Flávio Roberto Bezerra Ferreira, advogado
Certo dia estava com a
minha filha ainda pequena, caminhando pelo centro de São Paulo, quando a
atenção dela foi fisgada por um aglomerado de pessoas. Ela me puxou pelo braço e nos
aproximamos do grupo. Percebi que os transeuntes estavam diante de um ator
performático, que, maquiado e devidamente fantasiado, permanecia absolutamente
imóvel, como uma estátua representativa de divindade grega. A apresentação era
tão convincente que minha filha perguntou o seguinte: “Pai, porque todos estão parados olhando essa estátua”? Nesse
momento o artista fez um movimento brusco e assumiu outra posição, deixando a
minha filha bem assustada. Eu a acalmei, explicando que ela não estava diante
de uma estátua que se movia, mas sim, de um ator fazendo uma representação
teatral de rua. Muito tempo passou desde então, até que recentemente esse fato aflorou
de minha memória.
Estava lendo uma matéria a
respeito da nova legislação que destina cotas nas universidades federais para estudantes
que tiverem cursado todo o ensino médio em escolas públicas. No anúncio, o
governo justifica a medida como necessária, e, até mesmo indispensável, pois
nos vestibulares - devido a educação de
baixa qualidade nos níveis fundamental e médio - os alunos provenientes de
escolas públicas não estavam tendo condições de competir em pé de igualdade com
aqueles egressos de escolas particulares, o que os afastava do ensino superior
gratuito. A adoção do sistema de cotas seria, portanto, uma forma de praticar justiça
social, além, é claro, de garantir melhor inclusão social. Muito se discutiu a
respeito desse assunto, com acaloradas opiniões favoráveis e contrárias.
Particularmente considero que não é a melhor forma de resolver o problema e,
inclusive, nem será eficaz. Na realidade, sou de opinião que existe uma
distorção na análise da questão, tendo em vista que o problema não é a
dificuldade de acesso ao ensino superior para os alunos que cursaram o ensino
médio em escolas públicas. Essa é uma mera consequência. O verdadeiro problema
é a deficiência no ensino público básico, este sim, grande nódoa social, e que
deve ser devidamente tratada. Ademais, não podemos esquecer que, como quase
tudo na vida, o conhecimento segue etapas que não podem e nem devem ser
suprimidas. Você precisa aprender bem as operações fundamentais da matemática (adição, soma, multiplicação e divisão)
antes de estudar frações e álgebra, que por sua vez darão elementos para
estudar equações, até que tenha condições de aprender complexos cálculos,
indispensáveis para exercício de inúmeras profissões de nível superior. Você
aprende as regras gramaticais e a escrita, sem isso, será impossível se
comunicar de maneira satisfatória, bem como será difícil uma adequada leitura e
interpretação de textos, tornando inviável o desempenho satisfatório em
qualquer disciplina. Ora, o sistema de cotas quebra essa regra fundamental,
nivelando de maneira artificial o acesso ao ensino superior, para pessoas com
nível de conhecimento insuficiente para ingresso de maneira natural. Entretanto,
esse acesso facilitado, não garante que os cotistas consigam um desempenho
satisfatório nos cursos universitários. Segundo dados da ONG Todos Pela
Educação, em 2009 o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) indicou que nenhuma
das séries avaliadas (5º e 9º ano do
Ensino Fundamental e 3º ano do Ensino Médio) possuía 35% dos alunos com
aprendizado adequado, seja em língua portuguesa, seja em matemática. Em outras
palavras, mais de 65% dos alunos não estavam plenamente habilitados em
português e matemática, e teriam dificuldade para ler e interpretar textos mais
longos, bem como para executar cálculos matemáticos mais complexos. Nessas
condições, como serão formados, por exemplo, os nossos futuros médicos e
engenheiros? O nosso grande avanço social se dará quando o governo corrigir o
descompasso do ensino público. Essa sim, uma solução definitiva, justa e
igualitária, uma vez que vai garantir que a totalidade dos alunos das escolas
públicas, concorram ombro a ombro com os das escolas particulares, sem discriminação
alguma, e em todos os campos, e não apenas no quesito universitário. Nessa
hipótese estaremos realmente caminhando para atingir a verdadeira Justiça e
Inclusão Social.
