípios da tolerância por causa da “firme determinação dos magistrados civis, que se opuseram aos esforços contínuos dos padres e dos fanáticos”. Além disso, Hume considera que “os sacrifícios humanos dos cartagineses, dos mexicanos e de muitas nações bárbaras raramente superaram a Inquisição e as perseguições de Roma e de Madri”.

Apesar de deísta, Hume tinha muito receio do monoteísmo quando somado às superstições. Ele escreve: “A crença em um deus representado como infinitamente superior aos homens, ainda que seja completamente justa, é suscetível, quando acompanhada de terrores supersticiosos, de afundar o espírito humano na submissão e na humilhação mais vil, e de representar as virtudes monásticas da mortificação, da penitência, da humildade e do sofrimento passivo como as únicas qualidades que são agradáveis a deus”. Os flagelos, jejuns e covardia se tornam os meios para obter honras celestiais. Como um dos exemplos dessa inversão de valores, Hume cita o caso do Cardeal Belarmino, canonizado em 1930, que deixava as pulgas e outros insetos repugnantes grudarem nele, dizendo: “Ganharemos o céu como recompensa por nossos sofrimentos, mas estas pobres criaturas não têm mais que os prazeres da vida presente”. O sacrifício passa a ser visto como uma virtude em si. Sofrer é o caminho do paraíso.

Ainda atacando as crenças católicas, Hume afirma que “em todo o paganismo não há nenhum dogma que se preste mais ao ridículo que o da presença real, pois é tão absurdo que escapa a toda refutação”. Hume conta a piada de um comungante que recebeu, por engano, uma moeda no lugar da hóstia sagrada, e após esperar um tempo para ela se dissolver, tirou-a da boca e gritou ao sacerdote: “Espero que não tenhas cometido um erro; espero que não me tenhas dado Deus Pai; é tão duro e tão resistente que não há modo de o engolir”. Hume desabafa: “Essas são as doutrinas de nossos irmãos católicos”. Para o filósofo, no futuro provavelmente será “difícil convencer certas nações de que um homem, criatura de duas pernas, possa ter abraçado alguma vez tais princípios”. Pelo visto, esse dia ainda não chegou...

Diante de crenças tão tolas, a natureza humana e o bom senso acabam prevalecendo, na maioria dos casos. Hume diz: “Podemos observar que, apesar do caráter dogmático e imperioso de toda superstição, a convicção dos homens religiosos é, em todas as épocas, mais fingida que real, e apenas raramente e em certa medida se aproxima a firme crença e a firme convicção que nos governa nos assuntos comuns da vida. Os homens não ousam confessar, nem mesmo no seu íntimo, as dúvidas que os assaltam sobre estas questões: ostentam uma fé sem reservas e dissimulam ante si mesmos sua real incredulidade, por meio das mais categóricas afirmações e do mais absoluto fanatismo. Mas a natureza é mais forte que seus esforços e não permite que a luz obscura e pálida, surgida nessas sombrias regiões, iguale-se às impressões vívidas produzidas pelo senso comum e pela experiência”. Por esse motivo vemos carolas pregando a castidade e condenando o uso de preservativos, enquanto na prática ignoram esses absurdos. Acertam as contas depois. Afinal, somos todos pecadores mesmo!

A moral, mesmo a mais elevada, era vista por Hume como independente das religiões: “Ainda no caso das virtudes que são mais austeras e mais dependentes da reflexão, como o espírito público, o dever filial, a temperança ou a integridade, a obrigação moral, tal como a compreendemos, descarta toda a pretensão a um mérito religioso; e a conduta virtuosa não é mais que aquilo que devemos à sociedade ou a nós mesmos”. Para simplesmente pregar uma conduta moral, a religião não é absolutamente necessária. Por isso todas elas acabam criando vários dogmas absurdos. Para o crente, afinal, o que é puramente religioso é mais virtuoso. Se agir com integridade for uma demanda moral comum a todos, o religioso não pode se limitar a isso. Ele jejua ou se dá uns bons açoites, ajoelha no milho, sobe escadas de joelho, usa o cilício, qualquer coisa que, em sua opinião, tem uma relação direta com a assistência divina. Hume explica: “Por meio desses extraordinários sinais de devoção obtém, pois, o favor divino, e pode esperar, como recompensa, proteção e segurança neste mundo – e felicidade eterna no outro”.

“Tudo o que enfraquece ou perturba as disposições interiores do homem favorece os interesses da superstição; e nada os destrói mais do que uma virtude viril e constante, que nos preserva dos acidentes desastrosos e melancólicos ou que nos ensina a suportá-los”. Para Hume, “quando resplandece essa serenidade de espírito, a divindade jamais aparece sob falsas aparências”. Eis o antídoto contra as superstições. A barbárie e a arbitrariedade são “as qualidades, ainda que dissimuladas com outros nomes, que formam, como podemos observar universalmente, o caráter dominante da divindade nas religiões populares”. As religiões criam monstros, deuses cruéis que castigam, que punem, atormentando o sono dos crentes. Hume diz: “Quanto mais monstruosa é a imagem da divindade, mais os homens se tornam seus servidores dóceis e submissos, e quanto mais extravagantes são as provas que ela exige para nos conceder sua graça, mais necessário se faz que abandonemos nossa razão natural e nos entreguemos à condução e direção espiritual dos sacerdotes”.

O medo é uma arma muito eficaz no controle das pessoas. Se a religião oferece conforto por um lado, cria grilhões por outro. “A crença na vida futura abre perspectivas confortáveis que são arrebatadoras e agradáveis. Mas como esta desaparece rapidamente quando surge o medo que a acompanha e que possui uma influência mais firme e duradoura sobre o espírito humano!”

A razão humana, ainda que um privilégio de nossa espécie, não é usada muitas vezes contra as paixões mais básicas. Desta forma, as religiões prosperam. Deixo os comentários finais com este grande filósofo: “Observemos a maioria das nações e épocas. Examinemos os princípios religiosos que têm, de fato, vigorado no mundo. Dificilmente nos persuadiremos de que eles são mais do que devaneios dos homens. Ou talvez os consideremos mais uma brincadeira de macacos com a forma humana do que afirmações sérias, positivas e dogmáticas de um ser que se vangloria com o nome de racional”.

terça-feira, janeiro 29, 2008

Da Escravidão à Liberdade


Rodrigo Constantino

“Não devemos acreditar nos muitos que dizem que só as pessoas livres devem ser educadas, deveríamos antes acreditar nos filósofos que dizem que apenas as pessoas educadas são livres.” (Epicteto)

Frederick Bailey já nasceu escravo em 1818, em Maryland. Ele foi separado de sua mãe antes de completar um ano. Era apenas uma das inúmeras crianças escravas cujas perspectivas de uma vida promissora eram nulas. Seres humanos eram comprados como objetos, somente por causa da cor da pele. A Bíblia, o guia moral da época, em diversas passagens tolera a escravidão. A crença era de que os escravos deveriam continuar analfabetos, pois, como colocou o próprio Bailey, “é necessário obscurecer a sua visão moral e intelectual, e, na medida do possível, aniquilar o poder da razão”. A leitura e o pensamento crítico eram perigosos, subversivos. Mas nada disso seria obstáculo suficiente para impedir o caminho da liberdade de Bailey, que mais tarde ficou conhecido como Frederick Douglass, um dos mais famosos abolicionistas americanos.

Bailey foi trabalhar na casa do capitão Hugh Auld, e quando tinha uns 12 anos, a esposa do capitão, Sophia, quebrou as leis e ensinou o escravo a ler, impressionada com sua inteligência e aplicação. O capitão mais tarde descobriu, e, furioso, mandou Sophia parar com as lições. Na presença de Frederick, ele explicou que “um preto deve saber apenas obedecer ao seu senhor, deve cumprir ordens”. Caso ele aprendesse a ler, ficaria inutilizado para sempre como escravo. Mas o capitão havia revelado o segredo para Bailey, que agora compreendia o poder do homem branco de escravizar o negro. Mais tarde ele escreveu: “A partir daquele momento, eu compreendi qual era o caminho da escravidão para a liberdade”. Ele encontrou outras formas para aprender a ler, inclusive conversando com os colegiais nas ruas, e durante toda a sua vida, ele teve certeza de que a alfabetização fora o caminho para a liberdade. Quando ele completou 20 anos, conseguiu fugir. Tornou-se um grande orador americano, e chegou a auxiliar o governo do presidente Lincoln. Foi um dos grandes nomes na luta pela abolição dos escravos americanos.

Após a publicação em 1846 do livro The Unconstitutionality of Slavery, de Lysander Spooner, Frederick Douglass passou a ver a Constituição americana como anti-escravidão, mudando sua opinião anterior. Vários abolicionistas famosos usaram a Declaração de Independência americana para atacar a escravidão. O famoso caso Amistad de 1839 foi o primeiro no qual se apelou para a Declaração, e o ex-presidente americano John Quincy Adams fez uma defesa eloqüente dos africanos presos. Seu longo discurso diante da Suprema Corte contou com o seguinte argumento: “No momento em que se chega à Declaração de Independência e ao fato de que todo homem tem direito à vida e à liberdade, um direito inalienável, este caso está decidido”. Abraham Lincoln foi outro que apelou constantemente à Declaração para defender a causa abolicionista. O texto foi uma vez mais invocado por outro grande defensor da igualdade perante a lei, Martin Luther King Jr. Seu mais famoso discurso, sobre seu sonho de viver numa nação livre, faz alusão direta ao trecho da Declaração onde todos os homens são criados iguais, uma verdade evidente por si mesma. Outro abolicionista conhecido, David Walker, escreveu em 1823 um texto usando os trechos da Declaração, e questionando se os americanos compreendiam o que estava sendo dito ali. Apesar de alguns “pais fundadores” terem tido escravos, numa época onde isso era comum, eles plantaram as sementes da abolição, levantando a bandeira da igualdade de todos perante as leis, como um direito natural.

A luta pela liberdade feminina iria também se apoiar na própria Declaração de Independência, defendendo o direito de igualdade entre os sexos. Em 1848, na Convenção de Seneca Falls, quando Elizabeth Cady Stanton teve a coragem de pedir o empenho de todos para assegurar o voto das mulheres, Frederick Douglass foi o único homem de qualquer grupo étnico a se levantar para dar seu apoio. Ele dizia que se uniria a qualquer um para fazer o que fosse certo, e a ninguém para fazer algo errado. Elizabeth escreveu depois palavras duras contra a Bíblia, na mesma linha de Douglass, afirmando que não conhecia “nenhum outro livro que ensine tão cabalmente a sujeição e a degradação das mulheres”. Douglass não tinha boas coisas a dizer sobre os crentes:

“Afirmo sem a menor hesitação que a religião do Sul é uma simples capa para os crimes mais terríveis – uma justificativa da barbárie mais estarrecedora, uma consagração das fraudes mais odiosas e um abrigo escuro onde os atos mais sombrios, imundos, grosseiros e diabólicos dos senhores de escravos encontram a mais forte das proteções. Se eu fosse de novo submetido às cadeias da escravidão, a par dessa escravização, consideraria ser escravo de um senhor religioso a pior calamidade que poderia me acontecer. [...] odeio o cristianismo hipócrita, parcial, corrupto e escravizador desta terra, defensor do chicote para as mulheres e saqueador de berços.”

