sexta-feira, maio 29, 2009

Discurso do Prêmio Libertas: O Poder das Idéias

Meu discurso de agradecimento pelo Prêmio Libertas 2009, no XXII Fórum da Liberdade, onde destaco a importância das idéias no rumo de uma sociedade.

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O Reizinho Populista



Rodrigo Constantino, para o Instituto Liberal

Em seu livro O Reizinho Populista, dedicado aos filhos de todos, Luis Pazos conta, de forma divertida, a fábula de um rei que deseja ser popular e entrar para a História acima de qualquer coisa. Com tamanha vaidade, logo o reizinho foi manipulado por todo tipo de aproveitador e oportunista que tinha idéias "brilhantes" para fazer com que a popularidade do rei fosse às alturas. Claro, para cada sugestão, um ministério era criado, e o autor da idéia virava ministro. Assim, surgiu o Ministério da Habitação, o Ministério do Trabalho, o Ministério da Indústria, o Ministério Agrário, o Ministério da Fazenda, etc. Pazos só não teve a criatividade de inventar um Ministério da Pesca, mas o reizinho contava com um enorme aparato burocrático para oferecer casas, empregos, terras, comida, tudo "grátis" ao seu povo, angariando assim a tão sonhada popularidade.

Naturalmente, os recursos iam se esgotando, e o povo tinha que trabalhar cada vez mais para pagar a conta de tantas promessas. A insatisfação era crescente, o que incomodava profundamente o rei. Foi quando o Ministério da Lógica fez uma sugestão genial: o reino era rico em recursos naturais, e o rei não deveria permitir que seus súditos explorassem tais recursos; ele deveria concentrar tudo em suas mãos. Criaram-se então empresas para manejar essas riquezas: as "empresas reais". Porém, o Ministro da Lógica não gostou desse nome, e a designação foi trocada para "empresas do povo". Pazos explica: "Essas novas leis fizeram com que os pobres pensassem, conforme a lógica, que, se as empresas pertenciam ao povo e eles eram parte do povo, também seriam proprietários das empresas".

Como a vida imita a arte – ou o contrário, tem gente que jura que as estatais são do povo, e não dos "amigos do rei", que se apropriam de seus recursos. Essa gente, imersa em profunda ignorância, acha que é antipatriótico pesquisar as falcatruas milionárias existentes nessas empresas, verdadeiros cabides de emprego e antros de corrupção.

O que é perturbador, entretanto, é que existe uma solução extremamente fácil e inegavelmente justa para o dilema: se a empresa é do povo, basta que cada cidadão receba uma fatia proporcional do seu controle acionário. Com isso, o povo realmente será o dono da empresa, e cada um terá a liberdade de escolher o destino de sua participação. Foi o que Margaret Thatcher fez na Inglaterra, pulverizando o capital de algumas estatais, devolvendo ao povo na prática o que era dele somente na teoria.

Negando uma proposta tão vantajosa, os aliados do governo estarão confessando a real propriedade dessas empresas, ou serão obrigados a acusar o povo de "bando de mentecaptos", incapazes de saber o que fazer com sua propriedade.

Se a empresa é do povo, e se sou parte do povo, onde está minha parte na empresa? Quero ter a opção de vendê-la, se julgar sua gestão ineficiente. Posso?

Deu no Valor

segunda-feira, maio 25, 2009

A Estrada da Liberdade



Rodrigo Constantino

“Poucas pessoas são motivadas a questionar a legitimidade das instituições estabelecidas.” (George H. Smith)

Por que as ruas e estradas devem ser administradas pelo governo? Eis uma pergunta que quase ninguém faz, pois a maioria toma como certa a necessidade do governo na gestão e controle das vias de transporte. Mas será que deveria ser assim? Foi essa pergunta que o economista Walter Block resolveu fazer, e o título de seu mais recente livro, The Privatization of Roads & Highways, já deixa evidente a resposta que ele chegou. Para Block, não há necessidade alguma de a gestão das ruas ficar nas mãos ineficientes do governo. Ao contrário, Block está convencido de que a elevada taxa de mortes nas estradas seria drasticamente reduzida caso as ruas e estradas fossem privatizadas, sem falar de custos menores para os usuários. As ruas públicas “grátis” acabam custando caro demais aos pagadores de impostos.

O argumento básico do livro é que o setor privado, pressionado pela necessidade de agradar seus clientes para obter lucro num ambiente competitivo, terá que ser mais eficiente na gestão de bens e serviços, e as vias de transporte representam apenas mais um serviço. De fato, as ruas privadas já existentes causam menos acidentes que as vias públicas, e há uma responsabilidade bem mais definida quando se trata da gestão privada. Se uma estrada privada apresenta elevada taxa de acidentes por maus cuidados, a empresa responsável será um alvo visível de graves acusações, podendo inclusive falir. Mas quando se trata de uma estrada pública, fica bem mais complicado achar o culpado e responsabilizá-lo. O que é de “todos” acaba não sendo de ninguém.

Talvez a maior inversão já criada no campo das idéias econômicas é a de que o governo se preocupa com o longo prazo, enquanto os empreendedores, no ímpeto de maximizar lucros, focam apenas no curto prazo. É justamente o contrário: os políticos desejam continuar no poder e, portanto, focam apenas nas próximas eleições, enquanto os capitalistas, para obter o maior valor possível com seus ativos, precisam olhar mais para frente, pois o valor presente de seus bens é o somatório do fluxo de caixa que eles irão gerar ao longo do tempo. Transportando esta lógica para o caso das estradas, fica mais fácil compreender porque os governos usam materiais piores nas construções, enquanto o setor privado precisa manter a boa qualidade das ruas para continuar atraindo consumidores. Basta pensar numa empresa aérea: se ela apresentar elevado índice de acidentes, irá rapidamente falir.

Apesar de toda a lógica dos argumentos a favor da privatização das ruas e estradas, Block reconhece que o tema está tão fora do radar de todos que a maioria vai ignorar seu livro como coisa de lunático. No entanto, ele acredita no poder das idéias, e lembra que muitos extrapolam o presente sem se dar conta que mudanças radicais de fato acontecem. Poucos diriam nos anos 1980 que a União Soviética iria se desintegrar rapidamente nos anos seguintes. No entanto, aconteceu. Há uma tendência natural de encarar o status quo como inevitável, principalmente se ele estiver em vigência por tempo demais. Talvez alguém fosse rotulado de sonhador ou maluco se defendesse o fim da escravidão no século XVIII, já que a humanidade sempre conviveu com esta prática nefasta. No entanto, a escravidão foi abolida em vários países, em boa parte por causa da pressão das idéias liberais iluministas. Mesmo as instituições mais enraizadas podem mudar. E questionar suas origens, assim como sua eficiência ou necessidade, é função essencial de quem deseja sempre melhorar. Não é porque algo “sempre” foi de um jeito que deve continuar sendo. Não é porque os homens “sempre” usaram magia para “curar” doenças que devemos seguir tais métodos.

E na verdade, nem sempre as ruas, ferrovias e pontes foram estatais. Antes do século XIX, muitas ruas e pontes na Inglaterra e nos Estados Unidos foram construídas por empresas privadas. O empresário James J. Hill, por exemplo, construiu a Great Northern Railroad, uma ferrovia transnacional, sem subsídio algum do governo. Sua ferrovia era bem mais eficiente que as demais, com subsídios estatais. Além disso, Hill comprou direitos de passagem, enquanto o governo usava a força para obrigar proprietários a entregar suas terras para a construção das ferrovias. A qualidade do material utilizado por Hill era bastante superior a de seus concorrentes. Sabendo que seu sucesso dependia do sucesso de seus clientes, Hill repassava a redução de custos para os preços, pressionando para baixo as tarifas de transporte. A ferrovia de Hill foi a única transnacional que nunca foi à bancarrota. Enquanto isso, seus concorrentes dedicavam mais tempo ao jogo político do que à gestão efetiva das ferrovias, pois seus negócios dependiam de subsídios do governo. Essas ferrovias foram à falência.

O governo tem planejado, construído e administrado a rede de transportes públicos por tanto tempo que poucas pessoas conseguem imaginar qualquer alternativa possível. Assim como era impensável ter empresas privadas controlando o setor de telefonia em seus primórdios, atualmente poucos pensam que há um meio melhor de se gerir estradas. Entretanto, como Block demonstra ao longo de seu livro, essa alternativa existe, e seria bem mais eficiente na gestão das ruas e estradas. A quantidade de acidentes fatais certamente seria reduzida. Block responsabiliza o governo por tantas mortes, que ultrapassam 40.000 por ano nos Estados Unidos há décadas (no Brasil chega a 50.000 mortes anuais). Como o autor diz, é uma falácia lógica culpar as condições inseguras pelos acidentes e ignorar o administrador que deveria ser responsável por tais condições. Se as avenidas são inseguras, isso é responsabilidade do governo, que é quem cuida delas.

Ao defender o livre mercado para ruas e estradas, Block argumenta que não há nada de tão especial assim nesse setor, que nada mais é do que um meio de transporte. Os mesmos princípios econômicos aceitos para outras arenas da experiência humana se aplicam a este setor também. Em primeiro lugar, deve-se reconhecer que uma rua é um recurso escasso. De fato, a maior dificuldade ao tratar do tema é o fator psicológico, e não os aspectos técnicos. A idéia de que as ruas podem ser consideradas “pedaços de propriedade privada” parece absurda para muita gente, acostumada a pensar nelas como bens livremente disponíveis para qualquer um. Mas ruas não caem do céu. Elas necessitam de recursos escassos, que custam caro. Alguém deve pagar por elas. A questão aqui é se sai mais barato delegar ao governo essa tarefa ou não. Como Block argumenta, a gestão estatal é sempre mais ineficiente, pois faltam os mecanismos adequados de incentivo, existentes apenas no livre mercado. Além disso, Block levanta o aspecto moral das ruas serem privadas, pois nada mais justo do que quem usa pagar pelo transporte, em vez de obrigar todos a pagar, independente do uso.

Várias questões específicas do setor de transporte surgem quando se pensa na total privatização, defendida por Block. No decorrer do livro, com mais de 400 páginas, o autor tenta responder todas as críticas e dúvidas que este modelo levanta. Por exemplo, muitos argumentam que um proprietário poderia ficar isolado em sua casa se alguém comprasse a única rua de acesso a ela e resolvesse vetar sua passagem. Block responde que ninguém compraria um pedaço de terra sem antes se assegurar que tem o direito contratual de entrar e sair dela de acordo com sua vontade. No fundo, isso já ocorre em alguns casos no mercado, quando alguém aluga ou compra apenas uma sala de um andar, por exemplo. O dono da sala não é dono do prédio, mas isso não quer dizer que ele pode ser barrado de repente, do nada, pelo proprietário do prédio. O contrato garante que uma situação absurda dessas nunca ocorra*.

Um dos principais problemas do trânsito é, sem dúvida, a praga dos congestionamentos em horário de pico. Block dedica um capítulo inteiro a este tema, e argumenta que somente o livre mercado pode solucionar o problema. Em primeiro lugar, é preciso deixar claro o enorme custo que o congestionamento representa, com um absurdo desperdício de tempo dos trabalhadores. A questão da "hora do rush", no entanto, não é exclusividade do setor de transportes. Vários negócios são obrigados a lidar com isso, e o fazem de forma satisfatória. Os bons restaurantes, por exemplo, adotam a prática de reservas. Os teatros cobram mais caro por eventos noturnos mais demandados, oferecendo descontos para matinê. Hotéis elevam seus preços em alta temporada. Lojas de conveniência cobram mais que supermercados. Até mesmo guarda-chuvas são vendidos mais caros quando está chovendo, pois há mais demanda emergencial.

