Idéias de um livre pensador sem medo da polêmica ou da patrulha dos "politicamente corretos".
quarta-feira, novembro 19, 2008
O Mito do Contexto
Rodrigo Constantino
“O relativismo cultural e a doutrina do contexto fechado constituem sérios obstáculos à disposição de aprender com os outros.” (Karl Popper)
Para Karl Popper, uma das componentes do irracionalismo moderno é o relativismo, entendido como a doutrina segundo a qual a verdade é relativa à nossa formação intelectual. Em outras palavras, a verdade mudaria de contexto para contexto, o que impossibilitaria um entendimento mútuo entre culturas, gerações ou períodos históricos diferentes. Eis a frase que define esse “mito do contexto”, segundo Popper:
A existência de uma discussão racional e produtiva é impossível, a menos que os participantes partilhem um contexto comum de pressupostos básicos ou, pelo menos, tenham acordado em semelhante contexto em vista da discussão.
Para Popper, esta afirmação é não apenas falsa, mas também perigosa. Se acolhida de forma generalizada, pode inclusive contribuir para o aumento da violência, minando a unidade da humanidade. Sem dúvida uma discussão entre participantes que não compartilham do mesmo contexto pode ser difícil, mas é um exagero afirmar que é impossível ter um debate proveitoso sem esta premissa. Popper vai além, e acredita que um debate entre pessoas com várias idéias em comum pode ser bastante agradável, mas talvez não seja tão proveitoso quanto um debate entre pessoas com pontos de vista totalmente divergentes.
Uma história muito usada para reforçar o mito do contexto é aquela contada por Heródoto, o pai da historiografia. Diz ela que o rei persa Dario I, querendo dar uma lição aos gregos residentes em seu império, teria chamado esses gregos e perguntado por qual preço eles estariam dispostos a devorar os cadáveres dos seus próprios pais. Naturalmente, os gregos responderam que por preço algum aceitariam fazer isso. Em seguida, Dario I teria chamado um grupo de indianos que tinham por hábito comer os pais mortos. Através de um intérprete, ele perguntou aos indianos, na presença dos gregos, por qual preço aceitariam queimar os restos de seus parentes falecidos. Os indianos teriam ficado indignados, exortando o rei a não dizer blasfêmias. Os adeptos do relativismo costumam usar este exemplo como evidência de que há um abismo intransponível dependendo do contexto. Mas Popper não concorda.
Na verdade, Popper sustenta que tal discussão não teria sido infrutífera. A experiência do confronto entre hábitos tão diferentes sem dúvida permitiu algum aprendizado novo aos envolvidos. A conclusão de Heródoto é que devemos olhar com tolerância para os costumes que são diferentes dos nossos, e isso já seria um resultado positivo do choque de culturas. O fosso existente entre contextos ou culturas diferentes pode ser ultrapassado, e essa é a tese de Popper. O próprio avanço da civilização Ocidental é fruto do choque de diferentes culturas. Podemos aprender com os diferentes contextos, e podemos evoluir em nosso conhecimento acerca do mundo. O método que permite este aprendizado é o da crítica. Conforme coloca Popper, “uma das principais tarefas da razão humana é tornar o universo em que vivemos algo compreensível para nós”. Essa é a tarefa da ciência. E todos os povos têm capacidade de utilizá-la.
As barreiras às discussões racionais e críticas são muitas, sem dúvida. Os elementos pessoais ou emocionais podem dificultar esse debate. O instinto de tentar “vencer” um debate precisa ser vencido pela razão, pois uma “vitória” no debate não significa nada, “ao passo que a mínima clarificação de um problema que se tenha – mesmo a menor contribuição para uma compreensão mais clara da sua própria posição ou da de um opositor – constitui um grande sucesso”. Tentar, em suma, se aproximar genuinamente da verdade, eis um ideal importante que pode ser buscado. Por outro lado, uma expectativa extremamente otimista em relação aos debates, de que é possível obter freqüentemente como resultado a vitória da verdade sobre a falsidade, pode levar a uma frustração que conduz ao pessimismo generalizado sobre a fecundidade das discussões.
Mantendo-se o realismo acerca das dificuldades desses debates, ele pode produzir efeitos extremamente positivos. As leis e costumes de um povo fazem enorme diferença para todos que vivem sob a sua alçada. Alguns costumes podem ser cruéis, bárbaros, enquanto outros podem aliviar o sofrimento ou favorecer a cooperação mútua e voluntária. Alguns povos respeitam a liberdade individual, outros não, ou em grau bem menor. Como afirma Popper, “estas diferenças são extremamente importantes e não podem ser postas de lado ou ignoradas pelo relativismo cultural ou através da afirmação de que leis e costumes diferentes se devem a padrões diferentes, ou a diferentes formas de pensamento, ou a diferentes marcos conceituais que são, por isso, incomensuráveis ou incomparáveis”. Popper acha justamente o contrário: devemos tentar compreender e comparar. Devemos tentar avaliar quem tem as melhores instituições, e devemos aprender com elas através de um olhar crítico.
Hegel e Marx foram, talvez, os mais influentes pensadores do mito do contexto. Para Marx, a ciência era dependente das classes sociais. Haveria uma ciência proletária e outra burguesa, cada qual prisioneira de seu contexto. A classe é que definiria o pensamento do indivíduo, sendo totalmente impossível um debate racional. A falibilidade humana pode representar um perigoso atrativo para tais doutrinas. O fato de existir parcialidade em todos os seres humanos não quer dizer que uma aproximação da verdade seja inviável. O curioso é que o próprio Marx, que não era proletário, arrogava-se a capacidade de pensar por esta classe, uma gritante contradição à sua própria crença. É evidente que o contexto pode influenciar nossos pensamentos. Mas parece claro também que os homens desfrutam da magnífica capacidade de olhar crítico, de debate racional independente de seu contexto. Não existe uma razão diferente para cada situação. Existe uma razão, que pode não ser infalível, mas em compensação é capaz de nos afastar dos erros e, portanto, nos aproximar da verdade.
A conclusão fica com Popper: “As prisões são os contextos. E aqueles que não gostam de prisões opor-se-ão ao mito do contexto. Acolherão com agrado a discussão com um parceiro vindo de outro mundo, de outro contexto, pois tal oferece-lhe a oportunidade de descobrir as suas amarras até aí não sentidas, ou de quebrá-las e desse modo ultrapassarem-se a si próprios. Mas o sair da prisão não é, seguramente, uma questão de rotina: só pode ser o resultado de um esforço crítico e de um esforço criativo”.
Popper era o cara. Sou fã dele.
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