quinta-feira, janeiro 06, 2011

Inundado pelo QE2

Benn Steil, Valor Econômico

Imagine a cena: você entra no chuveiro, abre a torneira, e nada. Você chamar um encanador que lhe diz que existem furos na tubulação e que o conserto vai custar US$ 1 mil. Você lhe diz para, em vez de consertar, aumentar a pressão da água.

Isso soa sensato? Bem, essa é a lógica por trás da segunda rodada de "afrouxamento quantitativo" - o "quantitative easing", ou ou QE2 na sigla em inglês - do Federal Reserve (Fed, banco central dos EUA), a sua estratégia para manter a canalização inundada de dinheiro até que o crédito comece a fluir livremente de novo dos bancos para as empresas.

Você não esperaria que isso desse certo com seu chuveiro e há pouca razão para esperar que funcione no mercado de financiamento empresarial. O mecanismo de transmissão de crédito nos EUA - e em outros países - está gravemente danificado desde 2007. Nos EUA, as pequenas e médias empresas dependem de bancos de pequeno e médio porte para obter acesso a crédito vital, porém muitos desses bancos continuam zumbis, incapazes de emprestar porque seus balanços patrimoniais estão repletos de empréstimos comerciais e imobiliários incobráveis orginados nos anos de boom.

O Programa de Socorro a Ativos Problemáticos (Tarp, na sigla em inglês) americano foi uma oportunidade para forçar os bancos a se desfazerem de ativos podres - e assim reparar a canalização do crédito. Em vez disso, os bancos só ficaram obrigados a tomar injeções de capital do governo, o que consideram politicamente tóxico. Como resultado, os bancos têm se concentrado em devolver os fundos de socorro o mais rapidamente possível, em vez de empregá-los para aumentar os empréstimos.

O resultado líquido disso é que, embora o Fed tenha levado a taxa de juros para empréstimos de curto prazo para abaixo de zero, a maioria dos bancos só empresta com base em garantias muito maiores e a juros reais muito maiores do que os praticados antes da recessão. Então, agora os EUA continuam penando sob a opção barata: inundando as tubulações para ver no que isso vai dar.

Não nos enganemos: alguma coisa vai jorrar, embora não necessariamente onde deveria. Já vimos a liquidez destinada a aumentar os empréstimos bancários nos EUA vazar, em vez disso, pelas rachaduras, para mercados tão diversos como de commodities agrícolas, metais e dívida de países pobres.

Paul Krugman, ganhador do Prêmio Nobel, que repreende o Fed por não abrir muito mais a eclusa monetária, mostrou as loucuras da bruta abordagem keynesiana quase uma década atrás. Em agosto de 2001, ele escreveu: "A força motriz por trás da atual desaceleração é uma queda no investimento empresarial". Mas, "para reaquecer a economia", nos disse ele, "o Fed não tem de restaurar o investimento no setor privado; qualquer tipo de aumento na demanda servirá. Em especial o setor habitacional, que é extremamente sensível às taxas de juro, poderia ajudar a puxar uma recuperação".

Um ano depois, como o Fed não havia se mexido com suficiente agressividade, em sua opinião, Krugman intuiu que "é preciso um grande aumento nos gastos das famílias para compensar o moribundo investimento das empresas. E para fazer isso (o Fed) precisa criar uma bolha imobiliária para substituir a bolha da Nasdaq". Desejo atendido.

Porém, tanto os EUA como o mundo não podem passar novamente por tudo isso. Não se pode esperar que o mundo fora dos EUA, que depende do dólar como seu principal veículo de comércio e, portanto, como ativo de reserva, assista passivamente enquanto dólares continuam sendo despejados em seus mercados de câmbio, commodities e ativos, sem um fim claro à vista.

A Alemanha tem criticado a abordagem americana, que põe seu banco central no centro da estratégia de recuperação. Mas a zona do euro está fazendo o mesmo.

Veja a feitiçaria do socorro à Irlanda. A irlandesa Nacional Asset Management Agency (Nama) foi criada em 2009 para fazer uma limpeza nos balanços patrimoniais dos bancos irlandeses. Mas ela faz isso dando "notas promissórias" recém-criadas - e não euros - aos bancos, em troca de créditos de cobrança duvidosa. Os bancos então descarregam as promissórias no Banco Central Europeu, que fornece, então, o dinheiro de verdade.

Uma vez que a Nama troca as promissórias por dívida bancária a apenas metade de seu valor de face, essa operação triangular pode resultar numa perda de capital de €1 para cada euro que os bancos recebem do BCE. Evidentemente, as promissórias agora apresentadas ao BCE têm de ser depreciadas, o que ameaça destruir o balanço patrimonial do próprio BCE.

Qual é a lógica dessa ciranda maluca? Os bancos alemães detêm pelo menos €48 bilhões de dívida bancária irlandesa, os bancos britânicos têm outros €31 bilhões e os bancos franceses mais €19 bilhões. Desde junho de 2008, bancos alemães, britânicos e franceses retiraram o equivalente a €253 bilhões em crédito de bancos irlandeses e de outros tomadores irlandeses de empréstimos - correspondentes a 70% do total dos fundos estrangeiros sacados. As autoridades desses países estão agora tentando proteger seus bancos contra prejuízos, fingindo preocupação de boa vizinhança em relação ao governo irlandês.

Durante décadas, os Estados Unidos e a Europa ditaram ao mundo regras sobre a importância da limpeza de casa depois de uma crise financeira: especialmente no que diz respeito a corrigir ou dar um fim a bancos zumbis. É hora de engolir o nosso próprio remédio e retomar o difícil trabalho de consertar nossos sistemas bancários. Confiar em que os bancos centrais desencalhem os EUA e as economias europeias é uma abdicação de responsabilidade que nos vai custar muito caro no futuro.

Benn Steil é diretor de Economia Internacional no Council on Foreign Relations e coautor de "Money, Markets, and Sovereignty" (Dinheiro, mercados e soberania). Foi vencedor do Hayek Book Prize em 2010. Copyright: Project Syndicate, 2011.

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