João Pereira Coutinho, Folha de SP
Emma (nome fictício) tem 32 anos. Foi estudante de medicina, e os colegas dizem que era uma pessoa inteligente e agradável.
O que os colegas não sabiam é que, desde a adolescência, Emma sofria de distúrbios alimentares graves, que a conduziram a uma anorexia severa.
Agora, aos 32, Emma deixou de se alimentar e expressou seu desejo de morrer. Acabar com o tormento é para ela mais importante do que continuar com uma vida que, aos seus olhos, perdeu o valor.
E os pais de Emma? Os pais concordam. Sim, eles gostariam que a filha tivesse uma vida normal, uma família, uma profissão, que morresse um dia, na velhice, rodeada por netos ou bisnetos.
Mas a realidade é outra: a filha sofre há vários anos. De forma atroz. Respeitar seu desejo de morte é, talvez, o gesto mais caridoso daqueles que a amam.
A história descrita não é invenção minha. Foi levada perante a Justiça inglesa recentemente -e o juiz responsável pelo caso, Peter Jackson, decidiu: Emma será alimentada à força, mesmo que isso signifique imobilização física e sedação.
Hoje, Emma pode olhar para a sua vida e não encontrar qualquer valor ou propósito. Mas um dia, recuperada psicologicamente, a perspectiva de Emma pode ser outra.
Claro que o juiz sabe que, mesmo com alimentação forçada, as hipóteses de sobrevivência de Emma são reduzidas: meses seguidos de quase jejum completo deixaram o seu organismo em estado deplorável.
Mas é preciso não desistir, diz o juiz. Mesmo contra a vontade da própria moça, pois só a morte é irreversível.
Eis a história que tem comovido e dividido a sociedade inglesa. Os argumentos de ambos os lados são conhecidos: há quem aplauda o juiz pela "decisão mais difícil de uma carreira" (palavras do próprio).
E há quem condene a sua sentença abusiva: a autonomia do sujeito, em matéria médica, é soberana. Eu devo poder recusar os tratamentos que bem entender mesmo que isso resulte em minha morte.
Entendo todos os argumentos. Teoricamente, e de acordo com as circunstâncias, sou capaz de simpatizar com ambos. Mas existe um terceiro elemento que paira sobre o caso e que, a meu ver, praticamente o decide.
Esse terceiro elemento somos nós. Nós, testemunhas potenciais da autodestruição de um ser humano. Nós, testemunhas silenciosas dessa autodestruição.
Anos atrás, o ensaísta e psiquiatra Anthony Daniels, nome verdadeiro do autor britânico Theodore Dalrymple, publicou na revista "The New Criterion" texto sobre as implicações éticas das diferentes formas de "morte assistida" ("Do We Own Our Lives?", fevereiro de 2009).
Por diversas vezes já me referi a esse texto aqui. Retorno a ele sem hesitar. É um texto primoroso porque oferece uma comparação primorosa: se alguém decide saltar de uma ponte, o gesto é autônomo, pessoal -e, palavra decisiva, solitário. Nada a fazer, tudo a lamentar.
Mas nenhuma pessoa saltará de uma ponte se eu estiver passando por ela e puder evitar o ato. Nesse momento agônico, a infeliz criatura pode espumar e espernear. Ou, inversamente, pode até dissertar com propriedade e inteligência sobre sua vida miserável, desprovida de rumo ou sentido. Nada disso me convence a largá-la.
Qualquer um pode cometer violência sobre si próprio. Não existe qualquer legitimidade para que a violência de terceiros sobre eles próprios me seja imposta também.
Como conclui Anthony Daniels no ensaio, a vida só nos pertence até certo ponto. Mas ela é também o resultado da teia de afetos, ligações e obrigações que estabelecemos uns com os outros.
Emma, 32 anos, ex-estudante de medicina, podia ter seguido outro caminho. Podia ter procurado uma cabana no fim do mundo para se despedir do seu calvário. Longe dos nossos olhos -e, tristemente, com o conhecimento e a compreensão de seus pais.
A partir do momento em que o seu caso é trazido perante a comunidade, ele deixa de ser apenas um caso pessoal e isolado. Passa a ser também a medida do que somos enquanto civilização.
Se a Justiça inglesa tivesse permitido que um doente psiquiátrico morresse em seus braços, desconfio que seria a sociedade do país a precisar de tratamento intensivo.
Da mesma forma que hoje podemos expressar na Carteira de Identidade se desejamos ou não doar nossos órgãos e tecidos, num futuro próximo faço votos para que possamos também expressar nossa vontade ou não de que a família possa conceder a Eutanásia, caso estejamos ligados a aparelhos, sem a capacidade de nos comunicarmos.
ResponderExcluirSei que este não é bem o assunto da matéria, mas está ligeiramente relacionado. Afinal, diz respeito ao direito de vida ou morte que deveríamos ter sobre nós mesmos e sobre nosso próprio corpo.
"Se a Justiça inglesa tivesse permitido que um doente psiquiátrico morresse em seus braços, desconfio que seria a sociedade do país a precisar de tratamento intensivo. "
ResponderExcluirde acordo Rodrigo?
a decisão não deve ser prerrogativa do indivíduo, para um liberal?
Anonymous de 5:25 PM, não sabes ler?
ResponderExcluirEste último trecho diz, de forma indireta, que a Justiça inglesa nem deveria ter se metido na questão! Simplesmente!
Sabichão, sei ler e , lendo, entender pelo menos coisas fáceis como a acima! Já q vc é quem nao entendeu, releia os 3 ultimos paragrafos, está bem didático. Nao há q se falar em Justiça se metendo, esta foi procurada. O q pergunto aqui nesse blog liberal ( e nao foi procê, q nao entendeu), é se , ciente dos fatos, a sociedade deve nos proteger de nossas escolhas.
