Rodrigo Constantino
"Se a moralidade representa um mundo ideal, então a economia representa o mundo real." (Steven Levitt)
O professor de economia da Universidade de Chicago, Steven Levitt, escreveu com Stephen Dubner um grande best-seller, o livro Freakonomics, cujo sucesso talvez possa ser explicado pela forma interessante de tratar temas do cotidiano, sem o jargão típico dos economistas. O prêmio Nobel Gary Becker, também de Chicago, é conhecido por levar os estudos econômicos para o dia a dia, já que economia é o estudo da ação humana, e os indivíduos reagem aos incentivos em inúmeras áreas diferentes. Steven Levitt vai nessa mesma linha, e o livro trata de diversos temas desconexos entre si, mas todos respeitando a idéia central de que pessoas reagem a incentivos. Fazendo as perguntas certas, reflexões intrigantes irão surgir. É uma leitura que vale a pena.
O estudo econômico seria, em sua raiz, o estudo dos incentivos. Como as pessoas conseguem o que desejam? Existem basicamente três fontes de incentivos: econômico, social e moral. Qualquer incentivo é inerentemente um trade-off, onde uma escolha deve ser feita deixando alguma alternativa para trás. Com isso em mente, Levitt sai em busca de estranhas correlações aparentes, que após algumas reflexões, demonstram sua lógica. Ele questiona o que professores escolares têm em comum com lutadores de Sumo, como a Ku Klux Kan pode ser parecida com um grupo de corretores de imóveis, por que os traficantes ainda vivem com suas mães e outras "esquisitices" que começam a fazer sentido somente após raspar a superfície e olhar mais a fundo, com a questão dos incentivos sempre na cabeça.
No caso estranho entre a KKK e os corretores de imóveis, Levitt foca no aspecto da assimetria de informação. O poder dos membros da Ku Klux Klan vinha justamente do fato de armazenarem informações internas, apenas para seus partidários. Os corretores de imóveis formam um mesmo tipo de grupo, e quando a internet começa a dissipar esse poder, através da rápida disseminação da informação, o grupo perde sua vantagem comparativa. A áurea de segrego em torno da KKK dava certo poder ao grupo, e quando as verdades sobre os bastidores começaram a ser expostas em livros, por ex-membros decepcionados ou arrependidos, esse castelo de cartas desabou. A KKK passou a ser vista como um grupo qualquer, até mesmo sendo ridicularizada em certos aspectos.
Analogamente, a internet alcançou aquilo que nenhum defensor dos consumidores poderia sonhar: encolheu absurdamente a diferença entre os experts e o público. Popularizando a informação, tornando o acesso a base de dados extremamente fácil, possibilitando comparações imediatas entre diferentes opções, a internet destruiu boa parte da fonte de poder dos corretores de imóveis. A informação que somente os "especialistas" possuem lhes possibilita enorme vantagem em cima do público leigo: o medo. Um corretor poderia antes aterrorizar um vendedor, garantindo que o preço estará caindo em breve e que ele deve logo aceitar uma determinada oferta de compra da casa. Para o corretor, isso significa negócio rápido e, portanto, corretagem, sem fazer tanta diferença assim conseguir alguns milhares a mais para o cliente, esperando uma oferta melhor. De fato, Levitt mostrou como os corretores, quando vendiam suas próprias casas, costumavam esperar mais tempo em média, e conseguiam preços maiores. Esses corretores devem odiar a Google!
Sobre os traficantes, uma constatação suscitou a seguinte pergunta em Levitt: se eles fazem tanto dinheiro assim, por que ainda vivem com suas mães? A resposta obtida foi que, diferente da "sabedoria convencional", que muitas vezes está errada, os traficantes não fazem tanto dinheiro assim. Com a exceção dos grandes figurões do tráfico, o restante ganha mal. Há muita competição, e filas de espera para preencher vagas, devido à uma completa falta de oportunidades, muitas vezes, e ao sonho de chegar a ser um "chefão" algum dia. Mesmo sendo uma atividade de extremo risco, a ilusão de que chegará a ser o traficante poderoso e rico estimula os mais jovens a encarar os riscos. Trata-se do mesmo tipo de incentivo presente em negócios onde somente pouquíssimas pessoas alcançam o sucesso, mas que o pay-off desse sucesso é tanto que a esperança de ser o premiado pela loteria justifica o esforço presente. Quantos atores chegam ao cachê milionário de Hollywood? E nem por isso milhões e milhões de atores de quinta categoria deixam de acordar cedo e trabalhar duro por alguns trocados, sonhando com o dia em que serão como Bruce Willis. O problema de o tráfico pagar pouco é, então, o mesmo de muitos "negócios" da mesma natureza de incentivos: muitas pessoas competindo por muito poucos prêmios.
