quinta-feira, outubro 30, 2008

Conflito de Interesses



Rodrigo Constantino

“A sabedoria do mundo ensina que é melhor, para a nossa reputação, fracassar de modo convencional do que obter sucesso de forma não convencional.” (John Maynard Keynes)

O debate sobre o conflito de interesses nas empresas não é nada novo, mas com esta crise financeira ele retorna com força. O problema reside, basicamente, na dificuldade em alinhar o interesse de todos os funcionários com aquele dos acionistas e clientes. O trader da mesa proprietária de um banco de investimentos, por exemplo, conta com uma espécie de “opção grátis”, já que ele recebe um polpudo bônus se ganhar muito dinheiro operando, mas o máximo que pode perder se fracassar é seu emprego, mesmo que suas perdas sejam suficientes para levar o banco à falência. Não se trata de um alinhamento perfeito de interesses, naturalmente.

Além disso, como lembra a frase de Keynes na epígrafe, errar em grupo não costuma arranhar tanto a reputação, pois alguém sempre pode alegar que “todos” faziam a mesma aposta. Durante o estouro de uma bolha especulativa, por exemplo, o trader sempre pode se justificar com o argumento de que nada era muito previsível, tanto que todos foram pegos de surpresa. Do outro lado, torna-se praticamente insuportável justificar ganhos mais tímidos enquanto todos os concorrentes mostram retornos absurdamente elevados. Isso é um convite tentador e muitas vezes irresistível para participar da festa geral. E isso vale para várias atividades. O banco que está fornecendo crédito subprime e coletando taxas maiores estimula os concorrentes na mesma direção. Os hedge funds que aumentam a alavancagem e conseguem mais retorno pelo maior risco incentivam outros a fazer o mesmo. Até porque os clientes, que costumam perseguir retornos recentes, acabam migrando para os vencedores de curto prazo. A própria indústria dificulta bastante a postura mais sensata dos gestores. É da natureza humana, e o sóbrio no meio de um bando de bêbados é sempre o chato da turma.

Isso explica em parte os movimentos de manada comuns nos mercados financeiros. Para agravar a situação, as pessoas parecem ter memória curta. O fundador do Long-Term Capital Managment, John Meriwether, conseguiu levantar bilhões de dólares de clientes após o fiasco do fundo em 1998, em sua nova firma JWM. Perdeu novamente boa parte do dinheiro dos clientes. Muitos fundos, tentando alinhar os interesses de seus clientes, adotam o “high water mark", cobrando taxa de performance somente quando as perdas são cobertas por novos ganhos. Enquanto o cliente não estiver no azul, a empresa não cobra. O problema é que isso pode desestimular os gestores durante uma fase de grandes perdas, pois a remuneração da indústria está toda no variável, e não no salário fixo. Sabendo que ele dificilmente irá ganhar algum dinheiro nos próximos anos, após uma perda acentuada, o gestor pode simplesmente abandonar o barco, ou sair em bloco com outros gestores e analistas e fundar um novo fundo, deixando o histórico negativo para trás. Parece incrível que os clientes aceitem colocar dinheiro nessa nova estrutura, mas como mostra o exemplo de Meriwether, isso de fato acontece.

Como alinhar os interesses então? Não há mágica, tampouco resposta fácil. Por isso se chama conflito. Conceder sociedade aos principais funcionários ajuda muito, pois estão todos no mesmo barco. Mas não custa lembrar que os funcionários do Bear Stearns controlavam cerca de um terço do banco, e isso não impediu sua derrocada. O programa de stock options nas empresas tenta alinhar o interesse dos executivos ao dos acionistas, mas não é uma garantia certa também. Uma medida que pode fazer sentido é criar uma fórmula na qual o bônus não esteja atrelado somente ao ano corrente, mas sim dependente de outros períodos. Isso iria suavizar a sua oscilação, e colocaria o foco dos funcionários num prazo mais longo. Se o ano corrente é excelente, os funcionários não colocam tudo no bolso imediatamente, mas criam uma reserva para o caso de períodos ruins à frente. Uma fórmula ponderada, com diferentes pesos para os últimos anos, pode forçar um pouco mais de sensatez nos funcionários. Mas novamente, não há garantia de nada.

Por fim, aqueles que colocam toda a esperança nos reguladores do governo demonstram extrema ingenuidade. Keynes apontou o tal “animal spirits” dos homens, e vimos como ele de fato existe. Mas o que garante que os supervisores do governo serão diferentes? Por que alguém acha que os agentes do governo seriam imunes a este instinto humano? Não faz sentido algum acreditar nisso. Os reguladores são seres humanos imperfeitos também, sofrem pressões políticas, sucumbem às paixões humanas, não desfrutam de clarividência alguma. Concentrar poder demais em suas mãos não costuma resolver o problema dos conflitos de interesse, mas, ao contrário, pode muitas vezes agravá-lo. Se não é possível atingir um modelo de perfeição no livre mercado, tampouco é possível fazê-lo através do excesso de regulação. Temos que aceitar a idéia de que a perfeição não pertence ao mundo dos homens, justamente porque somos humanos, demasiado humanos.

Um comentário:

  1. Rodrigo,


    Este texto é simplesmente IMPECÁVEL. Definitivamente um dos melhores que já li. Sou liberal, mas acredito que economista do mundo de hoje precisa entender que a verdade também é composta por alguns elementos heterodoxos.

    meus parabéns,


    Pedro

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