O problema com as ruas, portanto, é a ausência do funcionamento do mercado, onde os consumidores podem expressar suas preferências através do mecanismo de preço. Sempre que um empresário se depara com um “excesso de demanda”, ele faz o possível para atendê-la, pois isso representa mais receita e lucro. Congestionamento nada mais é que excesso de demanda. Somente no setor público que o consumidor pedindo serviço adicional é visto como um fardo. Sem o mecanismo de preços, não é possível saber o verdadeiro valor que cada consumidor atribui ao uso da rua. Se cada um pudesse decidir pagar mais para usar a rua em determinada hora, o uso ficaria mais restrito àqueles que realmente valorizam o serviço naquele momento. E não é verdadeiro que somente os mais ricos teriam vantagem, pois um jumbo com centenas de passageiros com freqüência paga mais que jatos privados pelo uso de slot nos aeroportos, apesar da diferença de riqueza entre os usuários. Ou seja, é bem possível que ônibus teriam mais capacidade e interesse de pagar mais caro para utilizar filas e vias menos congestionadas no horário de pico.

Essa solução de mercado é infinitamente mais eficiente e justa que as “soluções” arbitrárias do governo diante do problema de muita demanda, como o conhecido racionamento. Afinal, o racionamento trata todos os consumidores como se eles fossem iguais em suas preferências, o que é claramente falso. Esse sistema, como o rodízio de placas, não permite que o uso mais valorizado na margem predomine. Em Cingapura, foi adotada parcialmente a solução de mercado, com relativo sucesso, através do Electronic Road Pricing (ERP), um mecanismo eletrônico de cobrança de acordo com o uso da via. Se o mercado fosse totalmente livre para funcionar nesse setor, sem dúvida os resultados seriam fantásticos.

Muitos outros pontos são abordados por Block, mas ele mesmo reconhece que inúmeras soluções de mercado, ainda desconhecidas, iriam surgir. Essa é justamente a grande maravilha do livre mercado: na interação de milhões de consumidores e empresários, num processo dinâmico de tentativa e erro, soluções antes ignoradas vão aparecendo. O conhecimento disponível hoje não é suficiente para antecipar todas as possibilidades que se apresentarão. Por isso mesmo o planejamento central é sempre um fracasso: além de faltarem os mecanismos adequados de incentivo, como punição pelo erro e premiação pelo acerto (prejuízo e lucro), os burocratas são obrigados a contar apenas com o seu conhecimento presente, bastante limitado. Já no livre mercado, todo o conhecimento disperso entre os indivíduos poderá ser utilizado para criar soluções hoje desconhecidas. Portanto, Block é humilde o suficiente para saber que não tem todas as respostas, apesar de oferecer várias delas através de sugestões interessantes. Ele sabe que o próprio mercado será a melhor fonte das respostas demandadas.

Em resumo, a idéia de privatizar as ruas e estradas pode gerar reações imediatas negativas, em parte explicadas por questões emocionais. Mas, uma vez submetida a uma reflexão mais profunda, não há motivo para encarar este serviço de forma tão diferente dos demais. Os consumidores demandam transporte. Nada garante que o governo é o melhor meio de oferecer tais serviços. Pelo contrário, tanto a lógica econômica quanto a experiência mostram que o governo não é uma boa opção nesse caso. É inegável que o modelo atual fracassou. As mortes por acidentes são absurdamente altas, o trânsito é caótico, muitas ruas e estradas parecem queijos suíços de tantos buracos, e o custo do atual modelo é extremamente alto, através dos impostos pagos. Como coloca Block, um trabalho pior do que o realizado atualmente pelo governo é difícil de imaginar. A estrada pública tem representado a estrada da morte e da escravidão. Por outro lado, a estrada privada seria a estrada da vida e da liberdade.

* Rothbard escreve em For a New Liberty: “The answer is that everyone, in purchasing homes or street service in a libertarian society, would make sure that the purchase or lease contract provides full access for whatever term of years is specified. With this sort of ‘easement’ provided in advance by contract, no such sudden blockade would be allowed, since it would be an invasion of the property right of the landowner”.

sábado, maio 23, 2009

A Estrutura do Capital



Rodrigo Constantino

“Qualquer tentativa de combater a crise com a expansão de crédito, portanto, será não apenas o simples tratamento dos sintomas como causas, mas poderá também prolongar a depressão atrasando os ajustes reais inevitáveis.” (Hayek)

Em um ambiente acadêmico com foco coletivista na economia, a figura de Ludwig Lachmann merece destaque, principalmente por sua contribuição na teoria do capital com base no subjetivismo “austríaco”. Lachmann recebeu seu doutorado pela Universidade de Berlim, e foi durante seu período na London School of Economics que ele formou melhor suas idéias sobre a economia “austríaca”, sob forte influência de Hayek. Em vez de aceitar a premissa totalmente irrealista de uma estrutura de capital homogêneo, Lachmann propôs o conceito de uma estrutura de capital composta de uma grande variedade de elementos produtivos complementares. A obsessão de muitos economistas com modelos de equilíbrio e dados agregados acaba gerando conclusões econômicas falaciosas. Nesse contexto, o livro Capital & Its Structure, originalmente publicado em 1956, ainda parece bastante atual e merece maior atenção num mundo dominado pelo keynesianismo.

A teoria do capital deve ser uma teoria dinâmica, basicamente porque as mudanças no uso de bens duráveis refletem a aquisição e transmissão de conhecimento. Os modelos estáticos de equilíbrio, que tratam o capital como se fosse homogêneo, pecam por não permitir essa ênfase no processo de mudança nos mercados. O que define o capital, em primeiro lugar, não são suas propriedades físicas, mas suas funções econômicas. E estas dependem do consenso dos empresários, da capacidade de se extrair lucro de seu uso. Uma instalação fabril, um barril de bebida, um alto-forno, esses bens representam capital à medida que os empresários conseguem utilizá-los para obter ganhos no mercado. E o principal agente de todos os processos econômicos é justamente essa interação de mentes, a transmissão de conhecimento no mercado, que permite ajustes constantes na estrutura desse capital heterogêneo.

A complexidade começa justamente porque esse capital, ao contrário do trabalho, carece de uma unidade “natural” de medida. Enquanto podemos somar a quantidade de trabalhadores, não podemos somar barris de cerveja com caminhões e fios de cobre. Cada bem de capital pode ser usado apenas para um número limitado de propósitos, e em cada momento ele será destinado para aquilo que as circunstâncias sugerem como seu melhor uso ao seu dono, ou seja, seu uso mais rentável. Mudanças inesperadas, i.e., não planejadas pelos empresários, irão demandar mudanças no uso dos bens de capital. As combinações anteriores serão desfeitas. Por esta razão, não é possível medir o capital de forma acurada. Seu valor será afetado por cada mudança inesperada. Muita confusão surge quando economistas ignoram este fato e adotam a mentalidade do contador, encarando o capital como uma classe homogênea com base em sua expressão monetária.

Uma teoria do investimento, calcada na premissa de um estoque de capital homogêneo e quantificável, está fadada a ignorar importantes aspectos da realidade. Ela não consegue lidar com mudanças na composição desse estoque de capital. No entanto, parece evidente que tais mudanças representam algo de fundamental importância na economia. Diferentes bens de capital são não só heterogêneos, como complementares, e a estrutura de capital – as várias formas que esses bens serão usados – produz importantes impactos nas decisões de investimento. Em outras palavras, as decisões de investimento dependem em cada momento da composição do estoque existente de capital. Qualquer teoria que ignora este aspecto irá apresentar resultados no mínimo extremamente incompletos.

Uma importante conclusão desses pontos levantados por Lachmann diz respeito à quantidade de oportunidades de investimento que surgem graças ao fracasso de combinações passadas no estoque de capital. Ou seja, mudanças inesperadas fizeram com que planos antigos se mostrassem inadequados, e o capital destinado a estes projetos está agora mal alocado. Justamente por vivermos num mundo de constantes mudanças inesperadas, que ninguém é capaz de antecipar, a função do empresário se torna crucial, para dissolver e re-arrumar a estrutura de capital existente, de forma a atender da melhor forma possível seu uso. Para tanto, o mecanismo de transmissão de conhecimento deve funcionar livremente, e este é o mecanismo de preços.

Lachmann destaca a relevância do aspecto subjetivista nessa aquisição de conhecimento. A conduta humana não segue um padrão determinado, e por ser moldado pela experiência individual, existe um claro aspecto subjetivista na interpretação das experiências. Pessoas diferentes reagem de forma diferente em experiências semelhantes. Assumir uma função dada de comportamento, ou uma equação de “reações empresariais”, significa tratar os empresários como autômatos incapazes de pensar de forma diferente. Portanto, a análise deve ser dinâmica para permitir expectativas variáveis dos diferentes empresários. Modelos matemáticos que ignoram esta subjetividade na interpretação das experiências passadas acabam sendo irrelevantes muitas vezes.

O progresso econômico é um processo que envolve tentativa e erro, e nessa trajetória, novo conhecimento é adquirido gradualmente, com freqüência de forma dolorosa, sempre representando perda para alguém. Bens de capital que foram originalmente destinados para alguma função precisam ser realocados pelos empresários. Os preços de mercado representam o mais eficiente mecanismo de transmissão do conhecimento disperso no mercado. Em um mundo com mudanças inesperadas, o principal problema da teoria do capital é adaptar o capital “mal investido” a outras funções. Esse é o principal papel dos empreendedores na economia. Impedir a mudança livre nos preços de mercado, portanto, é barrar a transmissão de conhecimento.

Existe, porém, outra forma de distorcer totalmente a estrutura de capital, que é a inflação. O processo inflacionário não “toca todos os sinos” ao mesmo tempo; alguns setores irão acusar a informação antes, sem reconhecer o fator ilusório nessa nova informação. Os empresários deste setor pensarão que seus planos iniciais eram tímidos, e novos projetos parecerão mais rentáveis do que são de fato. Programas de expansão de capital serão iniciados, que não seriam viáveis antes. Ocorre, portanto, um “mal investimento”, um desperdício de capital em planos guiados por informação enganosa. Quanto mais complexa a estrutura de capital na economia, resultado do progresso de uma sociedade, maior pode ser o estrago causado por esta distorção no mercado. Afinal, há uma grande “divisão de capital”, análoga à divisão de trabalho citada por Adam Smith, e por tabela uma especialização maior. A complementaridade dos inúmeros bens de capital será afetada de forma mais perversa pela distorção.

Em suma, o maior grau de complexidade poderá representar também um risco maior durante uma distorção nos preços, causada por intervenções do governo. O principal preço que pode levar a tais distorções é, sem dúvida, a taxa de juros. Quando esta é manipulada, de forma a permanecer artificialmente baixa, uma fase de grandes investimentos começa, sem que recursos adequados existam para suprir as necessidades futuras de capital. Para piorar a situação, até os recursos existentes acabam desperdiçados, utilizados de forma ineficiente e contando com bens complementares de capital que não estarão disponíveis. Para os keynesianos, o curso do ciclo econômico significa basicamente flutuações no grau de utilização dos recursos existentes. Mas, como Lachmann deixa claro, o reagrupamento dos recursos, assim como o aumento ou redução em certas direções, são fatores fundamentais do ciclo.

