Idéias de um livre pensador sem medo da polêmica ou da patrulha dos "politicamente corretos".
domingo, março 29, 2009
O Impacto do Clima na Cultura
Rodrigo Constantino
“A pátria do capital não é o clima tropical com sua vegetação exuberante, mas a zona temperada.” (Karl Marx)
Não acredito em determinismo de nenhum tipo, seja genético, social, climático ou histórico. Nenhuma força exógena ao homem determina seu destino. Como disse Viktor Frankl, “entre o estímulo e a resposta, o homem tem a liberdade de escolha”. É a crença no livre-arbítrio humano, da qual compartilho. Mas isso não quer dizer, naturalmente, que o homem não sofra influências que podem contribuir muito para suas escolhas e, portanto, trajetória. Nesse contexto, o clima sempre foi bastante citado como fator relevante para a formação de diferentes culturas. A natureza contribui – para o bem ou para o mal – na moldagem da mentalidade predominante de um povo.
O filósofo Bentham, por exemplo, disse que “entre as circunstâncias externas pelas quais a influência da educação é modificada, as principais são aquelas agrupadas sob a rubrica do clima”. Ele acrescentou: “Nos climas quentes, a saúde do homem tende a ser mais precária que nos frios; sua força e rijeza, menor; seu vigor, firmeza e constância mental, menor; e portanto, indiretamente, sua quantidade de conhecimento é também menor. O pendor de suas inclinações é diferente, e isso de modo mais notável no tocante à sua maior propensão para os prazeres do sexo e à precocidade da etapa da vida em que essa propensão começa a se manifestar: suas sensibilidades de todos os tipos são mais intensas; suas ocupações habituais mais para a lassidão que para a atividade; a constituição básica de seu corpo é, provavelmente, menos forte e menos rija; a constituição básica de sua mente é menos vigorosa, menos firme e menos constante”.
Vários outros pensadores depositaram no clima uma importância elevada na formação cultural de um povo. Montesquieu, por exemplo, disse que “nos países frios há menor sensibilidade aos prazeres; nos temperados, ela é um pouco maior, e, nos países quentes, ela é extrema”. Ele disse ainda: “O calor do clima pode ser tão excessivo que o corpo perde todo o vigor. A prostração alcança, dessa maneira, até mesmo o espírito: nenhuma curiosidade ou nobreza de propósito, nenhum sentimento generoso. Todas as inclinações se tornam passivas, e a preguiça se confunde com a felicidade”. Kant foi bastante direto também: “A excelência das criaturas pensantes, sua rapidez de apreensão, a clareza e a vivacidade dos seus conceitos, os quais chegam a elas pelas impressões do mundo externo, a capacidade de combinar esses conceitos e, em suma, toda a extensão da sua perfeição tornam-se mais altas e mais completas na proporção direta da distância do seu lugar de moradia até o Sol”.
David Hume também responsabilizou o clima pela situação nos trópicos: “Por que razão as pessoas que vivem entre os trópicos ainda não conseguiram desenvolver nenhuma arte ou civilidade, nem aprimorar política alguma em seu governo, nem disciplina militar alguma, enquanto poucas nações nos climas temperados se viram privadas desses benefícios? É provável que uma causa desse fenômeno seja o calor e a constância do clima na zona tórrida, que tornam menos necessárias para os seus habitantes as roupas e as casas, e assim eliminam, em parte, aquela necessidade que é sempre o maior estímulo ao trabalho e à invenção”.
John Stuart Mill, ao constatar que as nações detentoras do melhor clima e do melhor solo não têm sido as mais ricas ou as mais poderosas, também apelou ao clima como justificativa: “A vida humana nessas nações pode ser mantida com tão pouco que os pobres raramente sofrem de ansiedade, e, nos climas onde o mero existir é um prazer, o luxo que eles preferem é o do repouso. Energia, sob o apelo da paixão, eles a possuem em abundância, mas não aquela que se manifesta no trabalho contínuo e perseverante. E, como eles raramente se preocupam o bastante com objetivos remotos para estabelecer boas instituições políticas, os incentivos à industriosidade são ainda mais enfraquecidos pela proteção imperfeita dos seus frutos”.
Malthus acreditava que “o selvagem dormiria para sempre sob sua árvore se não fosse arrancado do seu torpor pelo ardume da fome ou pelo incômodo do frio”. Ele escreveu: “Naqueles países onde a natureza é mais redundante na produção espontânea, não encontramos habitantes que se notabilizem pela agudez de intelecto. A necessidade foi chamada, com muita verdade, de a mãe da invenção”. Thomas de Quincey disse: “Ao cooperar, por meio das tentações que oferece, com o langor luxuriante dos nativos, o clima se torna uma maldição desabilitadora dos melhores instintos da população”. Emerson também aderiu a esta explicação: “O solo difícil e os quatro meses de neve tornam o habitante da zona temperada do norte mais sábio e mais capaz que o seu par abençoado pelo perpétuo sorriso dos trópicos”. Alfred Marshall foi mais um nessa linha: “Um clima quente prejudica o vigor. Ele não é de todo hostil ao trabalho intelectual e artístico superior, mas impede as pessoas de se tornarem aptas a suportar um esforço muito intenso de qualquer tipo por maior tempo”.
Em resumo, vários pensadores depositaram no clima certa responsabilidade pela maior indolência, preguiça ou passividade observada nos trópicos. A necessidade de conviver num ambiente natural mais hostil pode ter colaborado para que os povos do norte desenvolvessem maiores aptidões para a produção. No Brasil, um pobre com poucos recursos consegue não apenas sobreviver, como pode também desfrutar de um lazer gratuito como a praia. Nos países escandinavos, a probabilidade desse mesmo pobre morrer de frio é bem maior. Fora isso, o clima tropical sem dúvida é mais propenso a manter uma população sem grandes ambições, numa condição de quase completo dolce far niente. É uma espécie de convite tentador ao hedonismo, ao carpe diem.