Para ser justo, vale notar que grande parte do fermento abolicionista surgiu nas comunidades cristãs, especialmente entre os quacres do Norte. O livro “sagrado” em si, como se nota, não é garantia para nada, pois pessoas imorais conseguem justificar sua imoralidade com ele. No final das contas, o que importa é o caráter dos indivíduos, seus princípios e valores morais, independente do credo, da “raça”, do sexo ou da renda. Justamente por isso a educação é tão fundamental. Não qualquer “educação”, mas uma postura crítica diante da vida, a vontade de questionar e conhecer. É preciso aprender a aprender. Deve se evitar qualquer tipo de doutrinação, de dogmas seguidos sem reflexão e questionamento. Como escreveu Carl Sagan, “os tiranos e os autocratas sempre compreenderam que a capacidade de ler, o conhecimento, os livros e os jornais são potencialmente perigosos”. Afinal, eles “podem insuflar idéias independentes e até rebeldes nas cabeças de seus súditos”. Lênin e Trotski consideravam as idéias como armas letais, e todas as nações comunistas buscaram o total controle sobre os jornais. A Inquisição católica contou com o Index dos livros proibidos.

Os senhores de rebanhos temem o pensamento independente, a grande ameaça ao seu poder. O controle sobre os corpos dos escravos não é suficiente. É preciso controlar as suas mentes também. Na verdade, controlando as mentes, nem é preciso coerção para comandar os corpos. Os ignorantes que deixam o dízimo suado de seu trabalho nas igrejas do Bispo Macedo, por exemplo, fazem isso, até certo ponto, voluntariamente. Ninguém os obriga a isso. A imensa riqueza do Vaticano contrasta com suas mensagens de humildade que conquistam os mais pobres. A maior escravidão de todas, como Frederick Douglass descobriu, é a ignorância. A chave para a liberdade é o conhecimento, obtido através da razão.

segunda-feira, janeiro 28, 2008

A Tradição em Julgamento


Rodrigo Constantino

“É mais difícil quebrar um preconceito do que um átomo.” (Albert Einstein)

Conta-se que cientistas colocaram cinco macacos numa jaula, com uma escada que dava acesso a um cacho de bananas. Assim que os macacos tentavam subir a escada, recebiam uma ducha de água fria. Quando um deles se aventurava em direção à escada, os demais batiam nele, receosos do castigo geral. Trocaram então um dos macacos, e o novato rapidamente tentou subir a escada. Foi espancado pelos outros quatro. Os cientistas foram então trocando os macacos antigos um a um, e cada novo macaco tentava pegar o cacho de bananas, mas era impedido pelos outros, inclusive os que não estavam no começo. Até que os cinco macacos presentes na jaula eram todos novatos, ou seja, nenhum deles estava presente quando a ducha fria impediu o acesso ao prêmio. Ainda assim, quando o recém-chegado se dirigiu à escada, foi impedido pelos outros. Se alguém pudesse perguntar a estes macacos porque batiam no novato, eles provavelmente responderiam: “Não sei, as coisas sempre foram assim por aqui...”.

Muitos comportamentos humanos seguem este padrão. As pessoas apenas repetem o que seus pais faziam, que, por sua vez, repetiam o que seus pais faziam, sem questionar. Tradições sem dúvida são importantes. Nossos antepassados viveram suas experiências, e de geração em geração algumas práticas foram sobrevivendo, provavelmente por terem alguma utilidade. Mas não é porque algo funcionou antes que irá sempre funcionar. O contexto muda, o conhecimento progride, as necessidades se alteram. Repetir por repetir, sem ter a menor idéia do motivo do costume, parece uma característica mais comum aos símios que aos seres humanos racionais. Os homens podem e devem questionar os seus hábitos, buscar suas origens, compreender a razão pela qual agem como agem. Muitos hábitos vistos com horror hoje eram praticados normalmente no passado. A idéia de um pai obrigar sua filha a casar com alguém por interesses políticos é repugnante atualmente, mas já foi uma prática comum. O adultério hoje se resolve com uma separação judicial e o divórcio, enquanto antigamente a adúltera poderia ser apedrejada até morrer. Algumas culturas ainda não evoluíram tanto, e mantêm resquícios desses costumes vistos como bárbaros pelas civilizações mais avançadas. Evitar o avanço dos costumes e preservar a qualquer custo o status quo, ou seja, as tradições, pode significar a estagnação no tempo, viver na barbárie. Como diz Carl Sagan:

“Nas culturas que não enfrentam desafios desconhecidos, externos ou internos, nas quais a mudança fundamental não é necessária, as idéias novas não precisam ser estimuladas. Na verdade, as heresias podem ser declaradas perigosas; o pensamento pode se tornar rígido; e podem impor-se sanções contra idéias não permitidas – tudo isso sem causar dano à sociedade. Mas, em circunstâncias políticas, biológicas e ambientais variadas e mutáveis, apenas copiar os antigos costumes já não funciona. Nesses casos, existe um prêmio para aqueles que, em vez de seguir docilmente a tradição ou tentar impingir as suas preferências ao Universo social ou físico, estão abertos para o que o Universo ensina. Cada sociedade deve decidir em que ponto no continuum entre abertura e rigidez reside a segurança.”

Sociedades conservadoras demais, que se apegam cegamente às suas tradições e evitam questionamentos, inexoravelmente ficam para trás. Povos isolados e fechados, que temem um convívio com outros povos, perdem muito em relação ao conhecimento e progresso. No passado, as nações que participavam mais do comércio com outras nações, que recebiam comerciantes do mundo todo, que estavam abertas a um intercâmbio cultural, avançaram bem mais do que aquelas encasteladas. A reclusão exaure a inspiração. O medo cria barreiras para o progresso. O tradicionalista deseja seguir seus caminhos transmitidos, enquanto o liberal quer poder seguir novos caminhos também, sem a coerção dos demais. Sociedades que não dão muito espaço para o novo, para a ousadia dos que desejam se arriscar, perdem incríveis oportunidades. Ficam amarradas às suas superstições sem um bom motivo racional.

No exemplo inicial dos macacos enjaulados, o conservador dogmático das tradições seria aquele batendo no novato sem entender o motivo, enquanto o liberal estaria questionando os motivos pelos quais não pode experimentar algo. Como Sagan diz, “libertar-se da superstição não basta para o crescimento da ciência; deve-se também ter a idéia de investigar a Natureza, fazer experimentos”. Quando tais experimentos são desencorajados pela cultura, o avanço científico fica ameaçado, como vemos atualmente na questão das pesquisas com células-tronco. O preconceito surge como um obstáculo ao progresso. E como Einstein constatou, é difícil quebrar preconceitos, ainda mais em sociedades onde questionar ou mudar são coisas vistas como perigosas.

Romper tradições por si só não diz nada sobre ser ou não algo desejável. É evidente que existem tradições boas, que devem ser seguidas. Elas foram criadas, para começo de conversa, por algum motivo, e este ainda pode ser adequado. Mas só há uma maneira de descobrir: questionando. Será que faz sentido, por exemplo, os indianos até hoje colocaram a vaca num altar sagrado, quando entendemos que isso foi feito por motivos de segurança no passado? O mesmo vale para a circuncisão dos judeus, ou para vários outros costumes enraizados nas diferentes culturas, que podem ter surgido por necessidades básicas numa era de ignorância, mas perderam o sentido de sua existência com o avanço do conhecimento.

Muitas vezes o costume nem teve uma origem razoável. É o caso da proibição do vinho no Islã. O único verso do Corão em que se baseia a proibição do vinho foi ditado em função de um incidente ocorrido em Medina, quando os discípulos de Maomé bebiam após a ceia. Segundo nos relata Hugh Johnson em A História do Vinho, um desses discípulos, natural de Meca, pôs-se a declamar um poema nada lisonjeiro sobre a tribo de Medina. Diante disso, outro discípulo apanhou um osso e assentou-o na cabeça do declamador irreverente. Maomé não gostou da cena, e perguntou ao Altíssimo como deveria agir para manter seus discípulos na linha. Logo veio a resposta, através do próprio Maomé:

“Fiéis, o vinho e os jogos de azar, os ídolos e as flechas divinatórias são abominações criadas por Satanás. Evitai-os para que possais prosperar. Por meio do vinho e do jogo, Satanás procura instigar a inimizade e o ódio entre vós e afastar-vos da lembrança de Alá e de vossas preces. Não vos abstereis de tais coisas?”

Os vinhos foram então, pelo que dizem os estudiosos islâmicos, despejados nas ruas. “Assim”, conclui Johnson, “uma das principais características do estilo de vida muçulmano deveu-se a uma briga (que pode ter sido ou não entre bêbados)”. O fiel que transgredir essa regra pode levar até oitenta chibatadas. Enquanto outras culturas tinham deuses para o vinho, como Baco ou Dionísio, os muçulmanos o enxergam como obra de Satanás. Tudo por causa de um poema infeliz e uma briga infantil. Eis os riscos da fé cega nas tradições, que não é monopólio islâmico.

Em suma, nenhuma tradição é valiosa somente por ser uma tradição. Tradições por si só não têm valor. O valor está na sua utilidade atual para o povo em questão. E só há uma forma de descobrir isso, que é usando a razão, julgando a tradição pela ótica do conhecimento moderno. O liberal, amigo do progresso da ciência, entende os limites da razão, mas não aceita o apelo à autoridade que inviabiliza os questionamentos e as mudanças. Hayek colocou a questão de forma brilhante: “O liberal difere do conservador em sua disposição para encarar sua ignorância e admitir o quão pouco sabemos, sem alegar autoridade de fontes sobrenaturais de conhecimento onde sua razão falha”. A tradição, se deseja ser respeitada, deve dar bons motivos para tanto. Não basta alegar ser a tradição.

O Incognoscível


Rodrigo Constantino

"A palavra ‘Deus’ não significa um conceito inteligível de forma alguma, mas refere-se, ao contrário, a um ‘algo’ incoerente que desafia nossa compreensão." (George H. Smith)

Diante da questão sobre a existência de Deus, creio que somente após uma definição mais objetiva do termo é possível esboçar uma resposta aceitável. Faz-se necessária uma descrição do que se entende por Deus antes, para depois uma resposta fazer algum sentido. Se um crente, seja no Deus que for, insiste na questão, negando-se a oferecer uma definição compreensível do termo, a discussão deve ser imediatamente cancelada. Não é possível aplicar a razão – ou mesmo a fé – sobre a existência ou não de um conceito vazio. Como George H. Smith coloca em Why Atheism?, isso seria análogo a discutir a existência de um Blictri, termo sem sentido que foi popular durante o século XVIII. Assegurar a existência de um Blictri sem explicar o sentido do termo é não dizer absolutamente nada.

Pelo fato de o termo "Deus" ser mais popular, muitos consideram desnecessário apresentar um significado para o que entendem como Deus quando perguntam sobre as crenças alheias. Mas o máximo que cada um possui é uma vaga idéia do que os outros entendem como Deus. Algo como um ser supremo, com incríveis poderes, criador do universo e exigente com os seres humanos, podendo nos castigar para sempre. Eis apenas uma das vagas noções do que muitos compreendem como Deus. Mas isso é extremamente limitado. Um debate com pilares conceituais tão frágeis está fadado ao fracasso, a uma grande cacofonia. Cada um irá emitir sua opinião sobre algo que nem sequer está bem definido. A total falta de clareza será o único resultado possível. Teremos uma Torre de Babel, com cada crente usando o mesmo termo para designar uma crença diferente. Todos acreditam "em Deus", mas no fundo, estão falando de coisas bem distintas.

O Deus de Spinoza, por exemplo, era bem parecido com o Deus que Einstein dizia acreditar, e que nos remete muito ao termo mais objetivo chamado "natureza". Einstein deixou bem claro que o seu "Deus" não era pessoal, não ligava para os seres humanos na Terra. Ora, esse Deus não tem absolutamente nada a ver com o Deus cristão, por exemplo. O Deus de Einstein parece algo como a lei da gravidade, e não faz sentido algum rezar para a lei da gravidade, ou temer uma punição severa dela, caso desobedeça a um livro "sagrado". Ainda assim, muitos crentes num Deus claramente antropomórfico gostam de repetir que "Einstein acreditava em Deus". Qual Deus? Nesse Deus muitos ateus também acreditam, mas soletram natureza.