Logo, as soluções propostas pelos keynesianos não resolvem as crises causadas pelo período de forte aceleração dos investimentos. Ao contrário, podem acabar agravando os males criados pelas distorções no mercado, contribuindo para uma visão ainda mais nebulosa dos empresários. Políticas destinadas a restaurar as magnitudes dos valores agregados macroeconômicos, como emprego ou renda, irão fracassar. As conseqüências dos erros nos planos de investimentos na fase da bonança são inevitáveis. Alguém terá que pagar por eles*. Um esforço do governo para simplesmente manter a demanda agregada através do estímulo ao consumo irá prejudicar o processo necessário de ajuste. Impedindo o reajustamento da estrutura de capital, o governo cria novamente a ilusão de que projetos fracassados são bem-sucedidos, e acaba estimulando a alocação de mais capital para projetos que deveriam ser abandonados.

Enfim, sem a pressão dolorosa das forças de mudança não há progresso econômico, e são as ações dos empreendedores, na especificação dos usos do capital, que permitem esse progresso econômico.

* Mises, em Human Action, escreve: “One must provide the capital goods lacking in those branches which were unduly neglected in the boom. Wage rates must drop; people must restrict their consumption temporarily until the capital wasted by malinvestment is restored. Those who dislike these hardships of the readjustment period must abstain in time from credit expansion”.

quinta-feira, maio 21, 2009

Dia da Liberdade de Impostos



Rio de Janeiro terá pela primeira vez o Dia da Liberdade de Impostos

No Brasil, infelizmente, a maioria da população não sabe o quanto paga de tributos. Entretanto, todos os brasileiros, direta ou indiretamente, pagam uma grande quantidade de impostos, taxas, contribuições etc. O cidadão tem todo o direito de ser informado, a todo o momento, do valor dos tributos que é obrigado a pagar.

De acordo com a carga tributária atual, os brasileiros têm de trabalhar 145 dias por ano (de 1º de janeiro até 25 de maio) apenas para pagar os tributos (impostos, taxas e contribuições) cobrados pelos governos (Municípios, Estados e União Federal). Para lembrar a data e chamar a atenção da opinião pública para a questão, será realizado pela primeira vez no Rio de Janeiro, o Dia da Liberdade de Impostos, em que a população poderá adquirir gasolina sem o preço dos tributos, que será pago pelas entidades organizadoras. Parte de um esforço nacional, além do Rio de Janeiro, o evento também será realizado em Porto Alegre, São Paulo e Belo Horizonte.

No dia que simboliza a data em que o consumidor para de trabalhar para pagar impostos, a venda de gasolina será subsidiada no Posto Repsol (em frente ao Canecão), que fica na Rua Gen. Goes Monteiro, 195, Botafogo. Em lugar dos R$ 2,54 por litro/gasolina normalmente cobrado, os consumidores pagarão o valor de R$ 1.27 por litro, que é quanto a gasolina custaria se não incidissem tributos como a CIDE, PINS, Cofins e ICMS.

No Rio de Janeiro, o Dia da Liberdade de Impostos está sendo organizado pelo Instituto Millenium e pelo Ordem Livre. Para Túlio Severo Jr., um dos organizadores do evento, o objetivo principal é “permitir que a população compreenda que todos pagam impostos e que todos devem participar, legitimamente, na construção de um Brasil melhor, exigindo melhores serviços públicos e maior transparência”.

Paulo Uebel, Diretor Executivo do Instituto Millenium, que está colaborando para o Dia da Liberdade de Impostos, explica que decidiu apoiar o Dia da Liberdade de Impostos para ajudar na educação cidadã das pessoas. “Como temos a missão de promover a Democracia, é fundamental envolver todos os cidadãos brasileiros na discussão de temas importantes para o desenvolvimento do Brasil. Quando as pessoas tomam conhecimento de que são pagadores de impostos, mesmo que indiretamente, elas ficam mais motivadas e legitimadas a participar deste debate. A alienação popular é muito ruim para a Democracia”, explica.

Para Diogo Costa, coordenador geral do OrdemLivre.org, a redução dos impostos está intimamente ligada à diminuição da pobreza. “Nenhum país conseguiu se desenvolver por meio da tributação excessiva”, afirma. “Quem gasta o dinheiro dos outros, gasta mal e irresponsavelmente. Se queremos um Brasil mais próspero, um dos primeiros passos é garantir que a renda das famílias brasileiras não seja tomada de suas mãos pelos impostos do governo. É mais do que uma questão de economia. É uma questão de justiça”.

As vendas serão limitadas a 20 litros de gasolina por veículo. As senhas para abastecer com desconto serão distribuídas a partir das 10h e a venda se inicia às 11h. Somente os consumidores que tiverem a senha poderão abastecer com desconto e, após encerrada a cota de 4.000 litros, a ação será encerrada. Será aceito somente pagamento em dinheiro. A diferença no preço do combustível será paga pelas entidades organizadoras.

Serviço – Dia da Liberdade de Impostos Rio de Janeiro.
Data: 25 de maio de 2009.
Local: Posto Repsol (Canecão)
Endereço: Rua Gen. Goes Monteiro, 195, Botafogo
Horário: Distribuição de senhas a partir das 10h. Abastecimento após às 11h.
Valor da Gasolina: R$ 1,27 litro/gasolina (valor original: R$ 2,54 litro/gasolina)
Pagamento: Apenas dinheiro.

Demais locais onde será realizado o Dia da Liberdade de Impostos:
Belo Horizonte: Posto Albatroz (Esso) - Av. Afonso Pena, esquina com a Av. Brasil – Pç. Tiradentes
Porto Alegre: Firenze Combustíveis – Rua Santana, 345
São Paulo: Posto Centro Automotivo Portal das Perdizes (Ipiranga): Av. Sumaré, esquina com a rua Dr. Franco da Rocha.

quarta-feira, maio 20, 2009

O Sri Lanka e os perigos das políticas de cotas



Rodrigo Constantino, Globo.com

"Não olhe para onde você caiu, mas para onde escorregou" - Provérbio africano

O presidente do Sri Lanka, Mahinda Rajapaksa, declarou oficialmente a vitória das tropas de seu governo sobre os rebeldes do grupo separatista Tigres de Libertação da Pátria Tâmil, após 26 anos de guerra civil. Voltar às origens deste conflito, que tirou a vida de mais de 70 mil pessoas, pode ser útil para se chegar a algumas conclusões. Em seu livro “Ação afirmativa ao redor do mundo”, Thomas Sowell analisa o caso de Sri Lanka, concluindo que o regime de cotas imposto à população foi uma das causas do conflito.

A população de Sri Lanka é de 20 milhões de habitantes, com aproximadamente três quartos formados por cingaleses, sendo que a minoria principal, os tâmeis, constitui menos de um sexto da população. Antiga colônia inglesa do Ceilão, o Sri Lanka conseguiu a independência em 1948. Não ocorrera uma única rixa racial entre os cingaleses e tâmeis durante a primeira metade do século XX, independente da posição relativa bem mais favorável dos tâmeis, por fatores históricos, como o maior domínio inglês em regiões habitadas por eles. Os tâmeis foram, em boa parte, educados por ingleses e americanos, que deram maior ênfase a matemática e ciência. Prosperaram então, a despeito das regiões mais ricas em recursos naturais estarem no controle dos cingaleses.

Na independência, as posições de poder, riqueza e prestígio estavam principalmente nas mãos das elites cultas que falavam inglês, freqüentemente cristãs, tanto de cingaleses quanto de tâmeis. A maioria, formada por cingaleses, pretendia tomar o poder. Adotaram o lema da “língua própria” contra a dominação do inglês. Como tantos outros lemas políticos, o pleito pela “língua própria”, em lugar do inglês, escondia outros interesses obscuros. Houve rápida transição para a defesa de “somente o cingalês” como idioma do Sri Lanka, visando na verdade ao acesso de empregos, especialmente do governo. Atingir as minorias tâmeis era o real alvo dessa medida.

Um ambicioso membro do governo, Solomon Bandaranaike, partiu para a oposição, criando seu próprio partido em 1951, e levando a bandeira da luta pela língua própria. Ele não representava todos aqueles em nome dos quais falava com tanta estridência. Era na verdade um aristocrata cingalês, cristão educado em Oxford. Mas Bandaranaike converteu-se ao budismo, esforçou-se para falar cingalês e se tornou defensor radical da cultura, idioma e religião cingaleses. Com certeza seus objetivos não eram religiosos. Ele pretendia ser primeiro-ministro. E conseguiu.

Sua administração produziu a legislação que especificou “só o cingalês” como idioma oficial de Sri Lanka. Essa política tornou-se foco de desavenças intergrupos em vista de sua potencialidade para influir profundamente sobre as oportunidades na educação e emprego. O governo instituiu ainda a aposentadoria obrigatória para os funcionários que não fossem capazes de falar o cingalês, dando um duro golpe nos tâmeis. A Constituição de Sri Lanka foi reformada para eliminar os preceitos que garantiam direitos às minorias. Como em vários outros casos, a democracia era apenas um caminho para a ditadura da maioria.

Bandaranaike chegou a tentar um acordo com os tâmeis, cedendo em alguns pontos, devido à forte reação destes. Mas a reclamação dos cingaleses, já lutando para perpetuar os novos privilégios, evitou que o acordo entrasse em vigor. Em 1959, um extremista budista cingalês assassinou Bandaranaike, alegando que ele traíra a causa. Os partidos políticos cingaleses aproveitaram o pretexto dos direitos dos grupos e competiram para ganhar os votos da maioria, oferecendo manutenção de regalias. Como em todos os demais casos de cotas, o que era para ser temporário vira permanente. Em 1972, foi introduzido um “sistema distrital de cotas”, fazendo despencar a proporção de estudantes tâmeis universitários.

Depois que apelos, protestos e campanhas de desobediência civil fracassaram na luta pela autonomia dos tâmeis, começou um movimento de guerrilha, e as demandas dos tâmeis escalaram-se, inclusive pregando a separação do país. Em 1975, foi formado o grupo guerrilheiro Tigres Tâmeis, e Sri Lanka estava em rota de guerra civil. Foi uma guerra repleta de atrocidades, de ambos os lados. Os tâmeis, sem o direito de secessão pacífica, começaram a fugir de Sri Lanka. A vizinha Índia recebeu mais de 40 mil tâmeis refugiados.

Tentando a paz, uma disposição na Constituição de 1978 reconheceu os direitos de idioma dos tâmeis, mas já era impossível restabelecer o status quo ante. Era muito pouco, muito tarde! A guerra civil prosseguiu por décadas, deixando mais de 70 mil mortos. Diferente da crença bastante difundida, não foi quando as disparidades econômicas eram maiores que a rixa intergrupo atingiu seu pico. Ao contrário, os cingaleses e os tâmeis conviviam pacificamente nos anos 1920, quando a minoria tâmil era mais rica em termos relativos. Não foram as desigualdades que conduziram à violência intergrupos, mas a politização de tais diferenças, assim como a promoção de políticas de identidade de grupos, como as cotas.

O caso de Sri Lanka é sintomático, demonstrando o perigo de medidas racistas, como as cotas. O uso político das desigualdades, mesmo que oriundas de causas históricas diversas, acaba favorecendo alguns inescrupulosos oportunistas, pois o benefício é concentrado e os custos são mais dispersos. Mas com o tempo, os resultados catastróficos são inevitáveis. Sri Lanka é uma boa prova de que as cotas podem transformar paz em sangue!

terça-feira, maio 19, 2009

O Culto à Democracia



Rodrigo Constantino

“Se a democracia é um meio para preservar a liberdade, então a liberdade individual é não menos uma condição essencial para o funcionamento da democracia.” (Hayek)

Atualmente, existe uma espécie de “culto à democracia”, entendida aqui como simplesmente o governo da maioria. Assume-se automaticamente que a maioria tem direito de decidir sobre tudo, incluindo temas totalmente restritos à esfera individual. Nesse contexto, vale a pena resgatar o que Friedrich Hayek tinha a dizer sobre o tema. Em sua obra clássica The Constitution of Liberty, ele dedica um capítulo ao assunto, explicando os riscos da democracia e lembrando que ela é apenas um meio para se obter determinados fins.