Infelizmente temo que essas
políticas do governo, usem questões sociais apenas para encobrir e/ou
justificar o aparelhamento estatal. Quem sabe o sistema de cotas tenha sido mera
justificativa para a criação de uma espécie de secretaria vinculada ao
Ministério da Educação, o que implicaria na necessidade de indicar um
secretário e todo o pessoal de apoio, bem como dotar um orçamento especial para
o programa. Fico preocupado, pois nessa hipótese, os cargos seriam “loteados” entre a base de apoio do
governo e os partidos aliados, e a verba seria distribuída entre as
universidades segundo critérios obscuros de alinhamento dos reitores com o
poder central. Seria lamentável. Verdadeira inversão de valores, uma vez que os
justos anseios do povo brasileiro seriam mero escudo para a adoção de políticas
partidárias mesquinhas, quando o correto seria uma política dedicada aos
interesses da população.
Aliás, o aparelhamento do
Estado através da distribuição de cargos parece que é a tônica na administração
pública. O caso do ex-deputado federal José Genoíno é paradigmático. Ele exerceu
o último mandato político entre 2007 e 2010. Depois quase não se ouviu falar
dele. Entretanto, por ocasião do julgamento e condenação na Ação Penal 470 (Mensalão), o Brasil tomou conhecimento
que ele, sem mandato no legislativo federal, não estava desamparado pelo poder
central, uma vez que exercia a função de “Assessor
Especial da Defesa”, cargo de confiança e, portanto, de indicação política,
vinculado ao Ministério da Defesa. Não se sabe bem a necessidade que o país tem
no momento de possuir um “Assessor Especial
da Defesa”, afinal não estamos sob ameaça territorial de nenhuma outra
nação e/ou qualquer outro risco que justifique tal aparato especial. Também não
são conhecidas as qualificações exigidas do ocupante do referido cargo e nem se
o indicado as possuía. Parece que nada disso importa. O que interessa é encontrar
- e, se necessário, criar - bons e
prestigiosos cargos públicos para todos os amigos do poder. Por outro lado, na cidade de São Paulo,
o prefeito eleito, ainda não empossado, já estabeleceu a criação de uma
secretaria nova para promoção da igualdade racial. Ele vai entregar a pasta para
um vereador da base que deu apoio durante a campanha política. Não há como
negar a importância de ações visando uma melhor inclusão social de parcela da
população, entretanto, algumas questões ficam em aberto: Será que atualmente já
não existe uma secretaria municipal funcionando, com capacidade de executar os projetos
de promoção de igualdade racial propostos pelo novo prefeito? O município de
São Paulo está financeiramente preparado para suportar a criação dessa nova secretária
sem comprometer o orçamento de outras secretarias, e sem afetar a qualidade de
serviços atualmente ofertados pela prefeitura? O indicado tem capacidade
administrativa para gerenciar a
nova secretaria? Nada disso está claro, porém, confirma que a rotina do “você me ajuda na eleição e eu vou retribuir
com cargos e verbas”, vigora em todas as esferas do poder político. Esse
tipo de “política”, que privilegia
basicamente o grupo governante e seus apoiadores, nos faz lembrar a definição
de “Elite”, conforme exposta no
Dicionário Michaelis: “Elite: sf. Palavra
adotada em quase todas as línguas modernas, para significar o escol da
sociedade, de um grupo, de uma classe; escol, nata”. O Brasil tem justo
anseio por um governo do povo, pelo povo e para o povo, porém, o aparelhamento
estatal indica justamente o contrário, ou seja, que o nosso governo é uma verdadeira
elite, que antes de qualquer interesse público, prioriza em primeiro lugar os
interesses particulares dos seus membros e apaniguados.
Por outro lado, é inegável
que a elite que governa o país usa o patrimonialismo como forma de garantir a
união do grupo e a manutenção do “status
quo” da hierarquia de poder. Caso fosse feita uma auditoria em empresas
públicas como a Petrobras, em agências reguladoras como a ANAC, ANATEL, ANEEL,
ANS ou em órgãos do aparato estatal, como IBAMA, FUNAI e fundos de pensão
estatais (Petrobras, Banco do Brasil e
Caixa Econômica Federal) que possuem patrimônios bilionários, o que o povo
brasileiro encontraria? Quantos cargos de indicação política, assessorias,
consultorias, bem como outras formas de exercer tráfico de influência seriam detectados?