Quando um ateu escuta que Deus é algo impossível de ser conhecido objetivamente, ele pode interpretar isso de duas formas: o crente adquiriu conhecimento sobre um ser que, por sua própria admissão, não pode ser conhecido; ou o crente simplesmente não sabe do que está falando. Normalmente, o crente parte para o ataque diante de certos questionamentos, colocando o ônus da prova no ateu e afirmando que ele não consegue enxergar Deus pois é limitado, tal como os "burros" incapazes de ver a roupa invisível do imperador. Mas apenas expressar uma crença, enquanto não é feito nenhum esforço para justificá-la com base em argumentos objetivos ou verificáveis, não é nada além de emitir um relato psicológico sobre seu estado da mente. Emoções não são instrumentos cognitivos confiáveis. Aquilo que não pode ser criticado sob a luz da razão, fica somente no campo da subjetividade. Posso dizer que acredito que a cor azul é mais bonita que a verde, mas seria irracional alguém debater sobre isso, partindo da premissa que podemos, racionalmente, concluir qual cor deve ser a mais bonita. É algo puramente pessoal, um gosto subjetivo. Afirmar que acredita em Deus e ponto final é algo análogo a isso, é uma declaração de que o sujeito gosta de acreditar em algo. Não diz nada sobre a real existência desse algo.

Há uma noção popular, ainda que absurda, de que as crenças religiosas são sacrossantas e, portanto, imune às críticas. O tom reverencial aos temas religiosos assume que automaticamente existe um privilégio especial de um respeito imerecido. Basta alguém afirmar que é uma pessoa profundamente religiosa, ou de muita fé, que se torna admirada por muitos. Mas isso não faz sentido algum. Não há nada de admirável em uma crença em si, se ela não for racional e verdadeira. Uma crença subjetiva não tem mais valor cognitivo que um sentimento. Se a pessoa deseja que suas crenças sejam levadas a sério pelos outros, deve apresentar algo a mais que sentimentos pessoais. Somente através de razões que podem ser compreendidas e examinadas por terceiros, é que uma crença pode ser objetiva. Caso contrário, é como eu repetir que sinto que existem unicórnios. Não sei explicar direito como, tampouco tenho evidências concretas. Apenas acredito. Por que deveriam levar minha crença a sério?

Os termos mais comuns normalmente atrelados ao conceito vago de Deus são "onisciência", "onipotência", "perfeito", "imutável" ou "eterno". Mas o que eles realmente querem dizer? O que seria, para nosso padrão de racionalidade, um ser onisciente? Ora, se Deus é onisciente, ele conhece a dor e o sofrimento. Pode um ser perfeito sofrer? Aliás, novamente pela ótica da nossa razão, seres perfeitos nem mesmo iriam agir! A ação humana pressupõe desconforto, desejo de mudança, que só pode ser para melhor. Num estado de perfeição, todos ficariam completamente imóveis. O que entendemos realmente por eternidade ou infinito? É essa uma idéia compreensível de fato para nós? Claro que o crente sempre poderá alegar que é um erro usar nossa razão para tentar compreender os assuntos divinos. Mas com que devemos então encarar o tema? Com a loucura? Além disso, não é com nossa razão e nossos parâmetros humanos que julgamos a benevolência divina? Dois pesos, duas medidas. Aquilo que achamos louvável, através da nossa capacidade racional, nós atribuímos a Deus, e aquilo que não entendemos ou consideramos perverso, apenas ignoramos, alegando que Deus não deve ser compreendido pela nossa razão.

Aqueles que atacam a razão humana para preservar sua fé se encontram num dilema. O revolucionário americano Ethan Allen, autor de Reason the Only Oracle of Man, colocou de forma excelente o problema:

"Aqueles que invalidam a razão devem seriamente considerar se estão argumentando contra a razão com ou sem razão. Se é com razão, eles estabelecem o princípio que se esforçam para derrubar; mas, se argumentam sem razão (o que, para ser coerentes consigo mesmos, deveriam fazer), ficam fora do alcance da convicção racional e não merecem uma argumentação racional."

Concluindo, debater sobre a existência ou não de Deus é tarefa que só faz sentido se o conceito for objetivamente definido, compreensível para os seres humanos através da razão. Caso contrário, estamos diante de algo totalmente incognoscível. Debater sobre Deus ou Blictri faria pouca diferença nesse caso. Talvez, por trás do ditado popular "religião não se discute", já esteja implícito essa noção de que não faz sentido usar argumentos racionais para debater algo irracional, que depende apenas da fé subjetiva. Fé seria como preferência por cor: cada um tem a sua, e ninguém pode convencer os demais, racionalmente, de qual é a mais bela. O racional, portanto, seria compreender isso e deixar os ateus ou outros crentes em paz, jamais tentando misturar sua fé em Deus com os assuntos mundanos.

Você acredita em Deus? Lembre-se: antes de tudo, qual Deus? Depois que o termo for devidamente explicado, podemos responder. Se for o Deus cristão, por exemplo, que me observa, mandou um mensageiro humano morrer por nós e irá me punir se eu não seguir seus mandamentos, não acredito. Não tenho motivos racionais para crer nesse Deus. Se for o Deus islâmico, que espera pelos fiéis com virgens no paraíso, tampouco. Se forem os deuses gregos, menos ainda. Se Deus for apenas uma força, energia, as leis da natureza, não é preciso falar em crença, pois temos conhecimento. Esse "Deus" existe sim, mas não faz muito sentido alguém rezar para ele ou temer seu castigo eterno. Agora, se for o Deus incognoscível, o tal ser "eterno, perfeito e imutável" que não podemos compreender, não tenho motivos para responder, pois nem o crente sabe do que está falando. No fundo, ele apenas precisa acreditar em algum Deus, pois teme ser punido caso contrário. Esse Deus, que nos é totalmente incompreensível, pode ser definido também como "tudo aquilo que foge da nossa razão". Mas isso já tem um nome, e gera bem menos confusão do que Deus, termo que cada um entende como algo diferente. A palavra que define o que não conhecemos é ignorância. Deus, o incognoscível, é apenas a nossa ignorância, nada mais.

sábado, janeiro 26, 2008

As Profecias de Nostradamus


Rodrigo Constantino

“O primeiro adivinho, o primeiro profeta foi o primeiro embusteiro que encontrou um imbecil.” (Voltaire)

A mente humana costuma partir em busca de confirmações de suas teorias mais do que em busca de fatos ou argumentos que derrubem essas teorias. Focamos mais nos acertos que nos erros. Faz parte da natureza humana, e é preciso um exercício constante, que exige esforço e atenção, para evitar essa tentação. As teorias conspiratórias, em especial, conquistam ainda mais, e qualquer pseudo-evidência é suficiente para que se tenha convicção dela. Por estas razões é que, na ciência, se busca refutar as hipóteses levantadas, em vez de confirmá-las. Como diz Karl Popper, “não importa quantos cisnes brancos você veja ao longo da vida; isso nunca lhe dará certeza de que cisnes negros não existem”. Para provar a teoria de que existem apenas cisnes brancos, é necessário buscar cisnes de outras cores, e não confirmar que só conhecemos cisnes brancos. Basta um cisne preto ou de qualquer outra cor para derrubar a teoria toda. Os “profetas” costumam explorar a tendência humana de evitar tal postura crítica, e ainda abusam de linguagem ambígua e vaga, justamente para que os crédulos possam ajustar os fatos às suas profecias.

Nostradamus é um grande exemplo disso. Sua fama de profeta com capacidade premonitória se alastra até os nossos dias, e, no entanto, seu histórico de “acertos” é sofrível. Nostradamus nasceu em 1503, e recebeu licença para praticar a medicina em 1525. Entretanto, parece que ele se sentiu mais inclinado ao ocultismo. A principal fonte de suas inspirações mágicas teria sido um livro intitulado De Mysteriis Egyptorum. Os versos de seu livro Profecias são escritos em estilo tortuoso e obscuro. Para evitar perseguição, sob a acusação de feitiçaria, Nostradamus alega ter misturado deliberadamente a seqüência cronológica das profecias, de modo que seus segredos não fossem desvelados aos não-iniciados. As roupas transparentes do imperador, não custa lembrar, só podem ser vistas pelos inteligentes. Quem não consegue ver é culpado de burrice. Nostradamus conseguiu fama com extraordinária rapidez pela França e toda a Europa, lembrando que a maior parte da população era analfabeta. As críticas partiam sobretudo dos médicos, que acusavam Nostradamus de estar aviltando sua posição profissional. Não é difícil entender o motivo.

Mas Nostradamus conseguiu coisas que os demais médicos não tinham acesso. Durante os dois últimos anos de sua vida, por exemplo, a proteção real garantiu a Nostradamus uma existência repleta de favores e honrarias. Além disso, Nostradamus conseguiu bons lucros com seus “dons”. Nostradamus teria dito: “Deus imortal e os anjos bons concederam aos profetas o poder da predição”. Mas, curiosamente, sua capacidade de conhecer o passado era bem limitada. Tomando por base os dados da Bíblia, Nostradamus fez cálculos e chegou à conclusão de que o mundo existia desde 4.757 anos antes do nascimento de Cristo. Quando é para acertar algo que já aconteceu e que temos como checar de forma objetiva, o profeta não passa de um adivinhador qualquer, que erra feio. Quando se trata de presságios, são sempre sombrios, prevendo desgraças, e de forma totalmente vaga, para permitir que as vítimas adaptem o máximo possível os fatos a estas profecias. Além disso, muitas previsões costumam ser feitas, pois até um relógio quebrado acerta a hora duas vezes ao dia. A natureza humana costuma ser atraída por previsões catastróficas, que mexem com o temor pela morte. O Apocalipse bíblico é prova disso. As projeções de Malthus também. Atualmente, temos o eco-terrorismo de certos “ambientalistas”, antecipando o fim do mundo. O Armagedon assusta, e por isso conquista.

Se alguém resolver perder algum tempo lendo algumas profecias de Nostradamus com um olhar mais crítico, verá que não dizem absolutamente nada de concreto, que possa ser checado de fato. São previsões totalmente vagas, como esta: “O líder terceiro cometerá atos mais execráveis que Nero. Quanto sangue de pessoas valentes fará correr! Ele reerguerá os fornos do sacrifício. A ‘Era de Ouro’ é uma era de morte. O novo potentado é um escândalo”. O que isso realmente quer dizer? Vários intérpretes atribuíram esses versos à Revolução Francesa. Alguns acham que ele falava de Hitler. Mas a questão é: ele realmente diz algo objetivo que possa ser julgado honestamente? Claro que não. Podemos forçar um pouco aqui, espremer um pouco ali, e adotando os conceitos que nos interessam, concluir que Nostradamus era um grande profeta, que sabia o que iria ocorrer séculos à frente. Não é mais emocionante? Sem dúvida. Mas não quer dizer que seja mais verdadeiro...