O liberalismo, segundo Hayek, está preocupado basicamente em limitar o poder coercitivo de qualquer governo, seja ele democrático ou não. Por outro lado, o democrata dogmático reconhece apenas um limite aos poderes do governo: a opinião atual da maioria. Hayek repete o que Aristóteles já havia dito: que a democracia pode resultar em poderes totalitários. O liberalismo é uma doutrina sobre o que a lei deveria ser, enquanto a democracia é uma doutrina sobre a forma de determinar o que a lei será. Enquanto o liberalismo prega a isonomia das leis, i.e., a igualdade de todos perante das leis, a democracia é um meio para se tentar alcançar tal finalidade.

Naturalmente, este meio pode falhar. Uma democracia pode facilmente criar inúmeras leis injustas e ineficientes, concedendo privilégios e, portanto, discriminando grupos. Mas, para o democrata dogmático, o fato de que a maioria deseja algo é motivo suficiente para considerar este algo desejável. Para ele, o desejo da maioria determina não apenas o que será a lei, mas o que será uma boa lei. Se o liberalismo se preocupa com o escopo e o propósito do governo, a democracia, por outro lado, nada tem a dizer sobre as metas do governo em si. O liberalismo defende princípios, enquanto a democracia oferece um método de escolha, que pode ou não respeitar tais princípios.

O uso indiscriminado do termo “democrático” representa muitas vezes um perigo à própria liberdade individual. Esta falácia parte da premissa de que, porque a democracia é uma coisa boa, então ela deve beneficiar a humanidade sempre que for estendida. Trata-se de um non sequitur. Como Hayek diz, existem pelo menos dois aspectos que podem servir para estender a democracia: o tamanho do grupo encarregado de votar e os temas que devem ser decididos pelo processo democrático. Em nenhum dos dois aspectos é possível concluir que todo avanço na extensão da democracia representa um ganho, ou que seria desejável estender indefinidamente a democracia. No entanto, na maioria dos debates sobre todo tema particular, o caso pela democracia é freqüentemente apresentado como desejável.

Hayek cita o próprio conceito de “sufrágio universal” para mostrar que há limites arbitrários na democracia. O limite de idade é o mais óbvio. Assume-se que há certa idade em que ainda não existe maturidade suficiente para decidir sobre as coisas públicas. Ninguém razoável poderia defender o método democrático para as escolhas de uma família com três filhos, por exemplo. No entanto, existem outros limites, como criminosos, residentes estrangeiros, etc. Hayek argumenta então que diferentes limites seriam igualmente arbitrários caso fossem adotados. Por exemplo, o voto apenas de adultos com mais de 40 anos, ou somente os que possuem renda, ou apenas os alfabetizados. Para Hayek, seria possível argumentar também que os ideais da democracia estariam melhor servidos se os funcionários do governo fossem excluídos do voto. Em resumo, o fato de que o sufrágio universal de “adultos” (no caso brasileiro, jovens de 16 anos inimputáveis por crimes podem votar) prevaleceu na maioria dos países não prova que essa deve ser a regra com base em algum princípio básico.

Outro ponto levantado por Hayek é o próprio limite arbitrário de nação. O direito da maioria é normalmente reconhecido somente dentro de um determinado país, mas o que define um país nem sempre é uma unidade óbvia ou natural. Certamente ninguém considera um direito dos cidadãos de um país grande dominar aqueles de um país vizinho menor, somente porque estão em maior número. No entanto, muitos assumem que dentro de um país os direitos da maioria são absolutos, o que carece de argumentação lógica. A democracia não é um valor absoluto. Os poderes de uma maioria temporária devem ser limitados por princípios de longo prazo, justamente para evitar a tirania da maioria. Apenas a aceitação desses princípios comuns torna um grupo de pessoas uma comunidade livre.

Para o liberal, existem coisas que ninguém tem o direito de fazer, seja um rei, seja uma maioria democrática. Conforme alerta Hayek, é quando se aceita que “na democracia o certo é aquilo que a maioria decide”, que a democracia degenera em uma demagogia. De fato, a democracia é o método mais pacífico para mudar governos que existe. Mas isso, sob hipótese alguma, quer dizer que as escolhas da maioria serão sempre certas. Hayek destaca o importante papel da democracia, de educar as massas ao longo do tempo, justamente porque todos acabam participando do processo de formação de opinião. Esse processo dinâmico é que garante o valor da democracia, não seu aspecto estático, ou seja, a escolha pontual dos governantes. Seus benefícios, portanto, costumam aparecer somente no longo prazo, enquanto suas conquistas imediatas podem ser inferiores a de outras formas de governo.

A ditadura do “politicamente correto” é outro risco do “culto à democracia”. A concepção de que a opinião da maioria deve ditar os padrões seguidos por todos representa o oposto do princípio que permitiu o avanço da civilização. O avanço, como afirma Hayek, consiste em poucos convencendo muitos. Novas visões devem antes surgir para depois se tornarem visões majoritárias. Como ninguém sabe quem será o mais apto a moldar novas visões, deixamos o processo de decisão aberto, sem controle da maioria. É pela conduta diferente de uma minoria que a maioria pode aprender algo novo e melhorar. A ditadura da visão majoritária, por outro lado, assume uma postura estática, como se todo o conhecimento necessário para o avanço futuro estivesse disponível. Isso acaba destruindo a capacidade de evolução da civilização.

Por fim, não é uma postura “antidemocrática” tentar convencer a maioria de que existem limites que não devem ser ultrapassados pela própria democracia. Para a sua sobrevivência mesmo, a democracia deve reconhecer que não é a fonte da justiça. O perigo, como coloca Hayek, é quando confundimos um meio de garantir a justiça com a própria justiça em si. Por esta ótica, dois lobos e uma ovelha escolhendo democraticamente qual será o jantar levaria a um resultado totalmente justo. O liberal discorda, pois entende que a ovelha tem o direito de não virar janta de lobo, independente do que deseja a maioria do momento.

segunda-feira, maio 18, 2009

A Revolução Capitalista



Rodrigo Constantino

“O capitalismo de livre mercado, baseado na propriedade privada e troca pacífica, é a fonte da civilização e do progresso humano.” (Thomas DiLorenzo)

Os Estados Unidos são indubitavelmente uma nação próspera, vista como o ícone do capitalismo. Mas bem em suas origens, quando os primeiros colonos ingleses chegaram, os pilares capitalistas ainda não estavam presentes. Originalmente, os colonos adotaram um modelo de propriedade comum, e o resultado foi a fome e mesmo a morte para grande parte desses colonos. Foi a mudança para o regime de propriedade privada que permitiu o avanço rumo à prosperidade, como argumenta Thomas DiLorenzo em How Capitalism Saved America.

Os primeiros colonos chegaram a Jamestown no ano de 1607, e encontraram um solo incrivelmente fértil, além de muitos frutos do mar e frutas. Entretanto, dentro de seis meses, 66 dos 104 colonos que vieram estavam mortos, a maioria por causa da fome. Dois anos depois, a Virgínia Company mandou mais 500 “recrutas” para se estabelecerem em Virgínia, e dentro de seis meses, 440 tinham morrido de fome ou doenças. DiLorenzo argumenta que a ausência de direitos de propriedade destruiu completamente a ética de trabalho desses colonos. Afinal, não existiam incentivos para o trabalho, já que a recompensa pela produtividade não era do próprio trabalhador, mas de “todos”. Esse modelo cria um claro incentivo ao ato conhecido como “free ride”, ou seja, pegar carona no esforço alheio.

Em 1611, o governo britânico enviou Sir Thomas Dale para servir como “high marshal” na colônia de Virgínia. Dale notou que, apesar da maioria dos colonos ter morrido de fome, os sobreviventes gastavam boa parte do tempo em jogos. Dale logo identificou o problema: o sistema de propriedade comum. A propriedade privada logo foi adotada, e a colônia imediatamente começou a prosperar, inclusive praticando trocas voluntárias com os índios. As vantagens mútuas do sistema de divisão de trabalho com base na propriedade privada acabam sempre favorecendo as trocas pacíficas, pois faz pouco sentido entrar em guerra com o vizinho quando se pode prosperar pelo comércio.

Os investidores no Mayflower chegaram em 1620 a Cape Cod, assumindo um grande risco financeiro, já que os investidores em Jamestown tinham perdido quase todo seu investimento. Ainda assim, eles cometeram o mesmo erro de seus antecessores, estabelecendo propriedade coletiva da terra. Cerca de metade dos 101 aventureiros que chegaram a Cape Cod estava morta em poucos meses. O principal investidor do Mayflower, o londrino Thomas Weston, chegou à colônia disfarçado para examinar a ruína do empreendimento. Mas os problemas logo seriam solucionados da mesma forma que ocorrera em Jamestown. A propriedade coletiva foi abandonada, e em 1650, as fazendas privadas já eram predominantes em New England. A propriedade privada, pilar básico do capitalismo, seria a salvação das colônias americanas. Mas esses colonos prósperos estavam cada vez mais preocupados com outra ameaça: o governo britânico e sua tentativa de impor o mercantilismo nas colônias.

A Declaração de Independência Americana condenava a tirania da Coroa Britânica, assim como sua postura econômica em relação às colônias americanas. A Declaração menciona diretamente o fato de o governo britânico cortar o comércio das colônias com as outras partes do mundo, e o rei foi acusado de criar impostos sem consentimento dos colonos. Nesse sentido, a Revolução Americana foi contra o mercantilismo, e a favor do capitalismo. Ela representava a luta pela liberdade do comércio, contra um governo que abusava de seu poder de confiscar a propriedade dos colonos pelo uso da força.

Uma das primeiras leis mercantilistas impostas aos colonos foi o Molasses Act de 1733, que criou uma elevada tarifa para a importação de melaço. Uma série de leis conhecidas como Navigation Acts representou mais um grande passo em direção ao mercantilismo imposto na América. Essas leis foram uma importante causa da Revolução. Para proteger a indústria de navios britânicos da competição, essas leis proibiram qualquer navio construído fora do Império Britânico de praticar comércio com as colônias. Outro aspecto dessas leis era uma longa lista de produtos feitos nas colônias, como açúcar e tabaco, que poderiam ser exportados apenas para a Inglaterra. Mesmo que esses bens fossem comercializados nos demais países da Europa, antes eles tinham que passar pela Inglaterra e somente depois seriam redirecionados. Por fim, as leis de navegação criaram um enorme aparato burocrático de regulação e subsídios.

O grau de imposição mercantilista nas colônias aumentou consideravelmente após o término da Guerra dos Sete Anos em 1763. Apesar da vitória britânica contra a França, a Inglaterra estava com um enorme déficit e um império gigantesco cada vez mais caro de se manter. Uma série de novas medidas para aumentar impostos foi adotada para subsidiar o Império. Em 1764, o governo britânico criou o Sugar Act, que aumentou impostos para a importação de açúcar. Em 1765, o Stamp Act criou a obrigação do uso de selos do governo para todas as transações com papel nas colônias. Apesar de não ser tão caro, esse imposto novo era mais aparente que os demais, e despertou a revolta de muitos colonos, que começaram a questionar o poder arbitrário da Coroa inglesa. Os selos eram apenas um “roubo legalizado” para muitos. O Parlamento Britânico acabou revogando o ato em 1766, sob pressão dos colonos.