Mas nada disso é uma imposição inexorável. A Austrália é um bom exemplo para provar que é possível um povo prosperar num clima tropical. O clima tropical pode ser uma barreira ao progresso capitalista, mas não é um obstáculo intransponível de forma alguma. Roberto Campos afirmou: “Os que crêem que a culpa de nossos males está em nossas estrelas e não em nós mesmos ficam perdidos quando as nuvens encobrem o céu”. Ele estava certo. A responsabilidade pelo atraso cultural brasileiro, pelo nosso “jeitinho”, pela mentalidade que enaltece a “Lei de Gérson”, não pode ser jogada nos ombros dos “loiros de olhos azuis”. Ela é somente dos próprios brasileiros. Afinal, podemos mudar para melhor, independente do clima. A receita foi dada pelo colega de Campos, Eugênio Gudin: “Os países da América Latina não precisam criar uma civilização. Ela já foi criada pela Europa nos últimos quatro séculos. Cabe-nos assimilar essa civilização”.
sexta-feira, março 27, 2009
O Erro de Shiller
Rodrigo Constantino
"Giving money and power to government is like giving whiskey and car keys to teenage boys." (P.J. O´Rourke)
Em seu livro A Solução para o Subprime, Robert Shiller defende medidas radicais do governo como parte da solução de curto prazo da crise. Ele afirma que a solução para os problemas econômicos atuais requer “não ter medo de pensar e agir na escala do New Deal – a era dos reformadores”. Shiller interpreta o programa de Roosevelt como um marco positivo na história americana, um programa que teria evitado danos mais catastróficos ao “tecido social” do país. Essa é a visão mais comum sobre os fatos daquela época, mas nem por isso correta.
Na verdade, o excesso de intervenção estatal através do New Deal postergou a recuperação econômica, assim como ampliou os estragos causados pelo crash. Ali foram plantadas as sementes que iriam custar caro ao país muitos anos depois. O índice de ações Dow Jones só iria recuperar seu patamar de 1929 em 1954! No entanto, essa visão distorcida dos acontecimentos da Grande Depressão alimenta ainda hoje a crença de que está no governo a solução para as crises econômicas. Shiller é apenas mais um renomado economista a aderir ao grupo dos crentes no governo como “messias salvador”.
Para ser justo, Shiller reconhece o que os programas de resgate do governo representam. Ele afirma que “um bailout é injusto com aqueles que, porque foram mais responsáveis, não se envolveram com problemas e, assim, não se qualificam para um bailout”. E não tergiversa sobre onde recaem os custos dos pacotes: “No caso dos bailouts financeiros do governo, é o contribuinte, em última instância, quem está tipicamente na linha de fogo para pagar por eles”. Em outras palavras, Shiller não faz rodeios para explicar que os pacotes representam dinheiro tomado de pagadores de impostos que foram responsáveis para repassar àqueles agentes que ousaram demais durante a fase de bonança.
Shiller também não ignora os riscos morais dessas ajudas estatais. Ele faz uma analogia entre um pai e uma criança desobediente, que se nega a seguir uma conduta responsável. Se o pai evitar o castigo prometido, corre o risco de incentivar novas condutas irresponsáveis do filho. Se ele possui mais de um filho, aquele que se comportou corretamente poderá se sentir injustiçado, e com razão. O filho obediente observa que seguir as regras e agir de forma responsável não produz resultado melhor do que agir de maneira irresponsável. Não há prêmio ou punição por meritocracia, e isso poderá estimular o comportamento irresponsável no futuro. Mas mesmo reconhecendo isso tudo, Shiller conclui que o bailout pode ser necessário em caso de risco sistêmico. Seria uma “tentativa de estancar uma doença epidêmica por meio de tratamento emergencial excessivo apenas para aqueles que estão mais doentes ou mais próximos da morte”.
O maior erro de Shiller, em minha opinião, está em sua premissa. Ao comparar o governo com um pai preocupado com a educação de seus filhos, ele já parte de uma base incorreta e romântica. O governo é formado por seres humanos egoístas, como todos os outros, em busca de seus próprios interesses. Os políticos se preocupam com as próximas eleições. Os burocratas querem sempre maiores orçamentos para suas áreas. Governantes querem sempre mais poder. Enfim, são homens falhos que buscam os próprios interesses, e não um pai que ama seus filhos, que sabe melhor o que é desejável para seu futuro, e que de forma altruísta pretende se sacrificar em prol desta meta. A analogia entre governo e família é sempre perigosa por conta disso. Os populistas adoram usar esta comparação indevida. Eles se enxergam como o pai das pobres crianças – o povo – que necessitam de tutela. Nada poderia estar mais longe da verdade!
Quando o governo tem seu poder aumentado de forma tão absurda durante uma crise, dificilmente ele irá abrir mão espontaneamente depois. Pelo contrário: a maior probabilidade é dele usar esse maior poder para estender ainda mais seus tentáculos sobre a vida e o bolso dos cidadãos. Assim tem sido sempre. O erro de Shiller (assim como de tantos outros pensadores, incluindo alguns liberais) é justamente ignorar esta realidade. Ele parte de uma visão platônica de governo, onde “reis filósofos” saberão quando intervir de forma cirúrgica para estancar uma sangria, mas que logo depois irão deliberadamente devolver o poder todo ao povo. Ele esquece aquilo que Thomas Sowell alertou, que o poder para criar a “justiça social” é também o poder para criar o despotismo.
Ora, eu também seria favorável ao poder de intervenção estatal em casos de crises graves... se os governantes fossem clarividentes e santos. Se eles fossem gênios altruístas, capazes de prever as reformas necessárias de forma acurada, e estivessem dispostos a abrir mão do poder concentrado logo depois da cura, teriam meu voto para a intervenção também. Em resumo, se fossem Deus, por que não lhes dar o poder? Mas creio que tal premissa é no mínimo ingênua demais.