Quase todas as suas “profecias” vão à linha de catástrofes, antecipando guerras, mortes, desgraças e assassinatos. Como se Nostradamus nem vivesse numa época onde tais desgraças eram parte do cotidiano! Minha dúvida é porque ele, com tanto poder de predição, não foi capaz de antecipar coisas realmente inusitadas para a sua época. Já pensou se o “profeta” diz, com todas as letras, que uma inovação tecnológica chamada Internet irá revolucionar o mundo, reduzindo absurdamente a distância entre as pessoas? Isso sim seria algo que chamaria a minha atenção. Mas ficar prevendo guerras e assassinatos, de forma totalmente abrangente, até uma criança é capaz. E não faltarão crédulos desesperados para crer, que darão um jeito de filtrar os fatos de forma a encaixar nestas profecias. Nostradamus não foi o primeiro, tampouco o último a explorar essa fraqueza humana. Como Voltaire disse, “o mundo esteve cheio de sibilas e de Nostradamus”. Segundo o filósofo, somente o Corão conta duzentos e vinte e quatro mil profetas!

Ainda hoje, mesmo com todo o avanço do conhecimento humano, que reduziu bastante a ignorância na qual estava mergulhado o mundo de Nostradamus, não são poucos os profetas que fazem previsões fantásticas sem compromisso algum com a realidade. Tem profeta para todo tipo de gosto – e de bolso. Tem aqueles que jogam pedras, viram as cartas, observam a borra do café, lêem as mãos, apelam para a magia, observam os astros, enfim, inúmeras formas diferentes para enganar mais um coitado desesperado por conforto. O futuro incerto é fonte muitas vezes de angústia, e muitos querem comprar qualquer tipo de “controle”, ainda que claramente falso, pois o futuro é criado por nós mesmos. Tem inclusive um profeta barbudo dos mais impostores que, alegando utilizar o método científico, adotou o determinismo histórico e antecipou o fim do capitalismo! Este profeta ainda conta com muitos seguidores, normalmente nos países pobres, totalmente dominados pelas emoções, como sempre acontece quando se trata de profetas. Eles ainda esperam a profecia se realizar, mesmo que ela pareça cada vez mais distante. No fundo, é o desejo de crer na profecia que torna o profeta tão adorado. O que as pessoas desesperadas não fazem em busca de um pouco de fuga da realidade!

Vide o mais famoso escritor brasileiro, chamado pretensamente de “mago”, que chegou a afirmar que a magia era mais útil para prever os acontecimentos econômicos do que os estudos dos especialistas. Nostradamus fez escola. Vivemos num mundo onde, pelo incrível que pareça, figuras pitorescas como Walter Mercado e Mãe Diná conseguem ser levados a sério por uma legião de ignorantes. Aqueles que desejam acreditar focam apenas nos raros acertos, ainda que previstos de forma vaga, e ignoram a grande quantidade de erros. Como um bom advogado, o cérebro às vezes vai à busca apenas da confirmação da tese inicial, não da verdade. Mas também como um bom advogado, ele é mais admirável pela sua capacidade de realizar esta tarefa do que por sua virtude. A verdade é sacrificada pelos interesses imediatos. Enquanto existirem crédulos ingênuos, iremos conviver com profetas. Pelo que podemos presumir, ainda vamos ter que aturar profetas por muito tempo... Eis a profecia que faço!

quinta-feira, janeiro 24, 2008

O Dragão de Sagan


Rodrigo Constantino

“Toda a nossa ciência, comparada com a realidade, é primitiva e infantil – e, no entanto, é a coisa mais preciosa que temos.” (Albert Einstein)

Qual seria a reação esperada das pessoas se alguém afirmasse ter um dragão invisível que cospe fogo em sua garagem? Foi uma das questões que Carl Sagan levantou no seu esplêndido livro O Mundo Assombrado Pelos Demônios, no qual derruba com ótimos argumentos diversas crendices comuns. Logo de cara, podemos esperar que nos peçam para mostrar o tal dragão. Mas ocorre que ele é invisível. Podem então sugerir que farinha seja espalhada no chão, para detectar suas pegadas. Mas acontece que o dragão flutua no ar. Um sensor infravermelho pode então ser usado para detectar o fogo que ele cospe. Mas o problema é que o fogo é desprovido de calor. Uma tinta talvez possa ser borrifada para torná-lo visível. Infelizmente, o dragão é incorpóreo. E assim por diante. Qualquer ferramenta científica de nosso conhecimento é reiteradamente descartada como viável para provar a existência do dragão.

Carl Sagan então pergunta: “Ora, qual a diferença entre um dragão invisível, incorpóreo, flutuante, que cospe fogo atérmico, e um dragão inexistente? Se não há como refutar a minha afirmação, se nenhum experimento concebível vale contra ela, o que significa dizer que o meu dragão existe?”. A incapacidade de invalidar sua hipótese não é, de forma alguma, a mesma coisa que provar sua veracidade. No fundo, pedir para acreditar no relato da existência do dragão é o mesmo que pedir, na total ausência de evidências concretas, para acreditar na palavra de quem afirma isso. Com certeza passaria pela cabeça da maioria das pessoas a mais provável explicação de que a mente do sujeito em questão criou o dragão, talvez por um sonho que pareça real ou mesmo uma alucinação, mais comum nos seres humanos do que muitos gostariam de admitir. E não seria nada correto da parte de quem afirma a existência do dragão, ficar ofendido com os demais, apenas porque apresentaram o veredicto de “não comprovado”.

O livro de Sagan trata de inúmeros casos de crenças totalmente desprovidas de evidências, e o autor sempre levanta questões incômodas para os mais crédulos, mostrando que explicações mais prosaicas são também as mais prováveis. A mente humana é falível, e pode criar muitas armadilhas para seus donos. O desejo de crer pode tornar árdua a tarefa de questionar, exigir evidências, adotar uma postura mais cética. Por isso o rigor científico é um método tão diferente, infinitamente mais seguro que a simples fé. As emoções podem pregar peças no cérebro, ainda mais se este não estiver preparado e acostumado com a postura cética e o método científico de busca da verdade.

Por ter sido um professor de astronomia entendido do assunto, muitos perguntavam para Sagan se ele acreditava em vida inteligente extraterrestre. Sua resposta era sempre com os argumentos padrões, de que há muitos lugares no espaço, as moléculas de vida estão por toda parte etc. Logo, ele ficaria surpreso se não houvesse inteligência extraterrestre, mas garantia que “ainda não há absolutamente nenhuma evidência convincente de que ela existe”. Muitos não ficavam satisfeitos, e insistiam no que ele realmente achava. Mas era isso o que ele realmente achava. Até que alguém questionou qual era sua opinião visceral. A resposta merece ser citada na íntegra:

“Mas eu tento não pensar com as minhas vísceras. Se levo a sério minha tentativa de compreender o mundo, pensar com algum órgão que não seja o meu cérebro, por mais tentador que possa ser, provavelmente complicará a minha vida. Na verdade, é correto guardar a opinião para quando houver evidências.”

Devemos manter sempre a mente aberta, é claro. Tal como os pára-quedas, elas só funcionam bem desta maneira. Mas como o engenheiro espacial James Oberg certa vez disse, ela não pode ficar tão aberta a ponto de o cérebro cair para fora. O que isso quer dizer é que devemos sempre estar dispostos a mudar de opinião, mas somente quando autorizados por novas evidências, que devem ser fortes. “Nem todas as afirmações têm igual mérito”, lembra Sagan. Alguém que afirma algo somente calcado em sua fé, seu desejo de acreditar, não está no mesmo direito de exigir respeito do que aquele que apresenta boas evidências. Como exemplo, podemos comparar um criacionista com um evolucionista. O primeiro depende apenas de sua fé, nada mais. O último, conta com diversas evidências absolutamente concretas.

Um relato deve sempre ser analisado sob a ótica do ceticismo. Ele, por si só, não prova nada. Qualquer investigador, detetive ou juiz sabe disso. Se isso serve para qualquer relato, imagine para relatos de acontecimentos totalmente incomuns, como supostos milagres, raptos por alienígenas, homens andando por cima da água, duendes, aparições de santos, visita de íncubos, parto de uma virgem etc., ainda mais transmitidos por terceiros e separados por séculos, quando não milênios, em línguas arcaicas! Acreditar nesses "relatos" exige muita vontade de crer mesmo. No caso da visão de OVNIs, por exemplo, o psicanalista Carl Gustav Jung considerava ser uma espécie de projeção do inconsciente. Sobre aqueles que aceitam os testemunhos incomuns literalmente, ele observou: "Essas pessoas não só têm insuficiência de pensamento crítico, mas também desconhecem as noções mais elementares da psicologia. No fundo, não querem aprender nada, mas simplesmente continuar a acreditar – sem dúvida a mais ingênua das presunções, em vista de nossas falhas humanas".

Muitos fogem da pesada carga do ceticismo. As crenças, mesmo que estapafúrdias, podem confortar de imediato. Sagan explica: “A pseudociência fala às necessidades emocionais poderosas que a ciência freqüentemente deixa de satisfazer”. Seria fantástico se de fato pudéssemos, como nas histórias infantis, satisfazer os desejos de nosso coração pelo simples ato de desejar. Mas a realidade não é assim, e a ciência é a melhor ferramenta para tentarmos compreender esta realidade. “A ciência prospera com seus erros, eliminando-os um a um”, diz Sagan. As conclusões falsas são tiradas, e as hipóteses são formuladas de modo a poderem ser refutadas. A pseudociência é exatamente o oposto. As hipóteses “são formuladas de modo a se tornar invulneráveis a qualquer experimento que ofereça uma perspectiva de refutação, para que em princípio não possam ser invalidadas”. Faz-se oposição ao escrutínio cético, e logo se alega que há uma conspiração contra as “teses” da pseudociência. Impostores, aliás, costumam adorar teorias conspiratórias.

A sabedoria humana está em compreender as nossas limitações. Por isso o rigor cético e austero da ciência é tão importante. A ciência não é infalível, mas é o melhor instrumento que temos. O que fica além dela, podemos humildemente chamar de ignorância, sem necessitarmos de outros nomes que apenas confundem. Não ter todas as respostas é o que nos motiva a buscá-las. A ciência verdadeira está aberta a todas as questões, aos assuntos mais delicados que existem. Ela deve ignorar os apelos à autoridade, focando somente nas evidências. A diversidade e o debate são estimulados. O mecanismo de correção dos erros é o que garante sua constante evolução. Idéias que não funcionam devem ser descartadas, eis a regra dura, mas justa. Os prêmios mais valorizados costumam ser aqueles que refutam crenças estabelecidas, pois a falibilidade humana é reconhecida. Tudo isso é contrário à postura típica da pseudociência ou das religiões. Carl Sagan afirma: “A ciência é um meio de desmascarar aqueles que apenas fingem conhecer; é um baluarte contra o misticismo, contra a superstição, contra a religião mal aplicada a assuntos que não lhe dizem respeito”.

Ciência é também um modo de pensar, um método crítico. Diante do relato do dragão na garagem – ou de alguém que multiplicou pães, andou na água, curou doenças com um toque, levitou, voltou dos mortos, foi abduzido por ETs, descobriu os poderes dos cristais etc., restam basicamente duas posturas: confiar na esquisitice e crer cegamente, ou exigir as evidências. É provável que, escolhendo a segunda alternativa, você acabe tachado de chato. Mas com certeza é o único caminho razoável para se chegar à verdade. Caso contrário, considere-se convidado para vir conhecer o Dragão de Sagan, que curiosamente também habita em minha garagem.