Em 1767, os Townshend Acts impuseram várias tarifas novas de importação de produtos ingleses. O governo acabou sendo forçado a desistir dessas novas leis também. Em 1773, novas tentativas de aumento de impostos ocorreram. Dessa vez, o Tea Act iria impor tarifas maiores para a importação de chá. Os comerciantes americanos, temendo a ruína econômica com esse ato, se uniram e orquestraram a famosa Boston Tea Party, onde colonos vestidos de índios jogaram toneladas de chá no mar. Finalmente, em 1776 os colonos não mais toleravam os abusos do governo britânico, e se revoltaram em busca de liberdade.

A Revolução Americana pode ser vista como uma luta contra o mercantilismo, em defesa dos principais pilares do capitalismo de livre mercado. Com o tempo, ocorreram várias tentativas de se adotar o mercantilismo nos Estados Unidos, algumas infelizmente com sucesso. Não obstante, o país permaneceu razoavelmente livre, e foi justamente isso que possibilitou tanto progresso. Foi o capitalismo que salvou a América!

sexta-feira, maio 15, 2009

Santo Deboche, Batman!



Rodrigo Constantino, para o Instituto Liberal

O ex-policial foragido e chefe de milícia, Ricardo Teixeira da Cruz, foi preso ontem. Batman, como ele é conhecido, havia fugido de Bangu 8 pela porta da frente do presídio, que é considerado de segurança máxima. Com Batman, foi apreendida uma lista com dezenas de nomes de policiais corruptos. Mas o que chamou a atenção mesmo foi o sorriso de deboche do preso, que ainda afirmou: “Não sou bandido, sou um ex-policial”. Como diria Robin, o parceiro de Batman nos desenhos animados: “Santo deboche, Batman!”

O lamentável fato é que o exemplo vem de cima. Como disse o Cardeal Retz, “quando os que mandam perdem a vergonha, os que obedecem perdem o respeito”. Como esperar uma postura muito diferente de um bandido quando os próprios governantes debocham dos cidadãos e da lei? Como esquecer a “dança da pizza”, onde a deputada petista Ângela Guadagnim comemorou a impunidade de seu colega de partido? Ou então Delúbio Soares na época da descoberta do “mensalão”, anunciando de forma profética que seus comparsas ainda iriam rir de tudo aquilo? Ou ainda o próprio presidente Lula beijando a mão de Jader Barbalho e avisando que se tratava de uma aula sobre como fazer política?

Os exemplos são infindáveis. A corja no poder acha graça de tudo que é imoral, contanto que não perca a sua “boquinha”. A ética foi jogada no lixo faz tempo no país de Macunaíma. E tal como o Batman, os políticos safados não se julgam bandidos. Eles estão apenas fazendo o jogo (sujo) da política. Como escreve Eduardo Giannetti em Auto-Engano, “por pior que seja aos olhos dos outros, nenhum homem consegue suportar uma imagem horrível e repugnante de si mesmo por muito tempo”. “A hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude”, escreveu La Rochefoucauld.

Nesse contexto, nós quase conseguimos admirar ao menos a sinceridade do deputado Sérgio Moraes, que confessou estar “se lixando para a opinião pública”. Pelo menos assim o véu da hipocrisia na política é retirado, restando apenas a asquerosa imagem da realidade desvelada: um bando de oportunistas lutando somente para manter o poder. Nada muito diferente do Batman, só que com o poder das leis nas mãos, e extorquindo mais ainda de suas vítimas.

quarta-feira, maio 13, 2009

O Perigo Nacionalista



Rodrigo Constantino

“A individualidade sobrepuja em muito a nacionalidade e, num determinado homem, aquela merece mil vezes mais consideração do que esta.” (Arthur Schopenhauer)

A linha que separa o patriotismo do nacionalismo é bastante tênue às vezes. Defender a pátria, ou seja, seu direito à propriedade e liberdade, é algo totalmente diferente de colocar a nação acima dos próprios indivíduos que a formam. Mas muitos ignoram isso, confundindo patriotismo com nacionalismo. O último é uma forma nefasta de coletivismo, que transforma o indivíduo em meio sacrificável em prol dos “interesses nacionais”. Ele invariavelmente desemboca na xenofobia. O amor à pátria vira o ódio ao estrangeiro. Demagogos sempre foram espertos ao utilizar o patriotismo genuíno dos cidadãos para concentrar poder, estimulando o nacionalismo xenófobo. Ninguém melhor que Hitler representa os enormes riscos disso. Seu nacional-socialismo chegou ao poder na Alemanha em 1933 usando o discurso nacionalista, e só foi eliminado 12 anos depois, com uma guerra que destroçou milhões de vidas.

O escritor alemão Thomas Mann foi um ferrenho inimigo do regime nazista, desde seu começo, tentando alertar o povo quanto ao perigo que ele representava. Exilado nos Estados Unidos durante a guerra, Mann foi convidado pela BBC para fazer discursos regulares a seus compatriotas, numa transmissão que muitos rádios clandestinos puderam captar na própria Alemanha nazista. Esses discursos foram reunidos no livro Ouvintes Alemães!, e mostram como Mann sempre manteve uma convicção “inquebrantável” de que o nazismo jamais poderia vencer a guerra. “A humanidade não pode tolerar o triunfo definitivo do mal, da mentira e da violência – ela simplesmente não pode viver com isso”, disse Mann. O nazismo representa tudo que há de mais podre na humanidade, e sua queda era inevitável. Hoje é bem mais fácil compreender isso, mas o fato lamentável é que muitos alemães foram seduzidos pelo discurso nacionalista de Hitler na época, assim como várias pessoas foram ludibriadas pelo comunismo igualmente perverso.

Nesse contexto, creio que os ataques que Mann faz ao nacionalismo em seus discursos merecem atenção, pois o nazismo pode estar enterrado, mas o nacionalismo não. Ele veste novas embalagens, mas sua essência coletivista, que usa os indivíduos como peões sacrificáveis, se mantém viva. Hitler e sua corja no poder souberam explorar esse nacionalismo de forma pérfida, associando inclusive uma eventual queda dos criminosos no poder à própria queda da Alemanha, como se os assassinos nazistas fossem a Alemanha em carne e osso. Os nacionalistas sempre tentam apelar para esta tática podre. Se seu líder é atacado ou criticado, o nacionalista afirma que é a nação que está sendo alvo dos ataques. O líder é a nação! E os inocentes úteis acabam confundindo tudo, incapazes de separar seus governantes do que sua pátria representa.

Mann reconhece que o nazismo tem suas origens nas idéias disseminadas pelo povo alemão, como o “romantismo”, por exemplo. Mas seria absurdo concluir que o nazismo é a Alemanha. Ele diz: “Sim, a história do nacionalismo e do racismo alemão que resultou no nacional-socialismo é longa e terrível; ela vem de longe, é interessante no início e se torna cada vez mais vulgar e abominável”. E acrescenta: “Mas confundir essa história com a própria história do espírito alemão e amalgamá-las numa só é pessimismo crasso e seria um erro perigoso para a paz”. Da Alemanha, afinal, vieram Bach, Beethoven, Goethe, e o próprio Mann, entre outros. A Alemanha nazista é um país doente, mas não são todos os alemães que representam esta doença abominável. É preciso julgar indivíduos, não a nação, como se esta fosse um ente concreto. Fazer isso seria cair no mesmo erro nacionalista.

O próprio exemplo de Mann é por ele utilizado para condenar a visão nacionalista: “Nenhum artista constrói sua obra para engrandecer a fama de seu país e de seu povo. A fonte da produtividade é a consciência individual, e mesmo que a simpatia que ela desperta venha beneficiar a nação em cuja língua e tradição se baseia, há acaso demais em jogo para que uma pretensão de reconhecimento se justifique. Vocês, alemães, não deveriam, ainda que quisessem, agradecer-me hoje por minha obra! Ela não foi feita por causa de vocês, e sim por uma necessidade pessoal imperiosa”. Eu confesso que sempre achei estranho sentir “orgulho nacional” só porque outros indivíduos nascidos no mesmo local do mapa atingiram o sucesso internacional. O orgulho sempre me pareceu algo bastante pessoal, dependente de nossa trajetória individual.

As próprias fronteiras nacionais chegam a ser questionadas por Mann em seus discursos: “Em um momento da história em que é tão evidente que aquilo que é nacional perde importância a cada dia que passa – em que a mera nação não pode mais resolver nenhum problema, seja ele político, econômico, espiritual ou moral, e em que a necessidade de redução e da limitação da soberania nacional se impõe –, eles se refestelam no nacionalismo, provocam uma guerra de opressão nacionalista, uma guerra pelas idéias criminosas da supremacia racial e da escravização dos povos por alguma linhagem eleita de senhores”. De fato, o estudo histórico da origem das nações – muitas formadas pela conquista territorial imposta e arbitrária, já serviria para amenizar essa idolatria ao conceito de nação.

Mann demonstra revolta com a manipulação que os nazistas fazem com todos os conceitos, incluindo o patriotismo. Ele chama o nacional-socialismo de “avesso de Midas”: tudo que ele toca apodrece, em vez de virar ouro. E não poderia ser diferente com o patriotismo. Nas mãos do nazismo, ele vira “arrogância estúpida, furiosa insolência racial, auto-endeusamento maníaco e assassino, ódio, violência e loucura”. Foi nisso tudo que o nazismo transformou o amor à pátria. Os líderes nacionalistas são apenas egoístas que manipulam as massas em benefício próprio. Eles mesmos não costumam colocar a nação acima de seus próprios interesses. “Os nazistas não se importam com a Alemanha; eles estão preocupados é com a própria pele”, afirma Mann. É sempre assim: o nacionalismo é uma arma poderosa de exploração nas mãos de oportunistas. O povo deverá se sacrificar pela nação, o que na verdade quer dizer: o povo será escravizado em prol dos interesses de seus governantes. Por isso, Mann acusa: “Nunca houve traidores mais ordinários de sua pátria do que esses nacionalistas”.

Por fim, justificando sua escolha de permanecer nos Estados Unidos após o fim da guerra, Thomas Mann diz a seus compatriotas: “Pois eu não sou nacionalista, quer vocês me perdoem isso ou não”. Eu também não sou nacionalista, e tenho calafrios quando escuto gente falando em nome dos “interesses nacionais”, ou que devemos nos sacrificar pela nação. Geralmente, essas pessoas querem apenas usar os outros em benefício próprio. Portanto, caro leitor, muito cuidado com os nacionalistas!

segunda-feira, maio 11, 2009

O Primeiro Banco Central



Rodrigo Constantino

“O propósito essencial do banco central é usar o privilégio governamental para remover as limitações criadas pelo free banking na inflação monetária e de crédito bancário.” (Rothbard)

O Banco Central é a instituição que possui o privilégio de controlar a emissão de papel-moeda nas economias modernas e, portanto, é o grande responsável pelo processo inflacionário. Muitos tomam como certa a necessidade de sua existência, não sendo capazes de imaginar como uma economia poderia funcionar sem um monopolista na emissão de moeda. No entanto, existem casos de sucesso na ausência de um banco central, assim como as origens do primeiro banco central na Inglaterra mostram os verdadeiros motivos por trás de sua criação.