No fundo, todo intervencionista acaba optando pelo intervencionismo por se colocar do lado legislador. Ele assume sempre que as suas idéias serão as escolhidas. Acaba esquecendo que pode ser alguém totalmente diferente no trono, alguém incapaz de prever as mudanças necessárias, e disposto a abusar do poder que tem. Correr este risco – muito provável, aliás – não parece uma boa escolha. Afinal, a analogia mais correta pode ser aquela feita por P.J. O’Rourke na epígrafe: dar dinheiro e poder para o governo é como dar bebida e chaves do carro para adolescentes!
quinta-feira, março 26, 2009
A Prosperidade Ilusória
Rodrigo Constantino
“The only way to do away with, or even to alleviate, the periodic return of the trade cycle – with its denouement, the crisis – is to reject the fallacy that prosperity can be produced by using banking procedures to make credit cheap.” (Ludwig von Mises)
A taxa “natural” de juros é aquela que predominaria num livre mercado de capitais, equilibrando a oferta existente de capital poupado e a demanda por investimentos. Para realizar novos investimentos produtivos, antes é necessário acumular capital, ou seja, fatores de produção. No entanto, a mentalidade vigente parte da premissa de que uma redução na taxa de juros será sempre desejável, ainda que obtida por meios artificiais. Fala-se em “escassez de dinheiro”, confundindo-se dinheiro com capital, como se mais dinheiro vindo do além pudesse gerar mais investimento produtivo de forma sustentável. Isso não passa de uma grande ilusão, como Mises já havia demonstrado em artigos do começo do século XX, organizados no livro The Causes of the Economic Crisis.
Existem duas maneiras de se criar dinheiro artificial: impressão de papel moeda pelo governo; e emissão de crédito bancário sem lastro. Os bancos podem reduzir artificialmente as taxas de juros através de meio fiduciário, emitindo notas e cheques além da quantidade de depósitos à vista, possível graças às reservas fracionárias. Mises chamou essa emissão fiduciária sem lastro de “circulation credit”, enquanto o crédito lastreado pela poupança era chamado de “commodity credit”. Somente o primeiro é inflacionário. O “dinheiro fácil” criado por este mecanismo pressiona as taxas de juros para baixo, criando a falsa sensação de prosperidade. Investimentos que antes não pareceriam rentáveis pela taxa “natural” de juros, agora se tornam atraentes. Recursos são desviados para estes investimentos ruins e indesejados, adicionando mais lenha na fogueira, sustentando assim o clima de euforia. Algumas escolas de pensamento chegaram a defender esta política dos bancos como meio para tornar o crédito gratuito e resolver a “questão social”. A arte da alquimia teria sido descoberta. Mas a inflação não é uma política sustentável.
A inflação dura somente enquanto as pessoas acreditarem que ela será temporária. Assim que os agentes se convencerem de que a inflação não irá parar, eles fogem do uso desta moeda, correndo para “valores reais” como moedas estrangeiras, metais preciosos ou até escambo. Cedo ou tarde, portanto, a crise deve inevitavelmente estourar como resultado de uma mudança na postura dos bancos ou dos agentes. Quanto mais tarde for este ajuste, mais doloroso ele será, pois maiores serão os estragos causados na fase de bonança artificial. Uma fase de recessão substitui o boom anterior, e os negócios iludidos durante a era de crédito abundante acabam sendo liquidados. Os bancos se tornam mais cautelosos, e ficam tímidos na expansão de mais crédito circulante. A taxa de juros sobe novamente para seu patamar “natural”. Quando uma política inflacionista chega ao fim dessa maneira, é preciso tempo para ajustar os excessos. As pessoas se tornam descrentes e recusam novas rodadas de crédito fácil. Talvez uma nova geração tenha que surgir para que a memória coletiva seja totalmente apagada e uma nova onda de ilusão possa tomar conta do país.
Segundo Mises, o principal fator por trás dessa ilusão coletiva é ideológico. Tanto os políticos como os empresários encaram a redução da taxa de juros como uma meta essencial da política econômica. A expansão do crédito circulante é vista como o meio adequado para atingir esta meta. Enquanto as pessoas não entenderem que o único meio sustentável de redução da taxa de juros é o maior acúmulo de capital através da poupança, essas ondas de euforia seguida de pânico irão continuar. Os bancos devem atuar como intermediários entre poupadores e investidores, mas não devem ter o poder de criar crédito com lastro inexistente. O conhecimento de que o governo estará disponível no caso de emergências cria um moral hazard, fazendo com que os bancos sejam ainda mais agressivos e irresponsáveis na política de crédito circulante. Se a crise pudesse seguir seu curso livremente, para impor as duras penalidades nos agentes que assumiram mais dívida do que podiam, todos seriam mais cuidadosos com o crédito no futuro. Mas a opinião pública aprova a assistência do governo durante as crises, o que apenas estimula o comportamento irresponsável.
Em resumo, a política de expandir o crédito circulante deverá inevitavelmente acabar algum dia. Se for mais cedo, por uma mudança dos próprios bancos retraindo o crédito, o estrago causado por investimentos indesejados será menor. Se for mais tarde, uma catástrofe poderá ser inevitável, pois apenas uma depressão poderá limpar todos os erros da era de prosperidade ilusória. As pessoas precisam aceitar a realidade, em vez de sonhar com milagres. A taxa de juros não é algo que pode ser impunemente manipulada por governos ou bancos. Ela é um importante preço de mercado, que equilibra poupança e investimento. Enquanto as pessoas julgarem que uma maçã hoje vale mais do que uma daqui a um ano, haverá taxa de juros para equacionar as preferências intertemporais dos agentes. Os investimentos produtivos dependem sempre de capital acumulado, justamente para deixar de consumir mais agora e ter mais depois. Acreditar que é possível ter e comer o bolo ao mesmo tempo, que podemos simplesmente forçar na marra a taxa de juros para baixo, para aumentar os investimentos sem a contrapartida de mais poupança real, não passa de uma grande e perigosa ilusão.
sexta-feira, março 20, 2009
A Crise Vista por um Prisma Liberal
Rodrigo Constantino, para a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME)
Virou “lugar-comum” culpar o livre mercado pela atual crise que assola o mundo. Em todo lugar se escuta que a ausência de regulação e a ganância dos capitalistas estão na raiz dos problemas. Pretendo mostrar abaixo uma análise diferente das causas desta crise financeira, utilizando um prisma liberal. Meu objetivo será demonstrar que as impressões digitais do governo americano estão em todas as cenas do crime.