A Santa Ceia


Lula comparou a reunião dos ministros com a Santa Ceia. Lula se coloca na posição "humilde" de Jesus, também se achando o próprio Deus em pessoa. Não obstante a gritante diferença quantitativa, já que eram supostamente 12 apóstolos contra 37 ministros de Lula, resta saber: Quando este oportunista safado será então crucificado? Onde está Judas?!

quarta-feira, janeiro 23, 2008

O Socialista Cristão


Rodrigo Constantino

"A utopia não tem obrigação de apresentar resultados; sua única função é permitir aos seus adeptos a condenação do que existe em nome daquilo que não existe." (Jean-François Revel)

Algumas pessoas alegam que o cristianismo é totalmente contrário ao socialismo, enquanto outras alegam o oposto. Creio que isso se deve, em parte, justamente ao caráter ambíguo da mensagem atribuída a Cristo. Dependendo do interesse em questão, é possível extrair da Bíblia, por exemplo, trechos claramente em linha com a ideologia socialista ou trechos mais liberais e individualistas. Um socialista, o procurador Luiz Francisco de Souza, chegou a escrever um livro chamado Socialismo: Uma Utopia Cristã, com mais de mil páginas. Confesso não ter lido o livro, mas parto da premissa de que, para se escrever tanto sobre os elos entre socialismo e cristianismo, é porque deve ser possível pescar muita coisa em comum mesmo. O fato é que muitos socialistas usam o cristianismo para sustentar seus fins, como a turma da "Teologia da Libertação". E não custa lembrar que um fervoroso católico, transformado em santo depois, realmente escreveu um livro que exala socialismo do começo ao fim. Trata-se de Tomás Morus e seu livro clássico Utopia, editado em latim no ano de 1516.

A obra descreve um Estado imaginário considerado ideal pelo autor, tendo como modelo A República, de Platão. Desde o começo do livro, fica clara a idéia de que, para o autor, um mundo ideal seria um mundo sem propriedade privada e com a felicidade coletiva colocada acima dos indivíduos. O ataque aos ricos é freqüente, como nesse trecho: "Ponham um limite às compras em massa dos poderosos e a seu direito de exercer uma espécie de monopólio. Que diminua o número dos que vivem sem fazer nada. Que se retome o trabalho da lã, a fim de que uma indústria honesta possa ocupar utilmente essa massa ociosa, aqueles que a miséria já transformou em ladrões...". Ou seja, Morus cai na falácia de que os ricos detentores dos meios de produção exploram os pobres, e que a miséria transforma necessariamente as pessoas em ladrões. São bandeiras claramente esquerdistas. Mas para quem acha que o contexto da época justifica essa postura e que ainda não é possível afirmar que Morus era um defensor de idéias socialistas, segue um trecho bem mais direto:

"Com efeito, esse grande sábio (Platão) já havia percebido que um único caminho conduz à salvação pública, a saber, a igual repartição dos recursos. E como realizá-la onde os bens pertencem a particulares? Quando cada um exige o máximo para si, não importa o título que alegue, e por mais abundantes que sejam os recursos, uma minoria irá açambarcá-los e deixará a indigência ao maior número. [...] Estou portanto convencido de que os recursos só podem ser repartidos com igualdade e justiça, que os negócios dos homens só podem ser bem administrados, se for suprimida a propriedade privada." (meus grifos)

Não é possível restar mais dúvida. Tomás Morus, o católico fanático, é um dos precursores do socialismo, calcado em Platão. Sua contribuição para o avanço das idéias socialistas é reconhecida pelos próprios, e o autor foi cultuado pela Revolução Russa, que lhe erigiu uma estátua em homenagem às idéias contidas em Utopia. Quando Morus começa a descrever a ilha ideal, vemos claramente o caráter autoritário presente na ideologia socialista. Ele diz, por exemplo, que "uma única atividade é comum a todos, homens e mulheres: a agricultura, que ninguém pode ignorar". Além disso, "cada família confecciona ela própria suas roupas, cuja forma é a mesma para toda a ilha". É justamente o igualitarismo pregado pelos socialistas depois. O modelo de subsistência agrícola típico dos kibbutzim socialistas. Na mesma linha de ideal, Tommaso Campanella escreveria mais tarde A Cidade do Sol, também influenciado por Platão e ainda mais radical no autoritarismo dos "sábios governantes".

O famoso slogan marxista, "de cada um de acordo com sua capacidade, para cada um de acordo com sua necessidade", também está presente nos ideais de Morus: "Cada pai de família vai até lá solicitar tudo de que precisa para si e para os seus, e leva sem pagamento, sem compensação de nenhuma espécie". A escassez é um conceito ignorado pelos idealistas. Morus então pergunta: "Pois, por que recusar alguma coisa a alguém quando há abundância de todos os bens e ninguém receia que seu vizinho peça mais que o necessário? E por que solicitariam em excesso quando se sabe não haver risco de faltar nada?" Roberto Campos vai direto ao ponto: "Segundo Marx, para acabar com os males do mundo, bastava distribuir; foi fatal; os socialistas nunca mais entenderam a escassez". Esse mal não é monopólio dos marxistas, pelo que podemos ver...

O coletivismo é total na obra de Morus, transformando os indivíduos em simples meios sacrificáveis para o "bem-comum". Ele explica: "Aqui nada é privado, e o que conta é o bem público. [...] Entre os utopianos, [...], onde tudo é de todos, um homem está seguro de ter o necessário contanto que os celeiros públicos estejam repletos". Ora, qualquer um sabe que aquilo que é de "todos", na verdade não é de ninguém. Alguns defensores de Morus podem alegar que tanto ele como Platão escreveram sobre uma sociedade ideal, mas inexeqüível na prática. O próprio Morus disse que não esperava ver tal sociedade, por causa da soberba humana. Mas isso não muda o fato de que tal era a sociedade ideal almejada pelos pensadores. Morus deixa isso mais que evidente quando afirma: "[...] reconheço de bom grado que há na república utopiana muitas coisas que eu desejaria ver em nossas cidades. Que desejo, mais do que espero ver". Os socialistas também não acham que todo o ideal socialista será concretizado. Mas não deixam de sonhar e, com isso, lutar por este mundo idealizado. O resultado é sempre a miséria, o terror e a escravidão.

Mas se o livro de Tomás Morus vai tão ao encontro do ideal socialista, como é possível que tantos conservadores de direita admirem o autor? A explicação para este estranho fenômeno, em minha opinião, reside na mentalidade tribalista. Os membros de tribos pensam sempre com o fator binário "eu" e "eles". Existem os membros do grupo e existem os "de fora", que precisam ser combatidos. Dito isso, basta lembrar que muitos conservadores são crentes religiosos, normalmente cristãos. Ora, Tomás Morus pode ter defendido idéias claramente socialistas, mas era um cristão devoto, não resta dúvida. Os demais crentes, portanto, não conseguem condenar o pensador, pois estariam criticando um "irmão", e dos mais fiéis à tribo. Quando Morus fala das diferentes crenças na ilha fundada por Utopus, os cristãos enxergam alguém admirável, como na passagem: "A maioria, porém, e sobretudo os mais sábios, rejeitam essas crenças, mas reconhecem um deus único, desconhecido, eterno, incomensurável, impenetrável, inacessível à razão humana" (meus grifos). Falou em Deus único e criticou a razão humana, já é o suficiente para cair no gosto de muitos crentes. A tribo dos que colocam a fé acima da razão logo se regozija com os escritos de Morus.

Mas ocorre que o próprio Morus misturou o cristianismo com o socialismo, que ainda não tinha este nome, mas já existia como idéia: "O que particularmente os tocou foi saber que o Cristo havia aconselhado a seus seguidores colocar todos os bens em comum, e que esse costume é ainda praticado nas congregações mais verdadeiramente cristãs". É o próprio Tomás Morus usando a mensagem de Cristo para sustentar o coletivismo socialista. Diante disso, os conservadores anti-socialistas deveriam repudiar as idéias de Morus. Mas eles não conseguem. A fé religiosa está acima de tudo. E neste quesito Morus tira a nota máxima por fanatismo. Acabou decapitado por ordens do Rei Henrique VIII por não reconhecer o rei, que havia se divorciado, como chefe supremo da igreja. Acabou canonizado pela Igreja Católica em 1935, como exemplo de fidelidade aos princípios católicos. E todos sabem como os crentes adoram mártires. Nietzsche já havia explicado: "A morte dos mártires, seja dito de passagem, foi uma grande desgraça na história; seduziu..." E continua: "Os mártires prejudicaram a verdade... Ainda hoje não se necessita senão de certa crueza na perseguição para proporcionar a quaisquer sectários uma honrosa reputação". Por fim, ele diz: "Mas o sangue é a pior testemunha da verdade; o sangue envenena a mais pura doutrina e transforma-a em loucura e em ódio nos corações".

Por falar em loucura, Erasmo de Roterdã dedicou sua obra clássica, Elogio da Loucura, justamente ao amigo Morus, em 1508. Nela, falando como se fosse a própria loucura, Erasmo diz que "a religião cristã se adapta perfeitamente à loucura e não tem qualquer espécie de relação com a sabedoria". Para ele, "os criadores da religião cristã, fazendo demasiado alarde de uma maravilhosa simplicidade, eram os inimigos mais confessos do estudo das ciências". Por fim, "não é possível que se encontrem loucos mais extravagantes do que aqueles que se abandonam por completo ao ardor da piedade cristã". Seriam loucos que "odeiam a vida e vivem clamando pela morte, ao ponto de parecer totalmente privados de senso comum". Ao que parece, Erasmo escrevia com conhecimento de causa. Era amigo de Tomás Morus, o socialista cristão, louco o suficiente para morrer por causa do divórcio de um rei.

terça-feira, janeiro 22, 2008

A Última Cartada



Rodrigo Constantino

Após uma segunda-feira negra nos mercados financeiros, com quedas entre 5 a 7% nos principais mercados, o Federal Reserve, sob o comando de Ben Bernanke, resolveu surpreender os investidores e reduziu a taxa do fed funds em 75 pontos base, para 3,5% ao ano. Trata-se da última grande cartada do Fed, para tentar injetar liquidez e ânimo nos mercados e evitar o pior, a temida recessão. O Fed jogou a bóia da salvação, para muitos investidores desesperados se agarrarem e respirarem mais aliviados. Mas será que o Fed consegue mesmo salvar os mercados? Será que intervenções de cima, dos "sábios clarividentes", têm o poder de cura milagrosa, colocando finalmente no passado os ciclos de alta e baixa dos ativos? Acho pouco provável.

Na verdade, a analogia que gosto é com a situação de um bêbado. Aquele que consumiu álcool demais e está prestes a encarar uma dolorosa ressaca, necessária para equilibrar novamente seu organismo, pode sempre postergar um pouco esse incômodo ajuste, mas não sem um pesado custo. Mais algumas cervejas manterão o sujeito no estado de euforia, proveniente da bebedeira. Mas isso irá apenas agravar a ressaca necessária depois. No longo prazo, com muita injeção de álcool para fugir da ressaca, tudo que o indivíduo conseguirá será uma cirrose. Ainda não inventaram mecanismos para driblar certas leis da natureza. O "novo paradigma" nos remete às velhas utopias, onde a crença ingênua de um mundo eternamente maravilhoso, sem dor, parece possível. Os "cavalheiros" do Fed seriam os heróis que sempre estarão lá, para salvar os prejudicados através de uma milagrosa canetada.

Ainda usando a analogia da bebedeira, a medida do Fed seria como alguém entrando de surpresa no bar, onde vários bêbados começam a sentir as pontadas na cabeça, oferecendo mais uma rodada grátis para todos. Ninguém duvida que a reação inicial seria de completa euforia. Os bêbados iriam ao delírio. Mais álcool para manter a festa. Mais liquidez! Só que essa medida artificial não iria alterar a realidade dos fatos. Os keynesianos nunca foram capazes de compreender direito isso. Acham que um sujeito consegue se suspender puxando o seu próprio suspensório. Acreditam que basta um estímulo estatal para manter a economia em contínuo crescimento. Se assim fosse, não haveria mais miséria no mundo. Bastava o governo decretar seu fim, imprimindo moeda de papel. Sabemos que a inflação é o resultado disso.

