segunda-feira, junho 04, 2012

Meu inferno mais íntimo

Luiz Felipe Pondé, Folha de SP

Um jovem rabino, angustiado com o destino da sua alma, conversava com seu mestre, mais velho e mais sábio, em algum lugar do Leste Europeu entre os séculos 18 e 19.

Pergunta o mais jovem: "O senhor não teme que quando morrer será indagado por Deus do porquê de não ter conseguido ser um Moisés ou um Elias? Eu sempre temo esse dia".

O mestre teria respondido algo assim: "Quando eu morrer e estiver na presença de Deus, não temo
que Ele me pergunte pela razão de não ter conseguido ser um Moisés ou um Elias, temo que Ele me pergunte pela razão de eu não ter conseguido ser eu mesmo".

Trata-se de um dos milhares de contos hassídicos, contos esses que compõem a sabedoria do hassidismo, cultura mística judaica que nasce, "oficialmente", com o Rabi Baal Shem Tov, que teria nascido por volta de 1700 na Polônia.

A palavra "hassidismo" é muito próxima do conceito de "Hesed", piedade ou misericórdia, que descreve um dos traços do Altíssimo, Adonai ("Senhor", termo usado para se referir a Deus no judaísmo), o Deus israelita (que, aliás, é o mesmo que "encarnou" em Jesus, para os cristãos).

Hassídicos eram conhecidos como "bêbados de Deus", enlouquecidos pela piedade divina (e pela vodca que bebiam em grandes quantidades para brindar a vida...) que escorre dos céus para aqueles que a veem.

São muitas as angústias de quem acredita haver um encontro com Deus após a morte. Mas ninguém precisa acreditar em Deus ou num encontro como esse para entender a força de uma narrativa como esta: o primeiro encontro, em nossa vida, que pode vir a ser terrível, é consigo mesmo. Claro que se Deus existe, isso assume dimensões abissais.

Para além do fato óbvio de que o conto fala do medo de não estarmos à altura da vontade de Deus, ele também fala do medo de não sermos seres morais e justos, como Moisés e Elias, exemplos de dois grandes "heróis" da Bíblia hebraica. Ser como Moisés e Elias significa termos um parâmetro moral exterior a nós mesmos que serviria como "régua".

A resposta do sábio ancião ao jovem muda o eixo da indagação: Deus não está preocupado se você consegue seguir parâmetros morais exteriores, Deus está preocupado se você consegue ser você mesmo.

Não se trata de pensar em bobagens do tipo "Deus quer que você seja feliz sendo você mesmo" como pensaria o "modo brega autoestima de ser", essa praga contemporânea. Trata-se de dizer que ser você mesmo é muito mais difícil do que seguir padrões exteriores porque nosso "eu" ou nossa "alma" é nosso maior desafio.

Enfrentar-se a si mesmo, reconhecer suas mazelas, suas inseguranças e ainda assim assumir-se é atravessar um inferno de silêncio e solidão. Ninguém pode fazer isso por você, é mais fácil copiar modelos heroicos, por isso o sábio diz que Deus não quer cópias de Moisés e Elias, mas pessoas que O enfrentem cara a cara sendo quem são.

Podemos imaginar Deus perguntando a você se teve coragem de ser você mesmo nos piores momentos em que ser você mesmo seria aterrorizante. Aí está o cerne da "moral da história" neste conto.

Noutro conto, um justo que morre, chegando ao céu, ouve ruídos horrorosos vindo de uma sala fechada. Perguntando a Deus de onde vem aquele som ensurdecedor, Deus diz a ele que vá em frente e abra a porta do lugar de onde vem a gritaria. Pergunta o justo a Deus que lugar seria aquele. Deus responde: "O inferno". Ao abrir a porta, o justo ouve o que aqueles infelizes gritavam: "Eu, eu, eu...".

Ao contrário do que dizia o velho Sartre, o inferno não são os outros, mas sim nós mesmos. Numa época como a nossa, obcecada por essa bobagem chamada autoestima, ocupada em fazer todo mundo se achar lindo e maravilhoso, a tendência do inferno é ficar superlotado, cheio de mentirosos praticantes do "marketing do eu".