Em primeiro lugar, os Estados Unidos não experimentam mercados verdadeiramente livres há quase um século. O governo intervém ativamente usando tanto a política fiscal como a monetária, além de inúmeras regras regulatórias. Um dos principais preços de mercado é justamente a taxa de juros, e ela vem sendo sistematicamente manipulada pelo governo, através do Banco Central. A emissão de papel-moeda e as operações no open market são instrumentos à disposição do banco central para a criação de mais oferta monetária. Historicamente, todo governo abusou deste mecanismo, usando a inflação para financiar seus gastos. O resultado é o estímulo de mais crédito na economia, com taxas de juros artificialmente mais baixas. Investimentos que não seriam realizados numa economia realmente livre acabam se tornando atraentes, e muitos recursos são desviados para destinos indesejados.
Esses excessos estimulados pelo governo necessitam de um tempo para ajuste, sempre doloroso. Uma analogia com um bêbado pode ilustrar melhor a situação: após o consumo excessivo de álcool, uma ressaca se faz necessária para o organismo limpar as impurezas acumuladas. No entanto, o banco central americano atua como alguém que oferece novas rodadas “grátis” de bebida, postergando a ressaca, mas também aumentando os riscos. Se muita liquidez for injetada para evitar freqüentemente a ressaca, o resultado pode até ser uma cirrose. O Banco Central atua como emprestador de última instância, o que é análogo a uma rede de segurança para trapezistas. Sabendo-se a priori que esta rede de segurança estará lá para proteger no caso de uma queda eventual, os trapezistas naturalmente irão ousar mais nas manobras. É o que os economistas chamam de moral hazard.
A bolha da Internet estourou em 2000, uma fase de ajustes dolorosos era necessária, mas o governo considera tais ajustes sempre impopulares. As intervenções, como a manutenção da taxa de juros em 1% ao ano por longo período, aliviaram as seqüelas da crise, mas ajudaram a criar uma nova bolha ainda maior. Não deixa de ser curioso o fato de que era Alan Greenspan o mentor desta política, já que ele foi um ferrenho defensor do padrão-ouro no passado, objetivando justamente proteger a economia de políticas inflacionárias como esta. Durante sua gestão no comando do Fed, o mercado financeiro criou a expressão “Greenspan Put”, exatamente para se referir a esta rede de segurança garantida pelo Banco Central no caso de alguma catástrofe.
Mas a intervenção do governo não se restringiu à área monetária. O setor imobiliário sempre foi foco de muita atenção por parte dos políticos, pois a demanda pela casa própria costuma ser uma prioridade para muitos cidadãos. Em 1977 foi criado o Comunity Reinvestment Act (CRA), com o objetivo de obrigar bancos a emprestar uma parte dos seus ativos às comunidades carentes. Em 1994, o governo estendeu as metas do CRA, e em 2005, após um escândalo contábil envolvendo a Freddie Mac, o governo resolveu punir a empresa demandando mais crédito hipotecário para as classes de baixa-renda. Em outras palavras, o governo exerceu enorme pressão para que o crédito imobiliário chegasse às classes mais baixas, com menor condição de pagamento. Foi justamente este setor subprime do crédito imobiliário que experimentou o maior crescimento nos últimos anos, caracterizando uma verdadeira bolha que depois estourou.
Muito se fala sobre ausência de regulação como causa da crise também, mas alguns dados colocam esta análise em xeque. Os setores no epicentro da crise atual não eram os menos regulados, mas sim setores bastante controlados como os de seguro, bancos e financiamento imobiliário. A Fannie Mae e a Freddie Mac contavam com um órgão regulador especial, a OFHEO, cuja missão era cuidar da saúde financeira dessas empresas. Isso não impediu que o grau de alavancagem delas chegasse a cinqüenta vezes seu capital. Já o setor de hedge funds, normalmente alvo preferido como bode expiatório, perdeu com a crise, mas não tanto quanto esses outros setores mais regulados. A acusação de que o mercado americano não tem regulação é simplesmente falsa. Existem diversos órgãos reguladores, como a própria Securities and Exchange Commission (SEC) e o Federal Reserve System (Fed), que controlam os mercados minuciosamente. Os reguladores podem até ser acusados de negligência, mas não faz sentido falar em ausência de regulação.
Como espero ter deixado mais claro no resumo acima, as intervenções do governo americano estão no epicentro da crise atual. Evidentemente, isso não exime de culpa os agentes do setor privado, principalmente no mercado financeiro. De fato, houve claros excessos fruto de irresponsabilidade de muitos desses agentes. Mas quando todos erram ao mesmo tempo, deve-se procurar a causa em algum fator exógeno. As manipulações que o governo vem fazendo no mercado, principalmente no que diz respeito à oferta monetária, explicam melhor estes erros coletivos num mesmo momento.
Acertar o diagnóstico é fundamental para acertar o remédio. Enquanto a visão predominante for a de que o mercado falhou, a solução proposta será mais governo, mais intervenção e mais regulação. Pode-se acabar dando mais veneno em vez de adotar as medidas necessárias para a cura definitiva. Ocorreu uma bolha de crédito, mas o governo tem estimulado justamente mais crédito como solução. Os americanos foram acusados de consumismo desenfreado, mas o governo tenta estimular mais consumo e menos poupança. Tenta-se, como sempre foi o caso, evitar o impopular ajuste necessário. Salva-se empresas que deveriam falir, obrigando os pagadores de impostos a sustentar companhias ineficientes. Enfim, aplicam-se os mesmos instrumentos causadores do mal como se fossem parte da cura agora. É como tentar curar a leucemia usando sanguessugas.