A Escola Austríaca vem fazendo constantes alertas quanto a estes riscos oriundos do excesso de intervenção estatal na economia. O mercado, funcionando livremente, sempre terá excessos pontuais, que tendem a ser anulados por uma correção natural do processo. Quando o governo intervém, buscando criar uma euforia artificial, esses erros isolados se transformam em viés generalizado, causando as grandes bolhas especulativas. A própria crise das hipotecas americanas tem como uma das causas a manutenção das taxas de juros em patamares artificialmente baixos por tempo demais. Usando o mesmo mecanismo para salvar esta crise, o Fed está apenas postergando os ajustes necessários, transferindo a bolha para algum outro ativo, talvez commodities ou mercados emergentes.

Se os agentes do mercado entenderem que o banco central americano tem a mão frouxa, ou seja, é uma "pomba" em vez de um "gavião", que cuidaria basicamente do valor da moeda, isso pode ser perigoso para o valor do dólar a médio prazo. Os riscos não são nada desprezíveis. O principal mandato de um banco central deve ser a inflação. Se ele deixa isso um pouco de lado para focar mais no crescimento econômico de curto prazo, tentando injetar liquidez para evitar uma recessão, o resultado quase inevitável será a perda do valor da moeda com o tempo. Não há ninguém melhor do que Ludwig von Mises, o grande economista austríaco, para finalizar aqui o alerta quanto aos riscos dessa recente medida do Federal Reserve, numa tradução livre minha:

"Não há meio algum de se evitar o colapso final de uma expansão econômica gerada pela expansão do crédito. A alternativa é apenas se a crise deve chegar antes como o resultado de um abandono voluntário de mais expansão do crédito, ou depois como uma catástrofe final e total do sistema monetário envolvido."

Torço para que o pior possa ser evitado. Mas quando se trata de decisão de investimento, torcida não é o que interessa, e sim respeito aos fundamentos. Esperança não deve ter voz na decisão de alocação de recursos. Ainda é cedo para um diagnóstico apurado do que deve ocorrer na economia americana e seu impacto na economia mundial. A cartada do Fed é uma jogada arriscada. Se falhar, não restarão muitas alternativas interessantes. O momento parece adequado para uma observação imparcial mais de longe, focando na preservação de capital. Não creio que seja a hora de assumir grandes riscos e confiar que o pior da crise já passou, graças ao toque "divino" do Fed. Novos terremotos poderão ocorrer, e se for esse o caso, qual será a grande cartada do Fed? Reduzir ainda mais os juros, para os patamares japoneses? Falar em Japão numa hora dessas não parece boa coisa...

segunda-feira, janeiro 21, 2008

A Regulação do Mercado Financeiro


Rodrigo Constantino

“Sistema financeiro global eficaz é aquele que orienta as poupanças do mundo para o financiamento dos investimentos de capital que produzirão com mais eficácia os bens e serviços mais valorizados pelos consumidores.” (Alan Greenspan)

Em tempos de crise, o debate sobre o aumento de intervenção estatal no sistema financeiro sempre retorna com força. Os excessos praticados pelos agentes do mercado financeiro, muitas vezes causados pela própria intervenção estatal, geram a demanda por bodes expiatórios a serem sacrificados em praça pública. Sempre foi assim. É preciso apontar alguns poucos culpados, para que toda a raiva possa ser canalizada e o sentimento de vingança possa ser atendido. Mas o aumento do controle estatal gera um resultado prejudicial ao funcionamento do mercado. Apontam supostas falhas do mercado, ignorando que o governo costuma falhar muito mais, causando estragos bem maiores. Decisões tomadas no calor do momento, sob fortes emoções, raramente são decisões sábias.

A crise atual de hipotecas nos Estados Unidos é um bom exemplo. Indivíduos de baixa renda, que antes não podiam sonhar com a casa própria, perdem suas casas compradas no boom do mercado, possível em parte pelos novos produtos criados no mercado financeiro. Poucos se lembram do lado bom da coisa, preferindo olhar apenas para o resultado da crise, e culpar os bancos de investimento pela situação. Não vem ao caso para estes lembrar que, antes de tudo, boa parte da crise pode ser explicada pela manutenção das taxas de juros em patamares artificialmente muito baixos durante um bom tempo. Isso estimulou a busca por mais retorno, ainda que à custa de riscos maiores. Os complexos produtos de crédito imobiliário, com parte das hipotecas subprime agrupadas no meio de créditos de melhor qualidade, são filhotes disso.

Os agentes do mercado, como qualquer ser humano, reagem aos incentivos. Com o Federal Reserve mantendo as taxas de juros em níveis abaixo de 2% por longo período, não era razoável esperar algo muito diferente. Os bancos de investimento e os hedge funds (fundos de hedge) inovaram e criaram produtos novos em busca de maior rentabilidade. Claro que a “espuma” teria que baixar alguma hora. E todos focam apenas nisso, no sofrimento dos que perderam as casas que jamais teriam, para começo de conversa, não fosse o mercado financeiro. Desde Bastiat sabemos que, em economia existe aquilo que se vê, e aquilo que não se vê. A destruição criativa, que assume uma dinâmica ímpar no setor financeiro, é um caso típico desta miopia.

Os fundos de hedge, conhecidos por sua agressividade, costumam ser alvo de constante apelo por maior regulação estatal. Quando surge uma crise como a atual, esses apelos se intensificam. No entanto, o próprio Alan Greenspan, que comandou o Federal Reserve por 18 anos, entende que “as estratégias de investimento dos fundos de hedge continuam a ser úteis para a eliminação de spreads anormais nos mercados e, talvez, até para a superação de muitas ineficiências”. Greenspan reconhece que esses fundos não estão sujeitos a regulamentação do governo, e espera que assim continue. Para ele, “a imposição de normas apenas servirá para sufocar a busca entusiástica por nichos de lucro”. Se um controle maior do governo fosse imposto, “os fundos de hedge desapareceriam ou acabariam como veículos de investimento não-diferenciados e sem características próprias, deixando a economia mundial em pior situação”.

A ausência de regulação estatal não significa ausência completa de regulação. Greenspan cita que esses fundos se sujeitam “às restrições impostas por seus próprios investidores de alta renda, pelos bancos e por outras instituições que lhes emprestam dinheiro”. Em outras palavras, eles sofrem uma auto-regulação do próprio mercado, o que Greenspan mesmo considera bem mais eficiente. Greenspan não consegue ver benefício algum de uma maior regulação do setor. Ele escreve: “Qualquer restrição normativa às estratégias e às táticas de investimento dessas entidades (que é o que fazem os regulamentos) limitaria a assunção de riscos, que é parte integrante da contribuição dos fundos de hedge para a economia global e, principalmente, para a economia dos Estados Unidos”. Greenspan então pergunta: “Por que circunscrever o vôo das abelhas polinizadoras de Wall Street?” Essa questão é levantada por aquele que atuou como regulador no mais importante mercado do mundo durante quase duas décadas. Ele deve saber do que está falando, pois conhece as limitações do governo de dentro.

Caso seja inevitável politicamente um grau maior de regulação, eis o que Greenspan sugere como medidas práticas: as regulamentações aprovadas durante crises sempre devem passar, posteriormente, pelo processo de sintonia fina; vários reguladores costumam ser melhores que um, pois o regulador solitário torna-se avesso ao risco, limitando demais o funcionamento do livre mercado; e os regulamentos sobrevivem à própria razão de ser e devem, portanto, ser renovados periodicamente. Quanto menos o governo meter sua mão visível no mercado, atrapalhando o funcionamento da mão invisível, melhor será.

A globalização torna os mercados mais dinâmicos. Segundo Greenspan, para acompanhar a expansão da globalização, o “sistema financeiro precisará manter sua flexibilidade”. Logo, qualquer protecionismo, sobre o comércio ou sobre as finanças, é “receita certa para a estagnação econômica e para o autoritarismo político”. As crises levam a uma tentação quase irresistível de se apelar para o controle estatal, como se o governo tivesse a capacidade de consertar as falhas do mercado. Para o bem do futuro tanto dos Estados Unidos quanto do resto do mundo, espera-se que esta tentação não se transforme em medidas protecionistas concretas. O mercado funciona melhor quando o governo não interfere muito. E o bom funcionamento do mercado financeiro é fundamental para o progresso capitalista, que tanto tem feito pela humanidade.

sexta-feira, janeiro 18, 2008

Os Perigos da Fé Irracional


Rodrigo Constantino

“Já é hora de reconhecermos que a ‘fé’ não é nada mais do que a licença que as pessoas religiosas dão umas às outras para continuar acreditando, quando não há razões para acreditar.” (Sam Harris)

Em Carta a uma Nação Cristã, Sam Harris se dirige diretamente aos cidadãos cristãos americanos, fazendo um alerta sobre os perigos de sua fé. Ele afirma que as mensagens mais hostis recebidas depois do seu primeiro livro The End of Faith vêm justamente de cristãos. Para ele, isso é uma ironia, pois os cristãos em geral imaginam que nenhuma religião transmite tão bem como a sua as virtudes do amor e do perdão. “A verdade é que muitos que afirmam ter sido transformados pelo amor de Cristo são intolerantes à crítica”, ele escreve. Eu posso atestar que o mesmo ocorre comigo, já que meus artigos sobre religião despertam a fúria de muitos crentes ditos cristãos, que partem para uma agressão verbal repleta de xingamentos. Infelizmente, tal ódio recebe considerável apoio da Bíblia.

Logo no começo da carta, Harris vai direto ao ponto: “Se um de nós está certo, o outro está errado”. Ou a Bíblia é a palavra de Deus, como os cristãos alegam, ou não é. Ou Jesus oferece à humanidade o único verdadeiro caminho para a salvação, ou não oferece. Ou a Bíblia é apenas um livro comum, escrito por mortais, ou não é. Ou Cristo era divino, ou não era. Não há espaço para meio termo nesses casos. E se a Bíblia é um livro comum, e Cristo era um homem comum, “então a doutrina básica do cristianismo é falsa”. Se for este o caso, a história da teologia cristã é a “história de homens estudiosos dissecando uma ilusão coletiva”.

Os muçulmanos têm as mesmas razões para serem muçulmanos que os cristãos para serem cristãos e, no entanto, cada um dos lados não encara as razões do outro como algo convincente. Segundo Maomé, Jesus não era divino, e qualquer pessoa que pense diferente passará a eternidade no inferno. Mas será que algum cristão perde o sono pensando nisso? Mesmo sem ser capaz de provar que Alá não é o único e verdadeiro Deus, ou que o arcanjo Gabriel não visitou Maomé em sua caverna, nenhum cristão fica sem dormir por conta das crenças islâmicas. Pelo contrário, os cristãos rejeitam essas crenças, consideradas absurdas. Eles lançam aos muçulmanos o ônus da prova acerca dessas crenças. Ocorre que eles jamais serão capazes de provar algo, assim como os cristãos também não podem. Em outras palavras, o cristão também sabe exatamente como é ser ateu, em relação às crenças e ao Deus dos muçulmanos. Para os cristãos, é óbvio que o Corão não é um livro sagrado, e que a postura da doutrina do islã representa uma barreira a investigação honesta. Basta apenas que os cristãos compreendam que a maneira como eles enxergam o islamismo é exatamente a mesma como os muçulmanos devotos vêem o cristianismo. E é dessa maneira que os ateus vêem todas as religiões.