Sobre a criminalidade, Levitt faz um interessante paralelo com a questão do aborto. Ele cita o caso do ditador comunista romeno Nicolae Ceusescu, que tornou o aborto ilegal em 1966, alegando que o "feto era propriedade de toda a sociedade". O objetivo do ditador comunista era aumentar a população do país, e com os incentivos criados, atingiu o efeito desejado. Dentro de um ano após o banimento do aborto, a taxa de natalidade romena tinha dobrado. A maioria nascia nas regiões mais miseráveis, justo onde mais abortos eram praticados antes. Cerca de 20 anos depois, com a proibição ainda vigente, a criminalidade tinha explodido no país. Em 1989, milhares de pessoas tomaram as ruas para protestar contra o regime. A maioria era formada por adolescentes e jovens estudantes, nascidos na época em que o ditador chegou ao poder e adotou as medidas contra o aborto. O ditador tentou fugir do país, mas foi capturado e executado.
Levitt tenta mostrar que a proibição do aborto tem forte ligação com o aumento da criminalidade. Seus estudos estatísticos, travando determinadas variáveis para buscar a causalidade entre as coisas, mostram que a queda da criminalidade nos Estados Unidos pode ter como causa a legalização do aborto. A lógica para explicar isso não é tão complicada assim de entender. A maioria dos abortos é realizada justamente por mães solteiras, pobres, sem condição de criar seus filhos direito ou sem desejo para tanto. Como Levitt coloca, quando uma mãe não quer ter seu filho, normalmente ele tem bons motivos. Ela pode ser solteira, achar que não tem capacidade para criar um filho, não ter dinheiro, achar seu casamento instável e infeliz, se considerar jovem demais etc. São exatamente essas características familiares que costumam explicar boa parte do background dos criminosos.
Sem uma educação decente em casa, criado sem a figura paterna, por uma mãe jovem, solteira, pobre, muitas vezes drogada, que sequer deseja ser mãe, as chances de o jovem cair no crime são bem maiores. Filhos indesejados apresentam maiores probabilidades de problemas futuros. A legalização do aborto levou a menos filhos indesejados deste tipo, que levou, por sua vez, a menos crimes após alguns anos, quando estes fetos que não chegaram a nascer seriam adultos na idade que concentra a maioria dos criminosos. Como as pessoas costumam buscar causalidade no curto prazo apenas, acabam ignorando esse efeito. Tais argumentos não sustentam necessariamente que a legalização do aborto é desejável, pois outros fatores morais estão presentes na questão. Mas mostram, uma vez mais, que pessoas reagem aos incentivos.
Eis o objetivo de Steven Levitt com o livro: esquecer o mundo ideal da moralidade e mostrar como a vida é na realidade, com indivíduos reagindo a todo tipo de incentivo que surge em sua frente. Ter melhor noção dessa realidade pode ser extremamente útil, ainda mais quando tantos ainda sucumbem à visão romântica de "déspotas esclarecidos" que chegarão ao poder e farão verdadeiros milagres. Depositar fé messiânica nos governantes é o caminho da desgraça. Bem mais inteligente é trabalhar corretamente os mecanismos de incentivos na política, descentralizando o poder e fazendo com que um poder tenha interesse em vigiar o outro.
Li o Freakonomics há dois anos e achei-o bastante interessante. Gostei muito da parte sobre a dinâmica dos nomes de bebês, a fraude em exames escolares realizada por professores e a fraude nas lutas de sumô.
ResponderExcluirA questão do aborto é bastante óbvia a meu ver. Apesar de não fazer juízo de valor, Levitt aponta um significativo benefício social advindo com a liberação do aborto.
É um livro interessante, mas nada que a gente não possa aprender com
Adam Smith.
E quando uma país é na maioria católico, como o Brasil, como se faz? Mesmo que seja legalizado o aborto, vc acha que os miseráveis - onde se encontram a maioria dos católicos - vão praticar o aborto? Acho que não. Qual é a sua opinião sobre isso?
ResponderExcluirAborto é ruim, e isto é consenso.