É compreensível que os americanos não queiram pagar a conta dos excessos cometidos, e que os políticos tentem jogar para frente esta conta. Mas hipotecar o futuro das próximas gerações não vai resolver o problema. Os déficits criados pelo aumento dos gastos públicos terão que ser pagos eventualmente, e a emissão acelerada de moeda não passa de um imposto inflacionário disfarçado. O governo tenta uma vez mais evitar os ajustes necessários na economia, para limpar os excessos da bonança artificial. Insanidade, como lembrou Einstein, é fazer tudo igual novamente e esperar resultados diferentes.
quarta-feira, março 18, 2009
Os Riscos de uma Regulação Excessiva
Rodrigo Constantino
Durante crises acentuadas, é compreensível que governantes tentem jogar a culpa toda no mercado, demandando mais controle estatal como solução. No entanto, deve-se lembrar que os setores no epicentro da crise atual não eram os menos regulados, mas sim setores bastante controlados como os de seguro, bancos e financiamento imobiliário. A Fannie Mae e a Freddie Mac contavam com um órgão regulador especial, a OFHEO, cuja missão era cuidar da saúde financeira dessas empresas. Já o setor de “hedge funds”, normalmente alvo preferido como bode expiatório, perdeu com a crise, mas não tanto quanto esses outros setores. Além disso, é preciso ter em mente que mais regulação pode engessar a necessária flexibilidade financeira, fundamental para a inovação no setor.
De fato, as aceleradas inovações no setor financeiro explicam em parte a crise. O progresso que tais inovações permitem não pode ser ignorado, mas sem dúvida carrega um custo também. É o que mostra Richard Bookstaber em A Demon of our own Design. Bookstaber foi risk manager em várias instituições financeiras como Morgan Stanley, Salomon e Moore Capital. Para ele, a complexidade dos instrumentos financeiros, assim como o uso de elevada alavancagem, explicam o aumento do risco estrutural nos mercados. No entanto, ele mesmo reconhece que mais regulação apenas eleva o risco, por acrescentar camadas de complexidade ao sistema.
Em 1987, o S&P 500 chegou a cair mais de 20% em um único dia. Um dos catalisadores dessa queda foi paradoxalmente a compra de seguro por parte de muitos investidores. Atualmente, o que ocorreu no mercado de CDS foi similar. Muitos investidores compraram proteção através dos Credit Default Swaps, e quando a liquidez secou, as perdas foram fatais para alguns. A combinação de velocidade e complexidade é uma fonte de graves crises no mercado financeiro. Os modelos de risco normalmente usados dependem do passado, partem de premissas estatísticas que ignoram o elevado grau de incerteza acerca do futuro. O verdadeiro risco é aquele que não pode ser antecipado. Os complexos instrumentos de hedge podem jogar lenha na fogueira no momento em que um fator imprevisível ataca de surpresa.
A reação natural diante de tais riscos é pedir mais regulação. Mas a tentativa de regular fenômenos complexos assim pode gerar conseqüências não-intencionais. Um exemplo citado por Bookstaber é a regra de quanto risco um banco pode ter em relação ao seu capital. Quando os mercados entram em queda livre, o preço dos ativos despenca. Como os bancos devem marcar seus ativos a mercado, precisam automaticamente ajustar esse índice, vendendo mais ativos. Mas a própria venda pressiona ainda mais os preços, gerando novas perdas e aumentando o risco do banco, numa espiral perigosa.
O autor foi buscar outros exemplos fora do mercado financeiro também. Alguns acidentes aéreos ou em usinas nucleares tiveram como fator preponderante justamente válvulas de segurança criadas para reduzir os riscos. Sistemas com elevado grau de complexidade interativa estão sujeitos a falhas que parecem surgir do nada, consideradas extremamente improváveis. Pequenos erros podem desencadear uma seqüência de erros que se perdem na complexidade do sistema, causando um enorme estrago final. Regras rígidas que centralizam as decisões e não contam com as falhas inesperadas acabam potencializando este risco caótico. Qualquer regulação deveria justamente tentar reduzir a complexidade, em vez de tentar controlar os riscos conhecidos depois do acidente.
Os governantes devem evitar a pretensão do conhecimento capaz de controlar os eventos futuros. Muito do progresso depende justamente daquilo que ainda não temos como saber hoje. As incertezas não podem ser representadas em modelos de probabilidade estatística, justamente porque são desconhecidas. Ninguém tem como saber qual será o evento futuro que irá desencadear a próxima grave crise. Bookstaber encontrou na biologia uma boa receita para conviver com tais incertezas. As baratas sobreviveram por mais tempo que qualquer espécie mais complexa. Isso se deve à sua estratégia simples de lidar com riscos inesperados. Seu mecanismo não poderia ser mais trivial: ela sempre foge de qualquer deslocamento maior de ar, que pode sinalizar um predador. A complexidade pode matar num mundo incerto demais. Talvez seja preciso alguém com um Ph.D. pelo MIT para concluir que a solução pode ser encontrada numa simples barata!
quinta-feira, março 12, 2009
quarta-feira, março 11, 2009
O Primeiro Pânico Americano
Rodrigo Constantino
“A história não se repete, mas com freqüência rima.” (Mark Twain)
A prosperidade que os Estados Unidos experimentaram na década de 1810 culminou numa grave crise econômica em 1819. Não obstante o fato de que nessa época a economia americana era bem mais simples que hoje, com forte predominância agrária, alguns paralelos podem ser úteis para se extrair algumas lições. Desta forma, o livro The Panic of 1819, de Murray Rothbard, que faz um relato minucioso dos acontecimentos e debates da época, representa uma interessante leitura.