Sobre o livro “sagrado” dos cristãos, Harris diz: “A idéia de que a Bíblia é o guia perfeito para a moralidade é simplesmente espantosa, em vista do conteúdo do livro”. Os exemplos seriam infindáveis. Sempre que os filhos saem da linha, por exemplo, devemos bater neles com uma vara. Se eles ainda assim responderem com insolência, devemos matá-los (Êxodo 21, 15, Levítico 20, 9, Deuteronômio 21, 18-21, Marcos 7, 9-13, Mateus 15, 4-7). Também devemos apedrejar pessoas até a morte por heresia, adultério, homossexualismo, por trabalhar no sábado, adorar imagens etc. Sobre a escravidão, temos o seguinte versículo no Êxodo, capítulo 21: “Se alguém ferir a seu escravo, ou a sua escrava, com pau, e morrer debaixo da sua mão, certamente será castigado; porém, se sobreviver por um ou dois dias, não será castigado, porque é dinheiro seu”. No Levítico 25, 44-45, consta: “Quanto aos escravos ou escravas que tiverdes, virão das nações ao vosso derredor; delas comprareis escravos e escravas”. Basta lembrar que o cristianismo conviveu por longos séculos com a escravidão, e durante a abolição americana, era o sul mais cristão que se colocava contra a liberdade dos negros. Alguém pretende mesmo seguir a Bíblia como palavra final sobre moralidade? O fato é que a Bíblia não parece nada com algo divino.*

Harris lembra ainda que “os ensinamentos da Bíblia são tão confusos e contraditórios que foi possível para os cristãos queimar alegremente os heréticos nas fogueiras, durante cinco longos séculos”. As interpretações que concluíram que os heréticos poderiam ser torturados partiram dos mais famosos patriarcas da Igreja, como Santo Agostinho, Tomás de Aquino, Lutero e Calvino. Claro que cada um pode interpretar a Bíblia à sua maneira. Mas como os cristãos poderão alegar capacidade para discernir os verdadeiros ensinamentos do livro enquanto os mais influentes pensadores do cristianismo falharam nesse ponto? Contar com a infalibilidade papal, no caso dos católicos, tampouco ajuda, visto que já existiu papa totalmente imoral.

A verdade é que cada um extrai o que quiser da Bíblia, defendendo atos morais ou imorais. A moralidade é, portanto, totalmente humana.** Os dogmas religiosos podem, de fato, induzir a uma imoralidade muitas vezes. Um caso é a preocupação infinitamente maior com os embriões humanos do que com a possibilidade de salvar vidas, oferecida pela pesquisa com células-tronco, que muitos cristãos condenam. Outro caso é a pregação cristã contra o uso de preservativos na África subsaariana, enquanto milhões de pessoas morrem de AIDS todo ano. A cruzada religiosa vale mais que seus resultados, fornecendo uma sensação de superioridade moral aos seus membros, ainda que à custa de milhões de vidas inocentes. Sam Harris afirma: “Qualquer pessoa que creia que os interesses de um blastocisto podem prevalecer sobre os interesses de uma criança com uma lesão na espinha dorsal está com seu senso moral cegado pela metafísica religiosa”. A compaixão genuína pelo próximo, que independe da fé religiosa, desaparece para ceder lugar ao dogma religioso. Além disso, o autor questiona: “O que é mais moral: ajudar as pessoas puramente pela preocupação com o sofrimento delas, ou ajudá-las porque você acha que o criador do universo vai recompensá-lo por isso?”

Sobre a constante alegação de que o abandono da fé religiosa vai inexoravelmente parir regimes como o comunismo soviético ou o nazismo, Harris rebate com vários argumentos. Para ele, “o problema desses tiranos não é que eles rejeitam o dogma da religião, e sim que adotam outros mitos destruidores da vida”. Ele lembra ainda que “a maioria se torna o centro de um culto da personalidade quase religioso, que exige o uso contínuo da propaganda para se manter”. No caso de Hitler, é importante lembrar que o próprio se dizia cristão, e tentou justificar sua luta contra o “veneno judaico” com passagens bíblicas. Além disso, a Igreja Católica tem um passado vergonhoso de cumplicidade com o nazismo. Harris afirma que Auschwitz, os gulags soviéticos e os campos de morte do Camboja não são exemplos do que acontece quando as pessoas se tornam demasiado adeptas da razão. Não havia nada de racional nesses regimes. “O problema da religião – assim como do nazismo, do stalinismo ou de qualquer outra mitologia totalitária – é o problema do dogma em si”, explica Harris.

O ateísmo, Harris é forçado a lembrar, não é uma filosofia. Não é nem mesmo uma visão do mundo. Podem existir ateus honestos ou desonestos, morais ou imorais. O ateísmo é “simplesmente o reconhecimento do óbvio”. Para Harris, o termo nem deveria existir. Afinal, ninguém precisa se identificar como “não-astrólogo” ou “não-alquimista”. Não há uma palavra para definir quem não crê que Elvis Presley continua vivo. Harris conclui: “O ateísmo nada mais é do que os ruídos que pessoas razoáveis fazem diante de crenças religiosas não justificadas”. Para um ateu, basta o assassinato de uma menininha inocente para lançar dúvidas sobre a idéia da existência de um Deus benevolente. Enquanto alguém, salvo por acaso de uma desgraça como o Katrina, credita seu Deus e sua fé por esse “milagre”, esquece-se que morriam afogados ao lado vários bebês. É o narcisismo ilimitado e o auto-engano que fazem com que o sortudo se sinta todo especial, um escolhido por Deus. Para Harris, quando cada um deixar de revestir a realidade do sofrimento do mundo com fantasias religiosas, sentirá como a vida é preciosa, justamente porque tudo pode ser abruptamente destruído, sem nenhum bom motivo.

Desde muito se questiona o motivo da existência do mal no mundo. Por que Deus não pode ou não quer impedir tais calamidades? Seria ele impotente ou mau? O crente, diante deste dilema, fica tentado a executar uma pirueta, alegando que Deus não pode ser julgado pelos critérios humanos de moral. Mas são justamente esses critérios que são utilizados para afirmar a bondade divina! Dois pesos, duas medidas. Observa-se somente um lado do mundo para louvar a grande benevolência do criador, ignorando-se todas as desgraças constantes. Além disso, qualquer Deus que se preocupa com coisas tão triviais como o casamento gay ou o uso de seu nome em vão não é tão inescrutável assim. Os ateus, diante desse “dilema”, optam por uma possibilidade mais razoável e menos odiosa: “O Deus bíblico é uma ficção, tal como Zeus e milhares de outros deuses mortos que a maioria dos seres humanos mentalmente sãos hoje ignora”.

Outro ponto abordado pelo autor é o conflito entre ciência e religião. Para Harris, tal conflito é inevitável, pois “o sucesso da ciência muitas vezes vem às expensas do dogma religioso; a manutenção do dogma religioso sempre vem às expensas da ciência”. O cerne da ciência, segundo Harris, está na honestidade intelectual, ou seja, a avaliação honesta das provas e argumentos lógicos. Para ele, “a religião é a única área da nossa vida na qual as pessoas imaginam que se aplica algum outro padrão de integridade intelectual”. No fundo, ou uma pessoa tem bons motivos para acreditar naquilo que acredita, ou não tem. Ele completa: “Se houvesse boas razões para acreditar que Jesus nasceu de uma mulher virgem, ou que Maomé voou para o céu em um cavalo alado, essas crenças necessariamente fariam parte da nossa descrição racional do universo”. Acreditar cegamente em algo sem provas costuma ser considerado sinal de loucura em qualquer área fora da religião. No campo da religião, é visto como nobre ter certeza absoluta de coisas que ninguém tem como saber. Além disso, Harris lembra que “é significativo que essa aura de nobreza alcance apenas aquelas religiões que continuam tendo muitos adeptos”. Afinal, qualquer pessoa que declarar ter certeza da existência de Posêidon será provavelmente considerada insana.

A postura científica costuma ser, com algumas exceções, uma postura de humildade perante o universo. Ninguém sabe como ou por que o universo começou a existir, por exemplo. A maioria dos cientistas está disposta a admitir sua ignorância sobre tais pontos, levantando no máximo algumas teorias. Não é essa a postura dos crentes. Ironicamente, o discurso religioso com freqüência alega sua suposta humildade, condenando ao mesmo tempo os cientistas por arrogância intelectual. Na verdade, como lembra Harris, não existe nada tão arrogante do que a visão de um crente religioso: “o criador do universo se interessa por mim, me aprova, me ama e vai me recompensar depois da morte; minhas crenças atuais, vindas das escrituras, continuarão sendo a melhor expressão da verdade até o fim do mundo; todos os que discordam de mim passarão a eternidade no inferno...” Pode algo ser mais arrogante e narcisista que isso? É caso para um divã mesmo.

Concluindo, Sam Harris coloca: “Um dos maiores desafios da civilização no século XX é que os seres humanos aprendam a falar sobre suas preocupações pessoais mais profundas – sobre a ética, a experiência espiritual e a inevitabilidade do sofrimento humano – de maneiras que não sejam flagrantemente irracionais”. No passado, como uma espécie de filosofia primitiva, as religiões podem ter tido sua utilidade. Mas “o fato de que a religião pode nos ter servido para alguma função necessária no passado não exclui a possibilidade de que hoje ela seja o maior impedimento para a construção de uma civilização global”. A enorme quantidade de guerras religiosas que ainda ocorre no mundo é prova disso. São esses os grandes perigos da fé irracional.

* Harris diz: “A Bíblia é um livro muito grande. Deus teve espaço suficiente para nos instruir em detalhes sobre a maneira de manter escravos e de sacrificar diversos animais. Para alguém que está de fora da fé cristã, é espantoso como um livro pode ter um conteúdo tão trivial e, mesmo assim, ser considerado produto da onisciência”.

** Dirigindo-se diretamente aos cristãos, Sam Harris demonstra a incoerência da constante alegação de que somente o livro “sagrado” pode nos fornecer um código de moral: “Você usa a sua própria intuição moral para autenticar a sabedoria da Bíblia – e, no entanto, no momento seguinte você afirma que nós, seres humanos, não podemos, de forma alguma, confiar na nossa própria intuição para nos guiar corretamente no mundo; em vez disso, temos de depender das prescrições da Bíblia. Ou seja, você usa a sua própria intuição moral para concluir que a Bíblia é a garantia apropriada da sua intuição moral. Suas intuições continuam sendo primárias, e o seu raciocínio é circular”.

quinta-feira, janeiro 17, 2008

O Veneno Religioso


Rodrigo Constantino

"Quanto mais os frutos do conhecimento se tornam acessíveis aos homens, mais acelerado é o declínio da crença religiosa." (Sigmund Freud)

Um bom livro para quem deseja refletir aberta e sinceramente sobre o tema religioso é God is not Great, de Christopher Hitchens. Além do título, o subtítulo já deixa claro sua opinião sobre o efeito líquido da religião para o mundo: "como a religião envenena tudo". Sua escrita é muitas vezes ácida, irônica outras, mas é inegável sua capacidade de argumentação e seu conhecimento sobre o assunto. O autor levanta muitas questões incômodas para os crentes de diferentes religiões, não poupando nenhuma delas. Para ele, as religiões escravizam, ofuscam a busca do conhecimento e criam falsos tabus, como o quase unânime ataque ao sexo como algo tóxico. Segundo Hitchens, permanecem quatro objeções irredutíveis para a fé religiosa: ela interpreta de forma totalmente errada a origem do homem e do cosmos; ela, por conta desse erro, combina um máximo de servidão com um máximo de solipsismo; ela é tanto o resultado como a causa de uma perigosa repressão sexual; e ela está basicamente sustentada por um desejo de crer, um wish-thinking.

