Guilherme Fiuza, Revista ÉPOCA
Morreu Itamar Franco, um presidente que fez bem ao Brasil. Fez bem por linhas tortas. Foi o símbolo da volta da dignidade ao poder depois da queda de Collor – de quem era vice e aliado político. PC Farias, centro dos escândalos que levaram ao processo de impeachment, era o tesoureiro da campanha que elegeu Itamar vice-presidente da República. Quando Collor caiu e Itamar assumiu, parecia que os dois nunca tinham se visto na vida – tal a esperança de regeneração depositada nele pelos brasileiros. E Itamar fez um “não governo” excelente, bem melhor que o atual.
A história é uma salada de versões, e a que prevalece pode ser a que foi gritada mais alto. Itamar foi enterrado como o presidente do Plano Real. A homenagem é merecida, por ser verdadeira. Mas a verdade às vezes é tortuosa. Fernando Henrique foi nada menos que o quarto ministro da Fazenda de Itamar. O presidente do Real teve, portanto, três outras chances de realizar “seu” Plano – e não passou nem perto.
A inflação anual de 1992 tinha passado de 1.000% (melhor escrever por extenso, para os mais novos não acharem que foi erro de digitação: mil por cento). Para enfrentar esse monstro, Itamar escalou para a Fazenda Gustavo Krause, depois o substituiu por Paulo Haddad, que também tirou para colocar Eliseu Resende. Três ministros e nenhum resultado contra a inflação. Quando o terceiro caiu, ninguém acreditava mais que o governo Itamar pudesse fazer algo consistente contra a escalada louca dos preços. Nem Fernando Henrique acreditava.
Cada vez mais, o ex-vice de Collor parecia empurrar com a barriga um governo-tampão, apenas arrastando o país até a eleição seguinte. Nesse cenário de quase paralisia, uma voz ajudou Itamar a não perder de todo a liderança política – a voz do ministro das Relações Exteriores. Era Fernando Henrique. Depois da demissão de Eliseu Resende, não tendo mais nenhum coelho para tirar da cartola, Itamar chamou o intelectual tucano que cuidava da diplomacia para comandar a economia. Não fazia muito sentido – mas, àquela altura do desastre, fazer sentido era o de menos.
Fernando Henrique assumiu o Ministério da Fazenda para tentar acalmar a inflação, talvez com alguma medida emergencial. Era preciso evitar o colapso econômico e o perigo de uma crise institucional, que jogasse o país no desgoverno. O quarto ministro da Fazenda de Itamar reuniu as melhores cabeças econômicas que conhecia (a algumas delas, teve de implorar) e pediu a essa pequena equipe um plano de ação imediata.
Tal plano começou com medidas de controle orçamentário, sem truques imediatos contra a inflação – como o confisco da poupança pelo Plano Collor e outras acrobacias dos sucessivos “pacotões”. Sob a regência de Fernando Henrique, o grupo passou a trabalhar em ações estruturais, que acabaram levando à ousadia de uma reforma monetária – gestada em nove meses e implantada em quatro. O Plano Real.
Na véspera da implantação do Plano (quando ia entrar em vigor a moeda de transição para o real, a URV), Fernando Henrique pediu demissão. Influenciado pela ala “trabalhista” do governo, Itamar queria correção para os salários pela inflação anterior e controle de preços – o que, na prática, destruiria o Plano Real. Diante do pedido de demissão de FHC, Itamar recuou, mantendo o Plano e o ministro.
Depois que o real deu certo e mudou a vida dos brasileiros para melhor, Itamar virou oposição a FHC, seu sucessor na Presidência. Tentou atrapalhar a política econômica na crise de 1999, decretando uma moratória como governador de Minas Gerais. Coisas do jogo político.
Mas Itamar Franco é o presidente do Plano Real, porque, em seu governo frágil, teve força para proteger uma grande reforma das inúmeras tentativas de sabotagem. Hoje os sabotadores estão no poder, sem planos. Saudades do não governo de Itamar.
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