ResponderExcluirA coisa é mais complexa. Não se trata d caso de um doente terminal mas de alguém que pode ser salvo. Muitos potenciais suicidas mudam e deixam de pensar em suicídio. Até riem da época em que não viam solução para seus problemas. Além disso, não tentar impedir alguém de morrer, se este alguém já está ferido, é crime de omissão de socorro. Mais ainda: se o doente recuperável está aos cuidados do Estado, este tem o dever de assiti-lo médica e psicologicamente.
ResponderExcluirNão esqueçam de que a pessoa psicologicamente debilitada, quase sempre, depois de passada a crise, fica agradecida a quem a impedira de se suicidar.
E se o indivíduo quiser mesmo se suicidar, que o faça sozinho, isolado e em plena consciência.
ResponderExcluirQuem não sabe ler é esse anônimo das 7:12
ResponderExcluirSe a justiça permitisse que UM DOENTE PSIQUIÁTRICO morresse em seus braços'...ou seja, se a justiça deixasse a maluca se matar...
'seria a sociedade do país a precisar de tratamento intensivo.'
...ou seja, seria uma justiça maluca, parte de um povo maluco
Qualquer sistema, filosofia, ideologia, que vc segue cegamente acaba encontrando algum ponto absurdo.
ResponderExcluirEsse é o caso aqui, essa moça é claramente doente, o pessoal que segue o PNA como se ele fosse um dogma religioso na verdade está fazendo um mal deixando ela se matar.
É como em nome da liberdade deixar um bebê enfiar o dedo na tomada.
obs:não sou estatista, adoraria um governo mínimo, só não gosto de fanatismo
A perda do bom senso num liberal é um desserviço à causa da liberdade. Basta de radicalismos sectários e imaturos.
ResponderExcluir"Qualquer um pode cometer violência sobre si próprio. Não existe qualquer legitimidade para que a violência de terceiros sobre eles próprios me seja imposta também."
ResponderExcluir"Se a Justiça inglesa tivesse permitido que um doente psiquiátrico morresse ..."
no 1o. parágrafo acima, bem como em toda a citação do ensaísta e psiquiatra britânico não foi mencionado "nos casos de doentes mentais/psiquiátricos" (apesar do cara ser psiquiatra!!!). Apenas no final nosso colunista aparentemente restringe a sentença aos loucos.
Daí minha dúvida: os "loucos", devemos salvar, os "sãos", não?
Se quero me matar (longe disso), sou automaticamente um louco? Não sendo, tenho de fazer isso escondido? Nada de pedir assistência especializada? OK
Existe uma outra atividade humana na qual forçamos uma pessoa a sofrer de forma que ela não quer em nome de algum outro bem maior, o nome dessa atividade é TORTURA.
ResponderExcluirA moça deveria poder escolher morrer ao lado de seus pais se desejasse, porém se o fizesse, ambos seriam acusados de cumplicidade, ou seja em nome de uma sociedade que tem medo de ser julgada como isso ou aquilo, manteremos essa garota sendo torturada até que morra em imensa agonia ou decida se recuperar, ou fingir se recuperar para poder sair da tortura.
O erro dela foi sim consultar a sociedade, pois a sociedade que não está sofrendo, irá se limitar a decidir o que é melhor para si mesma e não para a garota, a sociedade irá se limitar e fazer a ação que a deixe com a melhor imagem, afinal, a imagem da sociedade é mais importante que o sofrimento e a dignidade humana.
Já li vários textos seus Rodrigo, já vi vários de seus videos, sempre o admirei, porém esse texto é digno somente do meu mais profundo nojo e desprezo, algo digno de alguém e de uma sociedade que nunca sofreu realmente e que em seu egoismo acredita ter o direito de torturar alguém meramente para se sentir "boa" e "sã".
e se eu fumar um cigarro mentolado em público? o estado tem o direito de impedir essa violência a mim inflingida? e se eu comer uma bela e gordurosa bisteca suína, é plausível que me salvem disso?
ResponderExcluir'A moça deveria poder escolher morrer ao lado de seus pais se desejasse'
ResponderExcluirAssim é muito fácil, começar logo desse ponto e ignorar todo o desequilíbrio mental que fez ela 'querer' isso
'e se eu fumar um cigarro mentolado em público?'
ResponderExcluirAlguns libertários estão com essa mania sem sentido, pegam um exemplo que não tem nada a ver (mas que é conveniente pra chegar onde eles já querem chegar), tiram uma conclusão e querem que essa conclusão se aplique a tudo.
'a sociedade irá se limitar e fazer a ação que a deixe com a melhor imagem, afinal, a imagem da sociedade é mais importante que o sofrimento... '
ResponderExcluirEsse comentário parece mais com propaganda do que com um pensamento frio e racional.
Doenças mentais não são novidade na ciência e na psiquiatria, admitir isso não é 'se preocupar com a melhor imagem', os próprios doentes e ex suicidas são os primeiros a admitir que não estavam no juízo perfeito e agradecem a quem impediu eles de se matar
então vamos as conclusões:
ResponderExcluir-> se eu não for diagnosticado louco, posso me matar sem me esconder para isso (se necessário posso me valer até de assistência especializada, como a moça e sua família pretendiam). Analogamente, tbém posso me matar de forma lenta (fumando um cigarro mentolado, por ex).
Essa é a liberdade aqui defendida, certo?
obs: não estou criticando ou defendendo isso, apenas tentando entender a lógica da coisa.