Todas as religiões foram feitas por homens. Deus não criou os homens à sua imagem. Foi justamente o contrário, o que pode ser observado pela profusão de deuses e religiões. Muitos podem alegar que ao menos essas religiões oferecem conforto ou um código de ética. Mas quem oferece um falso conforto é um falso amigo, como os consumidores de drogas bem sabem, e é totalmente possível levar uma vida ética sem religião, como a experiência atesta. Além disso, as religiões podem falar de maravilhas no próximo mundo, mas é o poder neste mundo que elas buscam. Isso é esperado, já que são criadas e geridas por homens. E como não gostam de competição, talvez por falta de confiança em suas próprias pregações, as religiões não costumam aceitar uma coexistência pacífica entre diferentes credos. A história dos últimos séculos pode ser descrita como uma história de guerra entre religiões. Quando uma seita é nova e, portanto, está em minoria, pleiteia tolerância. Mas tão logo ela cresça o suficiente, a meta passa a ser o monopólio da fé, com o auxílio da força, ou seja, do Estado.

O Cristianismo está longe de ter evitado esta tentação, e apesar da famosa frase atribuída a Jesus, mandando dar a César o que é de César e separando Estado da fé, basta ver o poder que a Igreja Católica Romana desfrutou por séculos, e como o utilizou. John Stuart Mill escreveu: "Que os cristãos, cujos reformadores pereceram na masmorra ou na fogueira como apóstatas ou blasfemos – os cristãos, cuja religião exala em cada linha a caridade, liberdade e compaixão... que eles, depois de conquistar o poder de que eram vítimas, exerçam-no exatamente da mesma maneira, é demasiado monstruoso". David Hume, condenando a superstição, perguntou: "Quão suavemente a Igreja Romana avançou em sua conquista do poder? Mas, por outro lado, em que lúgubres convulsões ela atirou toda a Europa, a fim de conservar esse poder?" Nada disso deveria surpreender aqueles que entendem que as religiões são criadas por humanos, demasiado humanos.

As religiões acabam assumindo uma postura anti-científica também, pois quase sempre a fé dogmática entre em conflito com o avanço do conhecimento, como Galileu e tantos outros descobriram the hard way. Em pleno século XXI, por exemplo, ainda existem várias religiões condenando o uso de preservativos, mesmo que os riscos da AIDS fiquem infinitamente maiores. A atitude da religião com a medicina e a ciência é muitas vezes hostil, pois ela teme a perda de seu monopólio. O que acontece com o xamã e demais místicos religiosos quando os remédios estão ao alcance de todos? Basicamente o mesmo que acontece com o rainmaker quando o climatologista surge. A exploração da ignorância sempre foi uma arma nas mãos das religiões. As pragas eram vistas como punição dos deuses, e isso encorajava o ato de queimar alguns hereges e infiéis para satisfazer esses deuses. Incrivelmente, não foram poucos que usaram essa explicação para desgraças naturais recentes como o Katrina e o tsunami na Ásia. Um castigo para os infiéis – e milhares de fiéis ou criancinhas inocentes também. Um Deus com conceitos bem estranhos de justiça. Por falar em crianças, os astecas as sacrificavam para que o sol pudesse surgir todos os dias. Os pais que acreditam serem Testemunhas de Jeová impedem que seus filhos recebam sangue em transfusões, condenando-os à morte. A lista seria interminável.

A alegação de que sem uma religião não há comportamento ético é absurda, além de expor um desvio de caráter preocupante em quem afirma isso. Afinal, devemos entender que este crente só não sai por aí estuprando meninas inocentes porque teme ser punido por Deus, ou porque um livro "sagrado" o proíbe de cometer tal atrocidade. Um espanto! Na verdade, existem inúmeras passagens monstruosas nos principais livros sagrados, como a Bíblia e o Corão, e cabe em última instância aos próprios homens filtrar o que é válido ali. A ética já é totalmente humana, mesmo para quem acredita se tratar de uma "revelação". Ninguém segue esses livros literalmente, para a nossa sorte. Os três principais monoteísmos admiram o caso de Abraão, que estava disposto a sacrificar o próprio filho como prova de sua fé. Onde está o comportamento ético nisso? Claro que no final Deus poupou o garoto, o que não deixa de levantar suspeitas quanto à onisciência divina, tendo que ver para crer. Abraão, prestes a cometer um dos atos mais bárbaros que pode existir, é louvado pelas maiores religiões, como um exemplo de virtude e devoção. Matar o próprio filho em nome de Deus. Que grande exemplo!

Outra grande prova de que as religiões foram todas criadas por homens é o constante machismo presente nelas. Algumas passagens do Talmud desprezam as mulheres com vontade. No Antigo Testamento, fica claro que as mulheres foram feitas para o uso e conforto dos homens. São Paulo, o famoso apóstolo cristão, demandava silêncio das mulheres nas igrejas. No Corão, consta que os homens são superiores às mulheres, e que um marido que sofrer desobediência pode castigar suas mulheres. A impureza das mulheres é tema freqüente nesses livros "sagrados". Lutero teria dito que "o pior adorno que uma mulher pode querer usar é ser sábia". Entendo que alguns podem defender as religiões afirmando que é preciso colocar tudo no contexto da época, onde o machismo era comum. Mas isso não é confessar o caráter antropomórfico da religião? Quer dizer que Deus, Ele próprio, era vítima dos preconceitos do momento? Eu poderia jurar que a sabedoria divina seria atemporal...

As religiões normalmente demonstram uma bizarra atração pelo fim do mundo. Muitos crentes claramente desejam ver o dia do Juízo Final, onde todo o seu sofrimento, encarado como virtude, será justificado e recompensado, e os infiéis que pareciam felizes em vida serão castigados, ardendo eternamente no inferno. O Apocalipse conquista adeptos pelas emoções mais condenáveis e mesquinhas. Nietzsche disse: "O cristianismo dirigiu o rancor dos doentes contra os saudáveis, contra a saúde; tudo o que é bem-formado, orgulhoso, soberbo, a beleza, antes de tudo, incomoda-lhe os ouvidos e os olhos". O marxismo conquista pela inveja uma legião de seguidores, que sonha com o dia em que o maldito capitalismo irá acabar, sendo substituído por um "paraíso" de igualdade material. O sucesso alheio será destruído finalmente!

O culto da morte e sacrifício está presente em várias religiões também. Essa insistência no tema pode significar um desejo reprimido de realmente morrer, colocando um fim na angústia e ansiedade presentes em demasia na maioria dos crentes. Quase toda religião conta com seus mártires, incluindo aqui o comunismo. Citando Nietzsche novamente: "A morte dos mártires, seja dito de passagem, foi uma grande desgraça na história; seduziu... Os mártires prejudicaram a verdade... Ainda hoje não se necessita senão de certa crueza na perseguição para proporcionar a quaisquer sectários uma honrosa reputação. Como? Pode uma causa ganhar em valor se qualquer um lhe sacrifica a sua vida? É, pois, a cruz um argumento? Escreveram sinais de sangue no caminho que percorreram, e a sua loucura ensinava que com o sangue se atesta a verdade. Mas o sangue é a pior testemunha da verdade; o sangue envenena a mais pura doutrina e transforma-a em loucura e em ódio nos corações. Quando alguém se atira ao fogo pela sua doutrina, que prova isso? Mas verdade é que do próprio incêndio surge a própria doutrina".

As religiões miram o poder mundano. Praticamente todas elas contêm a figura de um profeta humilde que se identifica com os mais pobres, um caso claro de populismo. Não deveria ser nenhuma surpresa que essas religiões se voltam inicialmente para a maioria que é formada por pobres e ignorantes. Aqueles que questionavam tinham que ser calados. A venda de conforto e o controle através do medo e da culpa tinham que estar livres dos espíritos mais céticos, que não aceitavam este coletivismo tolo. Por falar em venda de conforto, não precisamos nem mesmo nos ater às promessas absurdas para a vida após a morte. Em vida mesmo esses profetas ofereciam consolo, como as indulgências para os pecados, algumas vezes pagas. O próprio Jesus, ao "perdoar" todos pelos seus pecados, sem consultar antes os prejudicados por tais pecados, estava abrindo os portões da irresponsabilidade e cometendo uma injustiça com aqueles corretos. Quantos cristãos não apelam constantemente para a máxima de que "somos todos pecadores" para justificar uma vida de hipocrisia e contradição com suas crenças?

Uma das maiores revoltas de Hitchens com as religiões é a doutrinação das crianças desde muito cedo, quando elas estão totalmente indefesas, sem capacidade de questionar direito ou usar a própria razão. A lavagem cerebral é intensa, e as crianças não têm muita chance. Todo regime autoritário se mostrou obcecado pelas crianças. Esparta é um bom exemplo no passado, como a China comunista no presente. Algo que deveria despertar certo incômodo nos crentes é o fato inegável de que a maioria dos crentes simplesmente segue as crenças de seus pais. Qual a chance de um filho de muçulmanos ortodoxos ser um cristão devoto? Qual a chance do contrário? Ora, se as crenças religiosas são passadas para as pessoas da mesma forma que a língua, não há nada de meritório nisso, pois não há escolha. Não há muita reflexão, e sim repetição.

Muitas religiões desembocam no totalitarismo. O princípio essencial do totalitarismo é criar leis que são impossíveis de serem obedecidas. A tirania resultante é reforçada por uma casta privilegiada ou um partido capaz de detectar os erros. No Novo Testamento, o homem que olha para uma mulher de forma errada já está cometendo adultério. Quem consegue seguir algo assim? Uma meta absurda dessas só pode objetivar a escravidão dos crentes. Muitas religiões proibiram o empréstimo a juros, talvez pelos mesmos motivos. Os crentes se sentem pecadores sujos, culpados, e são presas fáceis para os oportunistas. Além disso, passam a denunciar violentamente os demais "impuros", criando-se um clima de desconfiança mútua e estado policial. Amar o vizinho como a si mesmo, outro mandamento irrealista deste tipo. Enquanto isso, a famosa "regra de ouro", existente desde antes de Cristo, diz apenas para esperar ser tratado pelos outros como os tem tratado. Algo bem mais lógico e racional, além de uma boa regra de conduta, dispensando apelos religiosos.

Muitos religiosos chegaram a reconhecer um passado negro de suas religiões, com mentiras, abusos, escravidão, tirania etc. No entanto, é curioso que vários crentes estejam "defendendo" suas religiões com base no argumento utilitarista. Aceitam boa parte das críticas, mas garantem que o mundo é melhor com elas do que sem elas, que o saldo é positivo para as religiões, depois de pesado os seus custos. E ainda usam como "evidência" as atrocidades perpetradas pelos ateus comunistas. Deixando de lado o fato de que muito no comunismo é típico de uma seita religiosa, resta o espanto de ver que esses religiosos se contentam em parecer apenas um pouco melhor que comunistas genocidas! Além disso, o argumento de utilidade, ainda que fosse correto, nada diz sobre a veracidade da crença. Pode algo útil, mas falso, ser glorificado? Os fins justificam os meios? Estranho um crente aderir a esta máxima.

Por fim, é uma tarefa impossível calcular o saldo das religiões. Nem mesmo é preciso falar das guerras, terrorismo, perseguições, pedofilia, escravidão, Inquisição, Cruzadas ou sacrifícios humanos. Basta lembrar que é impossível calcular o estrago psicológico feito em milhões de crianças que crescem já com o sentimento de culpa incutido em suas cabeças. Como avaliar isso? Como avaliar o custo de oportunidade para as conquistas das religiões? Como seria sem elas? Quanto o obscurantismo religioso atrasou no progresso do conhecimento humano? Quantos Galileus deixaram de existir por medo das religiões? Quantos pensadores permaneceram calados por medo das religiões? O que o mundo perdeu com isso? Nunca saberemos. E não obstante tudo de positivo que os defensores das religiões mostrarem, sempre irá restar este lamentável fato: o mundo sofreu muito com o veneno religioso. E ainda sofre...