João Pereira Coutinho, Folha de SP
1. Mais CEDO ou mais tarde tinha de acontecer: "A Divina Comédia" é um livro racista, homofóbico, anti-islâmico e antissemita, diz um grupo defensor dos direitos humanos que aconselha as Nações Unidas em matérias de discriminação e racismo.
O grupo dá pelo nome de Gherush 92 e não se limita a denunciar os alegados vícios da obra de Dante Alighieri (1265-1321).
Pretende igualmente que o livro seja retirado das escolas e das universidades, para evitar a disseminação dos maus exemplos.
Eis o velho código dos selvagens: o que não entendes, destrói. Porque reduzir a "Divina Comédia", obra sublime de inícios do século 14, a um mero catálogo de preconceitos do século 21 não é apenas um erro grosseiro de anacronismo.
É não entender a natureza de uma obra que, ao apresentar uma gloriosa visão mística sobre os caminhos de salvação da alma humana, retoma e aprofunda o essencial da ortodoxia cristã.
Os Cantos 12-17 podem aterrar-nos, literária e visualmente falando, com a descrição do Sétimo Círculo do Inferno.
Mas Dante não está a dizer nada de particularmente original ao condenar os blasfemos, os sodomitas ou os usurários a castigos. Basta consultar os textos sacros para reconhecer a fonte onde Dante bebeu.
Por outro lado, Dante não se limitou a relembrar aos presentes o essencial da palavra cristã.
Para quem passou parte da existência na defesa da unidade da cristandade (contra os gibelinos, partidários do Sacro Império Romano; e contra o guelfos negros, partidários de Bonifácio 8º), assim se entende o lugar que o poeta reservou no Inferno para os inimigos dessa unidade. Que tanto podiam brotar do interior da igreja -o papa Celestino 5º é um exemplo- como do exterior dela -e Maomé, logicamente, é o candidato ideal ao título de cismático número um.
Tivesse Dante vivido no século 16, e não nos séculos 13 e 14, e seria inevitável encontrar no seu Inferno um tal de Martinho Lutero.
As patrulhas multiculturalistas que condenaram a "Divina Comédia" desconhecem a matéria básica sobre a qual dissertam.
E, com a arrogância própria dos ignorantes, exportam as suas patéticas categorias contemporâneas (Dante é racista, homofóbico, anti-islâmico etc.) para um mundo que apenas interpretam anacrônica e superficialmente.
Essa atitude, que vem embrulhada na capa da "tolerância", é na verdade a marca suprema do fanatismo literalista. Porque só um fanático adere literalmente ao texto sem considerar a dimensão metafórica, cultural e contextual dele.
De resto, pretender que o livro seja retirado de escolas ou universidades não é para levar a sério. Se fosse para levar a sério, não haveria nenhuma razão para que a limpeza ficasse apenas pela "Divina Comédia".
A história da cultura ocidental é um longo cortejo de obras que ofendem sempre a sensibilidade de alguém, algures -hoje ou no futuro.
Fazer depender a sobrevivência dessa cultura dos caprichos transitórios dos homens presentes é a melhor definição de vandalismo que conheço.
2. Na passada semana escrevi neste espaço que o racismo não era uma doença -e que por isso não tinha cura. Alguns leitores não gostaram da colocação pessimista e escreveram de volta com acusações extremas: eu estaria a "desculpar" o racismo; ou, pelo menos, a aceitar a sua inevitabilidade.
Nada mais falso. Admito que racistas sempre haverá. Mas o racismo, longe de ser uma patologia, parece-me um problema essencialmente ético -a atitude de considerar inferior quem se encara como diferente.
Isso é válido para o racismo dos brancos contra os negros; dos negros contra os brancos; ou até dos negros contra os negros -os tribalismos sanguinários de África são um caso óbvio.
Uma tal atitude não se resolve com medicação, ao contrário do que afirmava o estudo citado da universidade de Oxford.
Aliás, se existe tentativa de desculpar o indesculpável, ela está precisamente em quem pretende transformar em doença o que é apenas uma questão de educação moral.
E esse tipo de educação, infelizmente, não se vende na farmácia.
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