ResponderExcluirResta saber se deve ser caso de polícia - normalmente (pelo menos em Portugal) o alarme é dado quando a mãe é internada em um hospital público após um aborto malsucedido em uma clínica de vão de escada - ou caso médico, onde há o devido acompanhamento, aconselhamento para a mãe ter consciência de seu ato e para tentar evitar um segundo aborto mediante o uso dos métodos contraceptivos demonizados pela criminosa ICAR, assepsia, etc. Na Espanha, a legalização aumentou o número de abortos porque as portuguesas com dinheiro cruzavam a fronteira em busca de um pouco de limpeza e tranqüilidade, ao lado das mães e ao som de uma música relaxante, enquanto as pobres continuavam a abortar e a morrer nos açougues costumeiros.
Não simpatizo com a "análise" "imparcial" de Levitt sobre a relação aborto-criminalidade. Ele estabelece uma nítida causalidade e expõe o "nobre" fim, da redução de criminalidade, o que, na prática, não difere muito de exaltar a eugenia.
Acho que a discussão deve se restringir ao ato em si e não ao bem que o aborto pode fazer para a sociedade.
Abraços,
Catellius
A objeção lógica que tenho quanto ao aborto foi resumida numa frase muito interessante (li no blog "Serjão comenta do céu) que faz alusão á Milton Friedman: Não existe aborto grátis!
ResponderExcluirE uma questão interessante:
ResponderExcluirO André escreveu em meu blog:
"A Igreja quer um monte de assexuados, se reproduzindo por cissiparidade!"
e eu comentei mais ou menos assim:
Temos o caso de um óvulo fecundado por um único espermatozóide e que se divide após alguns dias, gerando dois embriões idênticos. Podemos fazer a pergunta: se agora são dois seres humanos e, por cinco ou seis dias, tudo o que havia era um único ser humano, este se reproduziu por cissiparidade? Ou não podemos considerar o embrião fecundado nos primeiros dias como ser humano? E uma pergunta idiota: a alma também se dividiu? he he
Isto serve apenas para demonstrar que a discussão é complexa e não convém ter uma posição cristalizada apenas porque se é anticlerical ou uma rês da ICAR (valendo-me do termo "rebanho", criado por eles próprios).
CARO RODRIGO: SE NÃO FOR POR DEMAIS, RUDE PEDIR VOCÊ PODERIA ME INFORMAR O SITE ONDE TODOS OS SEUS ARTIGOS ESTÃO POSTOS? SEI QUE VOCÊ JÁ ESCREVE HÁ MUITO TEMPO, POR ISSO GOSTARIA DE LER TODOS, SEM EXCEÇÃO. CÔNSCIO DE SUA COLABORAÇÃO, MUITO OBRIGADO!
ResponderExcluirRealmente o Levitt é brilhante no trato dos incentivos, você foi preciso ao descrever os temas abordados como “aparentemente” desconexos, pois, de fato, não são. A esquerda tem grande dificuldade em pensar nos incentivos inerentes/correlatos (?) às políticas públicas, formulam suas políticas ignorando o fato de que determinados atos podem ter o efeito justamente contrário à intenção. Aumento da rigidez da lei trabalhista aumento de desemprego, entre tantos exemplos.
ResponderExcluirEm seu mais brilhante estudo o economista demonstrou que um único caso que havia sido julgado pela suprema corte norte americana, nos anos 70, havia sido o verdadeiro responsável pela queda da criminalidade nos EUA, que até o final dos anos 80 crescia em ritmo vertiginoso com prognósticos alarmantes por parte dos especialistas. Neste capítulo Levitt da um verdadeiro show sobre política de segurança pública, desmistificando muito da “sabedoria convencional” (Galbraith) que era repetida. Este conceito, em tempo, tem muita importância, pois repercute deveras no campo dos incentivos: o advogado dos sem-teto afirmou haver um número de seus “clientes” muito maior do que de fato existia. Desta forma recursos foram destinados à construção de moradias populares, portanto transferidos de outra área, gerando uma alocação ineficiente dos recursos públicos (eu sei que é redundante falar isso). Um especialista interesseiro, em seu casamento perfeito com a mídia ávida por notícias alarmantes, propagou uma “sabedoria convencional” neste caso equivocada, pois nem toda “sabedoria convencional” é errada, e gerou um incentivo ao político, que com todos seus incentivos pré-existentes, formulou uma política pública errada. O advogado depois de desmascarado publicamente se matou.
Todo político deveria ser obrigado a ler o caso das creches de Israel para entender que o incentivo econômico nem sempre é o mais forte, e pode ter efeito contrário.
Constantino: gostaria de saber a sua conclusão sobre o caso das broas de Paul Feldman, pois neste caso vejo que o autor deixou a interpretação aberta, pois envolve aspectos filosóficos que ele parece não gostar. O que você acha?