Na fase pós-guerra Anglo-Americana, a economia apresentava forte desempenho. O aumento nos valores exportados e a expansão monetária e creditícia levaram a um boom nos preços de imóveis rurais e urbanos. A especulação na compra de terras públicas, com rápido crescimento do endividamento de fazendeiros, contribuíra para a prosperidade, mas iria cobrar um elevado preço em seguida. O próprio governo estimulara esta especulação, concedendo termos amigáveis para a compra de suas terras. Os gastos do governo federal com construção também jogaram mais lenha na fogueira, tendo aumentado vinte vezes entre 1816 e 1818.
Os bancos, sem a obrigação de pagar os saques em espécie, continuaram expandindo o crédito, enquanto suas notas bancárias continuaram se depreciando. O número de bancos tinha aumentado de 208 para 246 somente em 1815, e o valor das notas em circulação havia aumentado quase 50%. A criação de um Segundo Banco dos Estados Unidos serviu para expandir ainda mais o crédito, encorajado pelo Tesouro. O número de bancos chegou a quase 400 em 1818. A decisão do governo de tratar suas notas como equivalente a espécie era parte da causa disso. No meio desta bolha, a Bolsa de Nova Iorque foi criada, em 1817.
A inevitável contração foi precipitada em 1819, quando o governo deveria pagar boa parte da dívida assumida na compra de Louisiana. Como muitos credores eram estrangeiros, o pagamento deveria ser em espécie. O Banco dos Estados Unidos foi forçado a cortar a expansão vigente e tomar medidas deflacionárias. Uma onda de falências tomou conta do país. O pânico se alastrou, e a contração no crédito fez com que as vendas imobiliárias despencassem. A queda abrupta nos preços dos ativos aumentou o fardo para quem tinha tomado dívida em valores fixos, gerando um rastro de insolvência. Um fenômeno que depois iria se tornar comum nas crises surgiu nessa época: um desemprego em larga escala nas cidades.
O que Rothbard mostra no livro é o excelente nível de debates sobre a crise, suas causas e as receitas propostas. O federalismo ainda era uma realidade nos Estados Unidos, e muito dos debates se deu no âmbito dos estados. Figuras proeminentes, como Thomas Jefferson e John Adams, entre tantos outros, manifestaram-se através de artigos e discursos, com foco nos argumentos econômicos que iriam moldar as diferentes vertentes no país. Os principais temas eram: medidas de alívio para os devedores; o sistema monetário; os bancos; e as tarifas protecionistas. Nesses debates, muito do que iria constar nas principais doutrinas econômicas já se fazia presente. Inúmeros pensadores importantes condenaram a expansão do governo como solução para a crise, tanto com base em argumentos sobre a ineficiência desse caminho, como em sua imoralidade. Os excessos da irresponsabilidade deveriam ser pagos pelos próprios indivíduos, não jogados sobre o ombro dos pagadores de impostos.
De fato, os argumentos contrários às intervenções acabaram sendo vencedores na média, ainda que vários estados tenham adotado uma ou outra medida específica. Em 1821, a depressão começava a aliviar, e a economia já entrava em recuperação. O doloroso processo de liquidação das dívidas estava terminando, e os bancos sobreviventes podiam expandir o crédito novamente. Os preços em geral iniciaram uma trajetória de alta. As idéias pregadas por muitos na época pareciam vingar: o país precisava dar tempo para os ajustes necessários, que o equilíbrio seria naturalmente restaurado. Os indivíduos teriam que economizar e voltar a viver dentro de suas capacidades, e o trabalho árduo levaria ao aumento da produção. Não existiam milagres ou atalhos artificiais para enfrentar a realidade.
O governo não era o detentor de uma varinha mágica, capaz de emitir papel e estimular o crescimento econômico novamente. Não foram poucos os que apelaram para a solução expansionista, através da inflação. Os seus argumentos não diferem dos utilizados atualmente: a nação sofria uma escassez de dinheiro, os bancos não estavam em condições de emprestar, portanto, o governo deveria expandir a moeda mesmo sem conversão em espécie. Os devedores seriam aliviados, as taxas de juros cairiam, e a confiança seria restabelecida. Todos esses pontos receberam fortes críticas e contra-argumentos que, de certa forma, acabaram predominando.
Muitos aspectos do pânico de 1819 estão presentes na crise atual: a especulação imobiliária estimulada pelo próprio governo; a bolha de crédito criada pelos bancos; a deflação; etc. Infelizmente, o que mais mudou desde então foi a qualidade nos debates sobre as causas da crise e as receitas desejáveis. Atualmente, com a honrosa exceção de um grupo bem minoritário de liberais, quase todos assumem como certa a necessidade de intervenção do governo para solucionar os problemas, e defendem ainda uma política inflacionista irresponsável, hipotecando o futuro do país. Ninguém mais fala em deixar o curso natural das coisas levar ao equilíbrio novamente, ou em “sound money” no lugar de um banco central hiperativo na emissão de papel. O déficit público explosivo é visto como solução milagrosa para a depressão. Basta o governo assinar cheques sem lastro que tudo ficará bem. O protecionismo comercial vem ganhando força novamente. São os mesmos pontos de quase dois séculos atrás. Só que agora não há mais um debate verdadeiro, e sim uma “unanimidade” do lado expansionista. Acontece que, como dizia Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra”.
quarta-feira, março 04, 2009
O Aborto de uma Criança
Rodrigo Constantino
A menina de apenas nove anos que havia sido estuprada pelo padrasto em Pernambuco e engravidado de gêmeos, realizou um aborto na manhã de quarta-feira. Membros da Igreja Católica tentaram impedir o aborto. O advogado da Arquidiocese de Olinda e Recife, Márcio Miranda, afirmou que vai denunciar o caso ao Ministério Público de Pernambuco. Ele afirmou que a Constituição prevê o princípio da dignidade do ser humano. Resta perguntar: qual ser humano?