E com relação ao uso da máquina pública em benefício pessoal dos membros da
elite governante? Esse aparelhamento estatal é benéfico para a Nação Brasileira
ou serve apenas aos interesses da elite que ocupa o poder? No caso de instituição
de fomento, como por exemplo, o BNDES, o mesmo tem uma política transparente
para concessão de empréstimos, ou é seletiva, privilegiando determinados grupos
e/ou pessoas ligadas ao aparato estatal com uma espécie de “carta branca” de acesso ao cofre?
Além do patrimonialismo, a
elite que nos governa também deixa claro um viés anti-republicano e
antidemocrático. De fato, um dos pilares de uma república democrática é o da
tripartição de poderes, que devem ser totalmente independentes e autônomos.
Ora, quando o loteamento de cargos, indicações políticas, liberações de verbas
e tantas outras manobras são utilizadas como forma de cooptar o apoio
parlamentar, garantindo no congresso uma base aliada dócil e solícita aos
interesses do executivo, você golpeia a estrutura republicana do país, e, é
claro, a democracia nacional. Com um legislativo submisso, faltaria apenas e
tão somente vencer a resistência do Poder Judiciário, para assumir totalmente e
sem freios o completo domínio do Estado. O processo de controle do Judiciário poderia
começar, por exemplo, através de asfixia econômica, gerando desestímulo e perda
do quadro de pessoal, dificultando a prestação jurisdicional, o que “justificaria” a aplicação de medidas
saneadoras, e, é claro, de caráter controlador pelo Executivo e Legislativo.
Além disso, quando decisões judiciais afrontarem os interesses da elite
governante, a base partidária poderia ser açulada em protestos contra o
Judiciário, de maneira a exigir decisões em “sintonia”
com o poder central.
É verdade que essas mazelas
acompanham a nossa república deste sempre. O grande Rui Barbosa, que teve
inegável papel na proclamação da república, ao final de sua brilhante carreira
política demonstrou grande tristeza com o governo de sua época. Em memorável
discurso proferido na tribuna no Senado declarou: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra,
de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas
mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter
vergonha de ser honesto. Essa foi a obra da República nos últimos anos. No outro
regime, o homem que tinha certa nódoa em sua vida era um homem perdido para
todo o sempre - as carreiras políticas lhe estavam fechadas. Havia uma
sentinela vigilante, de cuja severidade todos se temiam, e que, acesa no alto
guardava as redondezas como um farol que se apaga, em proveito da honra, da
justiça e da moralidade”.
Entretanto, não é porque
essa política espúria se arrasta desde o início de nossa República, que devemos
continuar omissos. Na verdade, acho que é hora de uma completa mudança de paradigma
na forma governar. Será que no momento não existe nenhum homem público capaz de
empunhar e elevar a bandeira da moralidade, contra essas políticas
governamentais iníquas, atentatórias aos nossos princípios republicanos e
democráticos? E o nosso Judiciário não vai clamar em defesa do respeito a nossa
Constituição Federal e da nação brasileira? Onde estão o Ministério Público e a
OAB, que tanto lutam em prol das instituições do país, e em especial, na defesa
dos direitos e garantias individuais do povo brasileiro? Vão assistir silentes
ao apagar das luzes de nossa república? Que falta nos faz um grande Rui Barbosa,
bradando veementemente contra os desmandos daqueles que usam o poder político
quase que exclusivamente em benefício próprio!
Não há como negar que, tal
qual o artista performático de rua, a grande sacada dos nossos governantes é o
uso de uma excelente fantasia simulando um governo voltando para o povo, de
maneira a encobrir a sua verdadeira natureza elitista, patrimonialista,
anti-republicana e antidemocrática, porém, ao contrário do ator que ao final do
dia retira os trajes e a maquiagem mostrando para todos a sua verdadeira face,
a nossa elite não quer largar a sua fantasia de governo.
Muito bom o texto. Só devo lembrar que blindar o estado de interesses de lobistas e de interesses eleitoreiros curto prazistas não é algo fácil. Por isto, não sou otimista quanto ao Brasil e ao mundo.... Até os EUA que tem uma tradição mais meritocrática estão regredindo e logo logo, vão começar com "cotas", burocracia "proibitiva", etc.
ResponderExcluirAqui no Brasil, temos uma burocracia tão grande, que nem a Sony, que tem capacidade para fazer "guerras de patentes", conseguiu instalar uma única unidade unidade de fabricação do PS3 no Brasil.