Conforme explica Rothbard em The Mystery of Banking, a instituição de um Banco Central teve origem no final do século XVII na Inglaterra, na forma de um negócio obscuro entre um governo praticamente quebrado e uma claque de financistas oportunistas. A política externa inglesa na época, liderada pelo partido Whig, era claramente mercantilista e imperialista, com colônias conquistadas pela glória da Coroa. O grande rival da Inglaterra era o Império Francês, e para superar seu concorrente, a Coroa Inglesa estava disposta a um esforço de guerra ininterrupto durante meio século. Como a política de guerra custa caro, o governo inglês descobriu estar sem dinheiro e com seu crédito deteriorado nos anos 1690. O aumento de impostos seria a solução preferida pelo governo, mas após tantas guerras, esta medida não parecia politicamente viável. Como pagar as dívidas de guerra então?

Foi formado um Comitê em 1693 para arrumar uma forma de levantar recursos para pagar o esforço de guerra. William Paterson, um ambicioso escocês, propôs um esquema novo ao Parlamento. Em troca de privilégios especiais do Estado, ele e seu grupo iriam formar o Banco da Inglaterra, que iria emitir novas notas para financiar o déficit do governo. Como não havia poupadores privados suficientes desejando bancar este déficit, Paterson se mostrou disposto a comprar títulos do governo, contanto que ele pudesse fazer isso com notas bancárias criadas do nada e com garantidas especiais do governo. Assim que o Banco da Inglaterra foi criado em 1694, até o Rei William e vários membros do Parlamento viraram acionistas da fábrica de dinheiro recém-criada.

Paterson pressionou o governo para obter status de “legal tender” para suas notas, o que faria com que todos ficassem forçados a aceitar tais notas como pagamento de dívidas. O governo inglês recusou, provavelmente achando que Paterson havia ido longe demais, mas o Parlamento concedeu a vantagem do Banco da Inglaterra de manter todos os depósitos do governo, assim como o poder para emitir novas notas para o pagamento de dívida do governo. O Banco da Inglaterra logo emitiu uma grande soma de dinheiro, com efeito inflacionário imediato, e em apenas dois anos ele estava insolvente após uma corrida bancária. Nesse momento, lamenta Rothbard, uma decisão catastrófica foi tomada, com grandes conseqüências para o futuro: em maio de 1696, o governo inglês simplesmente permitiu que o Banco da Inglaterra suspendesse o pagamento em espécie. Em outras palavras, o banco poderia se recusar a honrar suas obrigações contratuais de resgate das notas em ouro. O banco seguiu este caminho, e suas notas automaticamente perderam 20% de valor em relação ao ouro.

Novos privilégios foram sendo criados no decorrer do tempo. A falsificação de notas do banco passou a ser punível com morte, e em 1708, o Parlamento tornou ilegal para qualquer banco além do Banco da Inglaterra emitir notas. Durante o estouro da bolha do South Sea, o Banco da Inglaterra sofreu nova corrida e novamente teve permissão de suspender o pagamento em espécie. Em 1833, o Banco da Inglaterra recebeu o privilégio permanente de ter suas notas servindo como “legal tender” no país. Neste momento, o banco já estava funcionando como um completo banco central.

Enquanto isso tudo acontecia, logo ao lado, na Escócia, predominava o sistema de free banking, sem um controle de um banco como o Banco da Inglaterra. Qualquer banco tinha liberdade de emitir notas, mas sem um banco central por trás, o risco de resgate em ouro forçava uma disciplina desses bancos. A economia escocesa nessa época experimentou uma fase bem mais tranqüila e livre de crises, ao contrário da Inglaterra. Lawrence H. White, especialista no tema, escreveu que a Escócia era uma nação industrializada com instituições monetárias bastante desenvolvidas, e que experimentou uma incrível estabilidade macroeconômica durante o século XVIII e começo do século XIX. Infelizmente, o caso de livre mercado para bancos na Escócia tem sido constantemente ignorado por muitos economistas.

Em 1844, uma nova medida iria gerar efeitos perversos no setor financeiro, segundo Rothbard. Sir Robert Peel, um liberal clássico que foi Primeiro Ministro, adotou reformas importantes no sistema financeiro inglês. O famoso Peel’s Act representa um caso típico de uma bem-intencionada reforma político-econômica que resulta em desgraça. Na tentativa de acabar com o mecanismo de reservas fracionárias e instituir 100% de reserva, os seguidores de Peel decidiram colocar poder absoluto nas mãos do banco central cuja influência perniciosa eles tinham tentado expor. Para Rothbard, isso foi como colocar a raposa cuidando do galinheiro. O monopólio parcial que o Banco da Inglaterra desfrutava até então virava monopólio total imposto por lei. Uma vez criado este poder, parecia natural que ele seria usado e abusado.

Para piorar a situação, em julho de 1845 a emissão de notas na Escócia passou a ser regulada pelo Peel’s Act também. A entrada de novos bancos no mercado de emissão de notas bancárias estava vetada, permitindo a formação de um cartel no sistema escocês, com o evidente aplauso dos bancos existentes que não mais teriam que enfrentar a competição de novos players. Era o fim do sistema de liberdade bancária, e o começo de uma era inflacionária possível justamente pelo monopólio garantido pelo governo.

quinta-feira, maio 07, 2009

Juventude Destroçada



Rodrigo Constantino

“A Revolução Cultural tomou minha juventude, de mim e de toda minha geração.” (Zhu Xiao-Mei)

Muitos são os que decretaram a morte do comunismo, e consideram a disputa entre esquerda e direita ultrapassada. No entanto, creio que o perigo comunista ainda existe, apesar de trazer nomes diferentes. No fundo, acredito que o grande combate se dá entre individualismo e coletivismo. Nas suas diferentes formas, o coletivismo é uma praga que transforma o indivíduo em meio sacrificável, que pretende anular o que há de individual em cada um de nós. Para os coletivistas, desejar seguir os próprios sonhos é algo “egoísta”, um pecado. Nesse contexto, recomendo a leitura do livro O Rio e seu Segredo, de Zhu Xiao-Mei, a pianista chinesa que desafiou o regime totalitário de Mao para poder tocar piano, sua grande paixão.

O relato biográfico de Xiao-Mei é comovente. Aos 3 anos de idade, ela viu chegar à sua casa o piano que sua mãe comprara. Nascia ali uma verdadeira paixão, que infelizmente encontraria um enorme obstáculo: o regime comunista. Para os revolucionários chineses, o piano era um instrumento burguês, e a própria origem burguesa de Xiao-Mei seria um constante fardo que iria acompanhá-la; ela tinha uma “má origem”. Xiao-Mei era apenas uma criança quando Mao lançou sua Revolução Cultural. Ali começava a destruição de sua juventude. É preciso lembrar que toda a desgraça vivida por Xiao-Mei pode ser multiplicada por centenas de milhões para se compreender a dimensão do estrago causado pelo comunismo na China. Isso sem falar que, como ela mesma reconhece, seu caso está longe de ser o pior. Dezenas de milhões não tiveram tanta “sorte” e foram mortos como ratos pelos revolucionários, além dos que não suportaram a humilhação e se suicidaram.

A essência do problema não escapa à atenção da autora: “Nossa vida gira em torno desta palavra: a coletividade. Aprendemos dia após dia que ela é mais importante do que tudo, mais do que a família”. E continua: “O princípio é simples: nossos pensamentos não pertencem somente a nós, mas também ao Partido. É preciso entregá-los a ele, mesmo os mais íntimos, e se submeter a seu julgamento, pois só ele sabe o que é bom ou ruim, justo ou falso”. No coletivismo chinês, o indivíduo precisa ser destruído, assim como o grande pilar que sustenta a individualidade: a família. As pequenas crianças são pressionadas para renegarem seus próprios pais, especialmente as de “má origem”. Elas devem ver seus pais como traidores da causa comum, da luta pelo “bem-geral”. O estrago que isso faz na cabeça de uma criança que idolatra seus pais pode ser imaginado. Xiao-Mei lamenta: “A Revolução Cultural me corrompeu, fez de mim uma culpada. Em um determinado momento, chegou a matar em mim o senso moral”.

Perdendo apoio após O Grande Salto para Frente (reformas coletivistas que mataram de fome milhões de chineses), Mao encontrou na doutrinação de crianças sua nova e poderosa arma. Um forte culto à personalidade, típico dos regimes totalitários, teve início. Mao era o substituto da imagem de pai perfeito que crianças pequenas normalmente criam. Como Xiao-Mei diz, “é preciso confiar em Mao, ele tem razão, ele tem necessariamente razão, não é imaginável que possa ser diferente”. A luta de classes é usada como meio de manipulação: de um lado estão os oprimidos, representados por Mao; do outro estão os exploradores pequeno-burgueses. É preciso escolher um lado. O sangue começa a jorrar nas ruas, mas as crianças aprendem que este é o preço necessário para libertar a China, para garantir um futuro maravilhoso para todos. Os fins justificam os meios: eis a máxima central de todo regime que pratica infindáveis atrocidades.

Todos são “reeducados”, ou seja, precisam aprender que nada são perto do todo, do coletivo. Xiao-Mei reconhece que naqueles tempos era apenas “uma criatura sem cérebro, concebida para um único objetivo, ser como as outras”. O ideal coletivista é uma colônia de insetos gregários, onde as diferenças que incomodam os invejosos desaparecem, restando apenas a igualdade forçada, uma massa de medíocres. O grande pecado de Xiao-Mei? Sentir uma compulsão pela música, um desejo incontrolável de tocar, de se expressar, de interpretar grandes gênios da música clássica. Para piorar, ela adorava músicos ocidentais, como Bach e Beethoven, um crime ainda mais grave para xenófobos com ”complexo de vira-lata”. Por esse terrível crime, ela deve ir para o campo praticar trabalhos forçados sob condições desumanas, para ser “reeducada”. O regime vai transformá-la numa boa revolucionária. Com vários outros artistas, Xiao-Mei acaba passando cinco anos de sua vida em campos de trabalho forçado.

O resultado dessa experiência, ela mesmo conta: “A vida no campo não é feita para nos educar; ela é feita para nos embrutecer”. Até mesmo o banho era dificultado, pois era “uma maneira entre outras de minar nosso sentimento de dignidade”. “Não há nenhum lugar para qualquer espécie de intimidade aqui. A própria idéia decorre de sentimentos burgueses”. O único meio que resta para a defesa é a agressão. Todos se tornam brutos, estimulados pelo próprio regime a entregar qualquer falha revolucionária nos colegas. Um bando de espiões dedos-duros é formado, e ninguém pode mais confiar em ninguém.

Um caso extremo era relatado com orgulho pelos coletivistas, pela prova de fidelidade à revolução: uma mãe recebeu dois telegramas avisando que seu filho pequeno estava gravemente doente e precisava dela em Pequim, mas ela recusou ir, pois precisava cuidar de um porquinho doente, do qual ela era encarregada. O filho morreu e ela não derramou lágrima alguma. Pouco depois, o porco morreu, e ela chorou. Eis a mensagem: “um porco nutre a coletividade, o apego que se tem a um filho é um sentimento individualista e burguês”. Na essência, esse é o ideal coletivista.

A “reeducação” nada mais era do que uma intensa doutrinação ideológica, uma verdadeira lavagem cerebral. As crianças eram obrigadas a decorar o Pequeno Livro Vermelho, de Mao. Depois de tantos anos com apenas essa leitura disponível, pois livros “burgueses” foram queimados, as crianças tinham duas novas leituras: Lênin e Marx! Ainda hoje, muitas pessoas, incluindo famosos “intelectuais”, repetem que o regime comunista cubano acabou com o analfabetismo e tem como ponto forte a educação. É isso que chamam de educação? Proibir livros e obrigar a leitura de lixo ideológico? Xiao-Mei afirma: “Tínhamos sido todos transformados em marionetes, em máquinas prontas para obedecer cegamente a todas as injunções do regime”. Como Mário Quintana disse muito bem, “os verdadeiros analfabetos são os que aprenderam a ler e não lêem”. A Revolução Cultural de Mao, assim como a “educação” cubana, não passava de uma máquina de criar analfabetos!