Alguns religiosos estão tão imbuídos de sua cruzada moral que passaram a ignorar o próximo de carne e osso. A sensação de regozijo do membro da cruzada contra qualquer tipo de aborto, mesmo em casos absurdos como este, supera a própria empatia que ele poderia sentir pela pobre garotinha estuprada pelo padrasto e com apenas nove anos. Ele se sente moralmente superior aos demais, defendendo “a vida” a todo custo, mesmo que seja a vida de um feto precariamente formado, sem sensações ou sistema nervoso, enquanto a vida de uma pobre menininha é jogada em segundo plano.
Sam Harris, autor de Carta a uma Nação Cristã, escreveu sobre Madre Teresa de Calcutá: "A compaixão de madre Teresa estava muito mal calibrada, se matar um feto no primeiro trimestre a perturbava mais do que todo o sofrimento que ela testemunhou nesta Terra”. Creio que o “amor” dessas pessoas pelo feto de poucos milímetros supera bastante qualquer possibilidade de empatia pelos seres humanos concretos. É mais ou menos como Nelson Rodrigues falava: “Amar a Humanidade é fácil; difícil é amar o próximo”. Infelizmente, muitos “humanistas” acabam assim, apaixonados por uma causa mais abstrata, que lhes fornece uma entorpecente sensação de superioridade moral, enquanto seus próximos sofrem as conseqüências.
Um bom exemplo disso foi Rousseau. O pensador se proclamava o mais virtuoso dos homens, e se dizia amigo de toda a humanidade, mas colecionou inúmeros desafetos ao longo de sua vida. Rousseau ficou famoso como “educador” das crianças através de seus livros, mas na prática abandonou todos os seus cinco filhos. O filósofo David Hume descreveu-o como um “monstro que se via como o único ser importante do universo”. Diderot considerou-o um “enganador, vaidoso como Satã, mal-agradecido, cruel, hipócrita e cheio de maldade”. Estes foram amigos dele durante algum tempo. Para Voltaire, ele era “um poço de presunção e vileza”. Sophie d’Houdetot, quem ele mesmo considerou seu único amor, julgou-o, quando mais velha, como “repulsivo”, uma “figura patética” e um “louco interessante”. Mas Rousseau mergulhou numa verdadeira cruzada moral, e se colocava acima de todos, apesar dessa análise bem diferente dos mais próximos.
Muitos comunistas abraçam a cruzada da Utopia também, e em nome da causa toleram as maiores atrocidades do mundo. Foi assim que muitos defenderam assassinos como Stalin, Fidel Castro, Mao Tse Tung e Pol-Pot. Eram apenas ditadores cruéis, responsáveis pela morte de milhões de inocentes. Mas os comunistas estavam acima dessas questões “burguesas”, e acreditavam que seus fins utópicos justificavam tais meios. Quando Che Guevera mete friamente uma bala na cabeça de alguém cujo “crime” foi discordar da revolução, os comunistas não se importam, pois a revolução vale mais que a vida de simples indivíduos. O sofrimento de pessoas de carne e osso passou a ser insignificante perto da grandeza de suas metas.
Na mesma linha da frase de Nelson Rodrigues, Charles Schulz afirmou ironicamente que amava a humanidade, mas eram os homens que ele não suportava. Até quando esse grupo de religiosos mais fanáticos irá amar a “vida”, mas ignorar o sofrimento das pessoas vivas ao lado? Quando o código moral chega ao ponto em que uma menininha com apenas nove anos, vítima de um estupro do próprio padrasto, deve atravessar essa gravidez não importa seu sofrimento ou riscos, está na hora de mudar urgentemente de código. E em hipótese alguma esse código perverso merece o nome de “ética da vida”. Está mais para “ética do sofrimento”.
domingo, março 01, 2009
O Contexto em 1964
Rodrigo Constantino
“É sumamente melancólico – porém não irrealista – admitir-se que no albor dos anos 60 este grande país não tinha senão duas miseráveis opções: ‘anos de chumbo’ ou ‘rios de sangue’...” (Roberto Campos)
Muitos brasileiros pensam que os membros do PT e da esquerda radical sempre participaram de uma luta pela democracia no Brasil. Na verdade, eles queriam uma “democracia popular”, eufemismo para ditadura da nomenklatura, como foi o caso de todos os países onde os comunistas tiveram sucesso. Eles lutavam pelo modelo existente até hoje em Cuba, que de democrático não tem absolutamente nada. Vale a pena voltar um pouco no tempo, para resgatar os fatos deturpados por esses que posam atualmente de defensores da democracia e recebem milhões de anistia do governo.
A chamada “crise da legalidade” foi deflagrada com a renúncia de Jânio Quadros, quando os ministros da Guerra, da Marinha e da Aeronáutica não aceitaram a posse do vice-presidente João Goulart, herdeiro político do ditador populista Getúlio Vargas e acusado de ligações com os comunistas. O país estava em sério risco de viver uma guerra civil. Diante da estação da Central do Brasil, mais de cem mil manifestantes gritavam por mudanças, com faixas como “Reconhecimento da China Popular”, “PCB – Teus Direitos São Sagrados”, “Abaixo com as Companhias Estrangeiras”, “Trabalhadores Querem Armas para Defender o Seu Governo” e “Jango – Defenderemos as Reformas a Bala”. A classe média teve uma reação em cadeia contra essa radicalização estimulada pelo próprio governo.
Leonel Brizola, cunhado de Jango, defendeu a substituição do Congresso por uma Constituinte repleta de trabalhadores camponeses, sargentos e oficiais nacionalistas. Goulart assinou um decreto, em 1964, desapropriando todas as terras num raio de dez quilômetros dos eixos das rodovias e ferrovias federais para sua reforma agrária, assim como encampou as refinarias de petróleo privadas, em outro decreto. Foi anunciado o tabelamento dos aluguéis. O governo estava em crise, apelando para a intimidação, enquanto a economia afundava. A inflação fora de 50% em 1962 para 75% no ano seguinte. Os primeiros meses de 1964 projetavam uma taxa anual de 140%, a maior do século. A economia registrava uma contração na renda per capita pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial. As greves duplicaram entre 1962 e 1963. O governo irresponsável acumulara um déficit equivalente a mais de um terço do total das despesas. Jango nomeou o almirante Paulo Mário da Cunha Rodrigues, próximo ao Partido Comunista.