Casas, escritórios, academias de ginásticas, igrejas, salas de aula, todos tomados pelo ruído ensurdecedor do inferno que habita cada um de nós. O escritor católico George Bernanos (século 20) dizia que o maior obstáculo à esperança é nossa própria alma. Quem ainda não sabe disso, não sabe de nada.

7 comentários:

  1. Anônimo12:38 PM

    Prezado Pondé
    Na mosca!

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  2. Razumikhin1:35 PM

    Não vejo nenhuma incompatibilidade entre a religião - num nível esclarecido, elevado - e a possibilidade de se enxergar a verdade científica.

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  3. Anônimo7:41 AM

    Até quando mais concordo do que discordo de pondé, não consigo evitar uma certa náusea lendo seus escritos. Não sei se é apenas efeito de lembranças indigestas de outros textos, ou se é a sombra da soberba, que sempre turva um pouco a leitura.

    Faria um reparo: a auto-estima (do meu ponto de vista, claro) não está exatamente em achar-se frivolamente belo e maravilhoso, mas sim em estar seguro com o que se é. Aproxima-se do enfrentar-se a si mesmo, reconhecendo inseguranças, mas sem sucumbir.

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  4. Anônimo11:49 AM

    Quando a autoestima ou a pseudo-autoestima se manifesta como arrogância e presunção - fingidas ou não.

    É insuportável e profundamente antipático quando vemos e ouvimos auto-elogios gratuitos, frívolos e desprovidos de méritos efetivos que os justifiquem.

    Tem sido muito comum que, na esteira do "politicamente correto", negros e membros de outros grupos sociais auto-intitulados discriminados bradaram arrogantemente que se orgulham da raça, do sexo (odeio o termo gramatical gênero usado para definir sexo) e que seriam lindos e maravilhosos. Primeiramente, porque é sempre antipático o auto-elogio; em segundo lugar, porque fica estampado que é pura presunção e necessidade de afirmação. Chega a ser até ridículo, pois se percebe que, no fundo, a pessoa que assim age sabe que é tudo mentira, pois, não raramente, são pessoas complexadas e imbuídas de um profundo sentimento de inferioridade social.

    Afetam autoestima mas são repletos de baixa estima.

    O "politicamente correto" é, antes de tudo, uma mentira.

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  5. Anônimo12:01 PM

    bradem (correção)

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  6. Anônimo2:05 PM

    Anonimo das 11:49

    VOCE ESTA DE PARABÉNS!!!
    bRILHANTE NO ÚRTIMU!

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  7. Achei, há 12 anos atrás, esse papo de auto-conhecimento bastante interessante.

    Desde então passei a me conhecer e fui tomando consciência de minhas invejas, ressentimentos, ódios, enfim, tudo aquilo que nosso ego condena e que nos esforçamos por anos a fio para não sentir sem sequer saber o exato significado desses sentimentos.

    Desbloqueei meus sentimentos e estes se manifestaram mas também li muitos livros de psicanálise para também compreendê-los racionalmente.

    Por exemplo, a inveja aprendi que só passa quando eu vou na loja e compro aquilo que eu sinto inveja ou algo equivalente, mesmo que a inveja seja lá do tempo do onça e até hoje permanece em nós na forma de ressentimento.

    Nossa! Estes últimos 12 anos foram para mim o trabalho de uma vida inteira onde tive que passar a limpo minha infância e adolescência.

    Felizmente minha vida adulta foi coroada de êxito ao menos financeiro e social mas os ressentimentos recalcados não me deixavam ser feliz com meus sucessos no presente.

    Recomendo o auto-conhecimento para muita gente que já está chegando aos 40 ou passando dos 40 anos.

    A coisa é dolorosíssima para nosso ego mas a gente descobre que nunca precisou de muita coisa para ser feliz mas o acúmulo de invejas e ressentimentos recalcados fez-nos esperar da vida grandes compensações que jamais existiram em nossa realidade.

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