Após a visita de Richard Nixon, o regime chinês permite alguma abertura, ainda que tímida. Xiao-Mei pode, então, ter acesso ao filme de Richard Bach, Fernão Capelo Gaivota, que conta a história de um pássaro que não quer viver como todo mundo, que sonha em voar mais alto, em desafiar seus próprios limites. Esse filme perturba bastante a autora. Os Estados Unidos representam o país da liberdade. Ela deseja fugir para lá o quanto antes. Para sua sorte, ela consegue fugir para Hong Kong, e depois embarca para a América. Uma nova fase começa. Ela finalmente pode se dedicar ao piano, apesar das privações que enfrenta no começo. Com o tempo, ela acaba em Paris, vira professora e faz concertos em vários países. Sua vida começa tarde, pois sua juventude fora roubada, destroçada pelo regime comunista, pelo coletivismo insano de uma época.

A trajetória dramática e verídica da autora, relatada no livro, representa a luta de um indivíduo pela liberdade. Essa luta encontra muitas barreiras, pois não há nada que os coletivistas detestem mais do que isso: alguém que não aceita ser transformado em meio sacrificável pelo “bem-geral”. O comunismo, até mesmo na China, está praticamente morto, apesar de ainda haver fortes resquícios de totalitarismo por lá, sem falar de Cuba ou Coréia do Norte. Mas o coletivismo não morreu. Pelo contrário: parece cada vez mais forte. E ele representa o maior inimigo da liberdade individual. É justamente a mentalidade coletivista que permite atrocidades como a Revolução Cultural de Mao, responsável pela juventude destroçada de toda uma geração.

terça-feira, maio 05, 2009

O Abuso da Razão



Rodrigo Constantino

"O futuro está em aberto; não é predeterminado e, deste modo, não pode ser previsto - a não ser por acidente. As possibilidades contidas no futuro são infinitas." (Karl Popper)

As duas principais forças intelectuais que transformaram o pensamento social durante o século XVIII – o socialismo moderno e o positivismo moderno – tiveram origem em Paris, através de cientistas e engenheiros influenciados pelo sucesso nos avanços da ciência. A exportação dos métodos da ciência natural para as ciências sociais produziria aquilo que Hayek chamou de “cienticismo”. Em The Counter-Revolution of Science, Hayek disseca os problemas desta postura, mostrando como a arrogância racionalista acabou levando muitos pensadores, paradoxalmente, a uma crença irracional.

Quando o cientista alega estudar fatos objetivos, o que ele quer dizer com isso é que ele tenta estudar coisas, independente do que os homens pensam ou fazem sobre elas. Por outro lado, as ciências sociais ou morais estão preocupadas com as ações conscientes dos homens, ações que podem ser escolhidas pelos próprios homens. O que cada um pensa sobre essas coisas, portanto, passa a ser de crucial importância para as ciências sociais. Na falta de termos melhores, pode-se dizer que o método da ciência natural é “objetivo”, enquanto nas ciências sociais ele é “subjetivo”. Podemos compreender a ação humana porque partimos de uma introspecção, assumindo que estamos lidando com uma característica comum a todos: a mente humana.

A teoria econômica, por exemplo, não tem nada a dizer sobre os discos de metal que uma visão objetiva ou materialista pode tentar definir como dinheiro. O que importa é o significado que as pessoas atribuem a estes discos, que podem ser entendidos somente através de suas ações. Apenas o que as pessoas conhecem ou acreditam pode representar um motivo para sua ação consciente. Enquanto as coisas no mundo externo não se comportam de forma diferente devido ao que pensamos delas, o comportamento humano depende claramente do que cada um pensa sobre ele. Muita confusão surge justamente quando os métodos das ciências natural e social são misturados. O cientista social começa a tratar, nesse caso, a subjetividade dos indivíduos como um dado objetivo, que pode ser observado de fora, permitindo a descoberta de “leis de comportamento”, tais como as leis naturais. O behaviorismo é um exemplo claro disso.

Hayek chama a atenção para o coletivismo metodológico desses pensadores, ou seja, a tendência de tratar coletivos – sociedade, classe ou nação – como se fossem objetos dados pela natureza, que podemos descobrir leis pela observação de seu comportamento enquanto coletivos. Esses pensadores tratam o fenômeno social não como algo do qual a mente humana faz parte, e que cuja organização pode-se reconstruir pelas partes familiares, mas como se fossem objetos diretamente percebidos enquanto coletivos. Bastaria o cientista social observar a “nação” para compreender as leis que guiam seu comportamento, ignorando que nação é apenas uma abstração de nossa mente, um constructo para definir e agrupar justamente partes individuais com características similares. Essa postura erra ao tratar como fatos objetivos aquilo que não passa de modelos construídos pela mente humana para explicar a conexão entre algum fenômeno individual que observamos; no caso, a nacionalidade dos indivíduos.

Uma nação ou classe não existem como dados da natureza, assim como pedras ou montanhas, mas são agrupamentos artificiais que fazemos justamente para tentar explicar as relações individuais. Quando atribuímos características de personalidade a coletivos como sociedade ou nação, incorremos no risco de inverter as coisas, analisando o coletivo como se fosse um ente concreto. Esse conceito antropomórfico de coletivos mentais acaba gerando efeitos perversos nas ciências sociais. O esforço de tratar o fenômeno social como um todo observável pode ser entendido pelo desejo de obter uma visão distante na esperança de que certas regularidades irão surgir, enquanto permanecem obscuras num olhar mais próximo das partes. Seria a tentativa de enxergar a floresta com suas “leis”, ignorando as árvores. Essa “visão macroscópica” pode muitas vezes impedir a visão real das partes existentes. Na maioria dos casos, essa crença de que é possível enxergar o todo com critérios objetivos não passa de uma ilusão.

A aplicação deste coletivismo metodológico no estudo da história traz muitas complicações, e acaba produzindo o que ficou conhecido como “historicismo”. Analisar fatos históricos sempre irá depender de quais perguntas desejamos responder. Um mesmo fato ou época podem representar inúmeras análises, dependendo do que se pretende estudar. A visão ingênua que trata os fatos complexos que a história estuda como dados naturais, leva à crença de que sua observação pode revelar “leis históricas” do desenvolvimento desses coletivos. Segue-se disso a tentativa de criar uma teoria da história, ou filosofia da história, que estabelece fases necessárias ao desenvolvimento histórico. Os autores destas pseudo-teorias da história acreditam ser capazes de chegar por um atalho mental direto nas “leis” de sucessão dos fatos. Os mais conhecidos expoentes dessa filosofia da história foram Hegel, Comte e Marx.

Esse “historicismo” é contraditório, pois se a mente humana fosse variável e determinada pela época histórica, nós não teríamos como compreender diretamente o que as pessoas de outros tempos queriam dizer, e a história seria inacessível. A mente da qual podemos falar de forma compreensível deve ser uma mente como a nossa. Um observador de Marte não poderia compreender as ações humanas pela simples observação, se ele não fosse capaz de reconstruir nossas ações com base numa mente semelhante a nossa. Caso contrário, seria como observar os atos de um formigueiro, sem nenhuma chance de capturar de maneira inteligível os motivos de cada ato. Quando não podemos mais reconhecer categorias de pensamento similares àquelas que pensamos, a história deixa de ser uma história humana.

Essas atitudes coletivistas costumam resultar de uma incapacidade de compreender como ações individuais independentes de muitos homens podem produzir coletivos coerentes, estruturas persistentes de relações que possuem importantes funções sem que tenham sido designadas a este propósito. Esses pensadores coletivistas tratam todas as estruturas sociais como o resultado de um design deliberado, como invenções conscientes dos seres humanos. Um bom exemplo é a língua de um povo. Até o século XVIII, muitos homens pensavam que a língua tinha sido “inventada”, no sentido de ter sido criada deliberadamente por alguns com este fim. Aceitar que coisas tão úteis como a língua possam ser fruto de uma ordem espontânea exige reflexão e também muita humildade.

Em vez de instituições, Hayek prefere inclusive usar o termo formações para descrever essas organizações que surgiram sem uma intenção deliberada. Tais como as formações rochosas, que foram sendo moldadas ao longo dos séculos, a língua, a moeda, a moral, a família e demais organizações apareceram através de ações de diferentes indivíduos ao longo do tempo, sem que cada um deles tivesse noção exata do que estava ajudando a construir. Mas, da crença de que nada útil aos homens pode ter surgido sem sua consciência, muitos saltam para a crença de que, como todas as instituições foram criadas pelos homens, cabe a eles remodelar da forma que desejarem tais instituições. Eis onde o non sequitur representa enorme perigo, pois, como Hayek lembra, não só essas instituições foram criadas muitas vezes sem a consciência humana, como elas também são preservadas porque seu funcionamento depende de ações de pessoas que não são guiadas pelo desejo de mantê-las existindo*.

Na prática, o coletivista demanda que todas as forças da sociedade sejam colocadas sob o controle de uma única “super mente”, enquanto o individualista reconhece os limites dos poderes da razão individual, e conseqüentemente prega a liberdade como meio para o máximo desenvolvimento possível pelo processo entre diferentes indivíduos. De um lado, temos a humildade do individualismo, que reconhece os limites da razão individual na construção e progresso da civilização; do outro, temos a arrogância do coletivismo, que mira no controle consciente de todas as forças da sociedade**. Esse abuso da razão acaba produzindo uma ideologia totalmente irracional, que deposita num indivíduo ou pequeno grupo de indivíduos o poder de moldar e direcionar toda uma sociedade de cima para baixo. Hayek chamou esse abuso da razão de "intelectualismo", um racionalismo que falha em sua mais importante função: reconhecer os limites do que a consciência individual pode alcançar.

* Hayek explica melhor seu ponto: “Many of the greatest things man has achieved are the result not of consciously directed thought, and still less the product of a deliberately coordinated effort of many individuals, but of a process in which the individual plays a part which he can never fully understand. They are greater than any individual precisely because they result from the combination of knowledge more extensive than a single mind can master”.

** Quem conseguiu sintetizar essa mensagem de forma brilhante foi Raymond Aron, autor de O Ópio dos Intelectuais: “O liberal é humilde. Reconhece que o mundo e a vida são complicados. A única coisa de que tem certeza é que a incerteza requer a liberdade, para que a verdade seja descoberta por um processo de concorrência e debate que não tem fim. O socialista, por sua vez, acha que a vida e o mundo são facilmente compreensíveis; sabe de tudo e quer impor a estreiteza de sua experiência – ou seja, sua ignorância e arrogância – aos seus concidadãos".

segunda-feira, maio 04, 2009

A Origem do Dinheiro



Rodrigo Constantino

“Se os governos desvalorizam a moeda para trair todos os credores, você educadamente chama este procedimento de ‘inflação’.” (George Bernard Shaw)

Qual a origem do dinheiro? Segundo Mises, o dinheiro não pode surgir por decreto estatal ou algum tipo de contrato social acordado entre os cidadãos; ele deve sempre se originar num processo de livre mercado. O escambo, que os homens praticam desde os primórdios da civilização, conta com sérias limitações. Um problema crucial é a necessidade de um desejo mútuo coincidente, ou seja, os dois agentes envolvidos na troca precisam concordar exatamente com o que recebem em relação ao que oferecem. Outro problema é o das indivisibilidades, isto é, uma troca teria que ter a mesma magnitude de valor. Basta pensar na situação de alguém querendo trocar uma casa por vários produtos distintos, para mostrar a impraticabilidade desse método. Eis quando surge o dinheiro.