O Congresso mostrava-se disposto a bloquear os projetos de reforma. Luiz Carlos Prestes, ligado ao Partido Comunista, chegou a defender a dissolução do Congresso. Um golpe, de um dos lados, parecia iminente e inevitável. Tancredo chegou a prever que os passos de Jango levariam a uma luta armada. O governador pernambucano esquerdista, Miguel Arraes, declarou estar certo de um golpe, “de lá ou de cá”. Brizola repetia que “se não dermos o golpe, eles o darão contra nós”. Jango, na China, discursava sobre o socialismo no Brasil. A famosa Revolta dos Marinheiros foi como uma gota no copo d’água lotado. Ocorreu uma quebra de hierarquia militar. O cabo Anselmo liderou a revolta, que resultou na demissão do ministro da Marinha, almirante Sílvio Mota, por tentar reprimi-lo.
O contexto internacional da década de 60 era marcado pela Guerra Fria, e Cuba, no continente americano, tinha sido o primeiro caso de sucesso dos comunistas. O eixo da luta entre capitalistas e comunistas tinha se deslocado para a América Central, e os ditadores da União Soviética estavam investindo pesado no continente, enviando bilhões de dólares e agentes da KGB para diversos países. Em 1962 ocorreu a crise dos mísseis nucleares, que os russos instalaram clandestinamente no território cubano. Quase foi deflagrada uma guerra nuclear pela tentativa de avanço imperialista dos soviéticos comunistas.
O perigo do comunismo era real para todos os países, incluindo o Brasil. Diversas nações caíram nas garras comunistas nesse período, entrando em ditaduras duradouras e caóticas, enquanto outras acabaram partindo para uma ditadura de direita, tentando travar os avanços comunistas. E era esse regime, responsável pela morte de cerca de cem milhões de pessoas no mundo todo, que as “vítimas” da ditadura queriam implantar no Brasil à força. Grandes defensores da democracia!
Eis o contexto do “golpe” de 1964 pelos militares, que, na verdade, foi mais um contragolpe. O general Humberto de Alencar Castello Branco era chefe do Estado-Maior do Exército, e fora um respeitado chefe da seção de operações da Força Expedicionária Brasileira. Assumiu o comando da nação, fazendo um governo decente. Preparou as bases que permitiram o “milagre econômico” posterior. Não vem ao caso analisar os anos da ditadura em si, que foram péssimos para o país, com a exceção desses primeiros comandados por Castello Branco, que pretendia inclusive anunciar eleições democráticas rapidamente.
A ditadura acabou sendo um exemplo do positivismo de Comte, com bastante interferência do Estado. Geisel, não por acaso o ditador mais admirado pela esquerda, criou dezenas de estatais. A ditadura não teve nada de liberal em economia, e a colocam à direita no espectro político apenas por ter combatido a esquerda radical dos comunistas. Mas nenhuma similaridade pode ser encontrada entre os militares e uma Margareth Thatcher, por exemplo, que representa a direita e que possibilitou enormes avanços para a Inglaterra, que estava caminhando rapidamente rumo ao fracasso com medidas socialistas. Como o próprio Roberto Campos reconheceu, “o erro dos militares foi não terem feito a abertura econômica antes da política; o erro dos civis foi, depois da abertura política, praticarem uma fechadura econômica”. O Brasil simplesmente não experimentou as graças do liberalismo.
Após a reação dos militares, com forte apoio popular na época, que culminou no “golpe” de 64, os comunistas intensificaram alguns ataques. Como os primeiros anos não foram na “linha dura”, os radicais de esquerda perpetraram ações que incluíram assassinatos e seqüestros, como o do embaixador americano, o que acabou provocando o agravamento brutal da repressão, que chegou a partir do Ato Institucional nº 5. Antes da assinatura do AI-5, já estavam no currículo desses terroristas o assassinato de pessoas como o Major do Exército da então Alemanha Ocidental, Edward Von Westernhagen, no primeiro dia de julho de 1968, e do Capitão do Exército norte-americano Charles Rodney Chandler, em São Paulo, no dia 12 de outubro de 1968.
Um dos grupos que defendia essa guinada violenta era o Agrupamento Revolucionário de São Paulo, inspirada em Carlos Marighela, que havia redigido o “Manual do Guerrilheiro Urbano”. Em 21 de junho de 1968, na chamada “Sexta-feira Sangrenta”, ocorreu um confronto ininterrupto que resultaria em centenas de feridos, 23 pessoas baleadas e quatro mortos, incluindo um soldado da PM atingido por um tijolo. Tentaram arrombar também as portas da agência do Citibank, símbolo do “imperialismo ianque”, e jogaram vários coquetéis Molotov na sede do jornal O Estado de São Paulo. O AI-5 foi assinado apenas em 13 de dezembro de 1968, como resposta aos crimes bárbaros cometidos pelos comunistas. O povo inocente pagou o preço.
Não obstante esse contexto envolvendo os acontecimentos da década de 1960, a esquerda que lutava pelo modelo comunista ainda tenta monopolizar a moral, se colocando como vítima indefesa de autoritários opressores. Qualquer ditadura merece ser criticada. Mas criticar nossa ditadura não é o mesmo que inocentar os comunistas, que brigavam por outra ditadura muito pior. Roberto Campos concluiu: “Comparados ao carniceiro profissional do Caribe, os militares brasileiros parecem escoteiros destreinados apartando um conflito de subúrbio...” O mais revoltante mesmo, é ver esses defensores de Fidel Castro condenando a nossa ditadura e ganhando rios de dinheiro, extraídos na marra do povo, somente por terem sofrido num combate onde representavam o pior lado do ponto de vista moral: o lado comunista.