Em The Mystery of Banking, o economista Rothbard explica melhor a origem do dinheiro e os riscos inflacionários provenientes do papel-moeda. Justamente por conta dessas barreiras do escambo, que atende não mais que as demandas de uma vila primitiva, o próprio mercado criou gradualmente um meio de troca mais eficiente. Foi ficando claro para os comerciantes que o uso de uma commodity amplamente aceita como meio de troca fazia muito sentido. Em vez de um produtor de calçados ter que encontrar um vendedor de carne disposto a trocar exatamente carne por calçado, bastava ele vender no mercado seus produtos em troca desta commodity, e depois usá-la para comprar os bens que desejava. Para atender esta função, a commodity deveria ser demandada por seu valor intrínseco, ser divisível, portável e durável, além de apresentar um elevado valor por unidade. Durante a história, diversas commodities serviram como moeda, mas invariavelmente o ouro e a prata foram os escolhidos quando possível.

Com o tempo, surgiu a demanda por certo padrão homogêneo de commodity usada como moeda. Os reis estampavam seus rostos nas moedas de ouro, garantindo sua qualidade e peso, e em troca cobravam a “senhoriagem”. Automaticamente, surgiu o risco de o próprio governo alterar o peso das moedas e embolsar a diferença. Era o começo do “imposto inflacionário”, ou a desvalorização da moeda. Esta prática foi bastante facilitada com a introdução do papel como moeda, servindo no início como um certificado garantindo o peso do ouro. É importante notar que praticamente todas as moedas mais importantes, como o dólar, libra, marco ou franco, começaram simplesmente como nomes para diferentes unidades de peso do ouro ou prata. O dólar surgiu como o nome usado para a moeda de prata cunhada por um condado chamado Schlick, no século XVI. Suas moedas, com elevada reputação, eram chamadas thalers, e essa é a origem do termo dólar. Ele era apenas uma unidade de peso em relação à commodity que representava.

Naturalmente, o risco de falsificar a moeda sempre existiu, e por isso mesmo surgiu a demanda por padrões e selos de governos ou bancos. A falsificação de moeda é uma fraude, que enriquece o fraudador em detrimento do restante dos usuários da moeda. Os primeiros a receberem o dinheiro falsificado se beneficiam à custa dos últimos. O governo tem como função justamente evitar tal fraude, punindo com prisão os criminosos. O grande problema é quando o próprio governo adere à prática de “falsificação”, com o respaldo da lei. A invenção do papel-moeda foi um convite tentador para os governos embarcarem nessa nefasta prática inflacionária. Esse processo não foi instantâneo, e Rothbard explica passo a passo como ele ocorreu.

Em primeiro lugar, o governo deve garantir que os pedaços de papel são resgatáveis em seu equivalente em ouro. Caso contrário, ninguém irá aceitá-los voluntariamente. Em seguida, o governo geralmente tenta sustentar seu papel-moeda através de legislação coercitiva, instando o público a aceitá-lo, incluindo os credores de montantes em ouro, através das leis de “legal tender”. O papel-moeda passa a ser aceito como pagamento dos impostos, e os contratos privados são forçados a aceitar pagamento em papel. Quando a moeda começa a ser amplamente aceita e utilizada, o governo pode então inflar sua oferta para financiar seus gastos de forma menos escancarada. A inflação é o processo pelo qual o imposto escondido é usado para beneficiar o governo e os primeiros a receberem a nova moeda. Após um prazo suficiente, o governo adota um passo definitivo: corta a ligação da moeda com o ouro que ela representava antes. O dólar, por exemplo, passa a ter uma vida própria, independente do ouro que ele representava anteriormente, e o ouro passa a ser apenas uma commodity qualquer. O caminho para a inflação está totalmente livre de obstáculos.

O primeiro papel-moeda governamental do Ocidente, segundo Rothbard, foi emitido na província de Massachusetts em 1690. Sua origem ilustra muito bem o relato acima. Massachusetts estava acostumada a periódicas expedições militares contra a Quebec francesa, e os ataques bem-sucedidos permitiam o pagamento dos soldados com a pilhagem obtida. Dessa vez, no entanto, a expedição perdeu feio, e os soldados retornaram para Boston sem pagamento e descontentes. O governo de Massachusetts, então, precisava arrumar alguma outra forma para pagá-los. Em dezembro de 1690, foram impressos sete mil libras em notas de papel. O governo garantira que tais notas seriam resgatadas em ouro ou prata em poucos anos, e que novas notas não seriam emitidas. No entanto, já em fevereiro de 1691, o governo declarou não ter recursos novamente, e emitiu mais 40 mil libras em notas para pagar a dívida acumulada. Além disso, as notas não poderiam ser resgatadas pelos próximos 40 anos. As portas do inferno inflacionário estavam abertas!

Pelo menos em três vezes na história americana, desde o fim do período colonial, os americanos sofreram bastante com o sistema de fiat money. Durante a Revolução Americana, para financiar o esforço de guerra, o governo central emitiu vasta quantidade de papel-moeda, os “Continentals”. A desvalorização foi abrupta, e antes mesmo do término da guerra essas notas não tinham mais valor algum. O segundo período foi durante a guerra de 1812, quando os Estados Unidos saíram do padrão-ouro, mas retornaram dois anos depois. O terceiro período ocorreu durante a Guerra Civil, com a emissão dos greenbacks, notas não-resgatáveis para pagar a guerra. No final da guerra, os greenbacks tinham perdido metade de seu valor inicial. Mais recentemente, pode-se falar numa quarta fase de elevada inflação americana, na década de 1970. Após medidas keynesianas adotadas pelo governo, a inflação medida pelo índice de preço ao consumidor (CPI) subiu mais de 8% ao ano na década, fazendo com que o dólar perdesse metade de seu valor no período entre 1969 e 1979.

Quando os economistas “austríacos” são acusados de “fetiche” em relação à “relíquia bárbara”, por defenderem o padrão-ouro, Rothbard responde que eles apenas observam a história e notam que o ouro é sempre o escolhido como moeda pelo mercado. É com a introdução do papel-moeda sem lastro pelos governos que o perigo inflacionário surge. A origem do dinheiro está no livre mercado. A origem da inflação está no governo.

Deu no Valor Econômico

sexta-feira, maio 01, 2009

A Justiça das Ruas



Rodrigo Constantino

“Não é suficiente que homens honestos sejam apontados para juízes; todos conhecem a influência do interesse na mente do homem, e como inconscientemente seu julgamento é distorcido por essa influência.” (Thomas Jefferson)

Eu não pretendia escrever nada comentando o “bate-boca” entre os ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa no STF, mas notei uma forte campanha de difamação contra o primeiro, patrocinada por grupos de esquerda com perigosas intenções. Portanto, sinto-me na necessidade de comentar algo sobre o assunto, principalmente a parte que essa esquerda deu mais importância: a demanda de Barbosa para que Mendes saia mais às ruas. Em suma, a extrema esquerda deseja politizar a Justiça, transformá-la numa espécie de “justiça popular”, onde a “opinião pública” julga em vez de juízes, cuja função básica é respeitar a Constituição.

Desde sempre as massas representaram grupos instáveis de pessoas, muitas vezes com sede de vingança ou linchamento público, independente de um julgamento mais isento e imparcial. As massas seriam guiadas por emoções, e justamente para garantir direitos individuais, surge a necessidade de uma Constituição que preserva o Estado de Direito. Numa República, as minorias devem ser protegidas da maioria. Se dois lobos e uma ovelha tiveram que decidir qual será o jantar com base no voto majoritário, fica evidente que o resultado jamais poderá ser considerado justo.

Gustave Le Bon, em seu livro sobre a psicologia das multidões, escreveu: "Uma massa é como um selvagem; não está preparada para admitir que algo possa ficar entre seu desejo e a realização deste desejo. Ela forma um único ser e fica sujeita à lei de unidade mental das massas. Como tudo pertence ao campo dos sentimentos, o mais eminente dos homens dificilmente supera o padrão dos indivíduos mais ordinários. Eles não podem nunca realizar atos que demandem elevado grau de inteligência. Em massas, é a estupidez, não a inteligência que é acumulada. O sentimento de responsabilidade que sempre controla os indivíduos desaparece completamente. Todo sentimento e ato são contagiosos. O homem desce diversos degraus na escada da civilização. Isoladamente, ele pode ser um indivíduo; na massa, ele é um bárbaro, isto é, uma criatura agindo por instinto". Para evitar o julgamento deste tipo de grupo, espera-se justamente uma postura diferenciada dos ministros da Suprema Corte. Eles devem ser os guardiões da Constituição, e não a voz dos desejos populares do momento.

Mas essa parte da esquerda quer exatamente o contrário: quer ver os juízes do STF saindo às ruas, escutando o que o “povo” pensa sobre cada julgamento. Quer, enfim, transformar os julgamentos em simples plebiscitos populares. Seria o retorno aos tempos medievais, com enforcamento em praça pública. Não custa lembrar que, segundo os relatos, Pilatos estava apenas reagindo aos desejos populares quando escolheu soltar Barrabás e crucificar Jesus Cristo. Eis a grande capacidade de julgamento popular, desde sempre. Nada mudou muito em relação a isto.

A tirania popular é tão nefasta quanto a de um tirano todo-poderoso. Aristóteles escreveu em Política: “Onde as leis não têm força, pululam os demagogos, e o povo torna-se tirano”. Ele pergunta: “Se, por serem superiores em número, aprouver aos pobres dividir os bens dos ricos, não será isso uma injustiça?” Claro que sim! No entanto, essa seria a “justiça” obtida por simples votação majoritária, caso não existissem regras de proteção às minorias. Seria apenas uma ditadura da maioria.

Naturalmente, os próprios juízes são seres humanos também, sujeitos às mesmas paixões que afetam os demais. Eis o que Thomas Jefferson lembra na frase da epígrafe. Por isso existe divisão de poderes, descentralização através do federalismo, mecanismos que tentam amarrar os poderes do Judiciário de forma a respeitar justamente a Constituição, reduzindo o espaço para arbitrariedades. Espera-se que cada juiz do STF seja capaz de analisar da forma mais isenta possível os julgamentos, parcialmente blindados contra as emoções que dominam os apelos populares. Portanto, a recomendação para um poderoso ministro do STF deveria ser oposta àquela dada por Joaquim Barbosa: em vez de sair às ruas para buscar a fonte da Justiça, o juiz deveria basicamente se limitar a respeitar a Constituição.

PS: Não vem ao caso aqui questionar a capacidade de Joaquim Barbosa como ministro. Seu currículo é sem dúvida impressionante. No entanto, uma coisa deve ser dita sobre a forma pela qual ele foi apontado para o STF. Em recente coluna de Ancelmo Gois, consta um relato que Frei Betto teria feito em um de seus livros, explicando como recomendou Joaquim Barbosa para o então Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos. Trata-se de uma confissão escandalosa, que não deveria passar despercebida. Frei Betto diz que conheceu Barbosa durante um vôo, na volta da posse do presidente Lula. Ficou com uma “boa impressão” dele. Quando Thomaz Bastos perguntou se Frei Betto conhecia algum negro para indicar ao STF, pois o presidente Lula queria um ministro com esta característica, ele se lembrou de Joaquim Barbosa. Em outras palavras, o fator preponderante em sua escolha foi sua cor de pele! Pode-se dizer que o nefasto regime das cotas racistas chegou ao STF no governo Lula. Creio que isso inclusive prejudica muito o próprio Joaquim Barbosa, que sem dúvida apresenta um histórico de sucesso pessoal, e não precisava ser apontado por causa de sua cor.