Idéias de um livre pensador sem medo da polêmica ou da patrulha dos "politicamente corretos".
terça-feira, fevereiro 27, 2007
O Prego do Olavo
Rodrigo Constantino
"If the only tool you have is a hammer, you tend to see every problem as a nail." (Abraham Maslow)
Após minha "cruzada" contra o fanatismo religioso, o "filósofo" Olavo de Carvalho adotou uma postura totalmente lamentável, preferindo me atacar de tudo que é jeito, inclusive os mais pérfidos e desonestos. Não ligo. A sua completa falta de caráter, que ficou clara durante os "debates", me convenceu finalmente da sua total insignificância. Mas creio que ainda é útil citar seu nome para uma análise sintomática do que pode ocorrer quando a fé religiosa fala mais alto que a racionalidade. Não faria isso caso achasse que a confusão que fazem entre esses conservadores religiosos e os verdadeiros liberais não faz mal para a causa liberal. Faz, e muito.
Antes, é preciso lembrar que Olavo, um grande ícone desse conservadorismo fanático, já foi um comunista fanático. Ou seja, trocou de deus, mas não de fanatismo, tampouco de modus operandi. Para aquele que possui apenas um martelo, tudo lhe parece um prego, como afirma a epígrafe acima. E Olavo enxerga seu prego, o comunismo, em tudo. James Forrestal, que foi Secretário de Defesa dos Estados Unidos durante a Guerra Fria e um ferrenho anti-comunista, acabou tendo um colapso nervoso e foi internado num hospital. Como tudo indica, cometeu suicídio depois, pulando da janela. Dizem que ele via comunista em todo lugar, e sentia-se constantemente perseguido. De fato, o comunismo era – e ainda é – um perigo real. Não acho que devemos dar como certa a morte dessa ideologia monstro que carrega tantos cadáveres nas costas. Muitos ainda defendem tamanha barbárie. Mas lembro do caso para reforçar a tese de que paranóicos costumam olhar para qualquer lugar e ver apenas a mesma coisa. Lado a lado com a paranóia estão as teorias de conspiração, justamente porque oferecem ao paranóico uma "explicação" simplista de um mundo complexo, e ele pode assim ver seu fantasma como causa de tudo ruim que ocorre no mundo. Até eu, um ferrenho crítico do socialismo, fui acusado de esquerdista na comunidade de Olavo, apenas por ser ateu. Olavo adora uma teoria conspiratória, e tanto absurdo acaba ofuscando o que tem de decente no meio.
Bill Clinton, que tem um viés mais esquerdista para o padrão americano, mas seria tachado de liberal pelo critério brasileiro, já foi acusado de ser uma espécie de agente comunista infiltrado nos Estados Unidos para ajudar o governo chinês. As "evidências" apresentadas não poderiam ser mais fracas. O que será que Olavo tem a dizer do conservador Bush, que agora propõe um acordo com a Coréia do Norte ainda mais vantajoso que o proposto por Clinton? Seria agora o tão comum pragmatismo político? Ou será que Bush também "avermelhou" e está sendo financiado pelo PCC? Fico imaginando o que Olavo e sua turma estariam falando se fosse Bill Clinton a oferecer tal acordo. Conspiração é assim: qualquer coisa, por mais boba que seja, é quase uma prova irrefutável de que os fantasmas estão arquitetando um golpe mundial.
Mas esta longa introdução foi apenas para chegar ao ponto que segue. No meio de um desses "debates" com Olavo, na comunidade do Orkut que leva seu nome, ele pediu que eu apontasse ateus mais bondosos que santos. Meu exemplo foi Bill Gates, um ateu que fez um bem enorme para a humanidade, principalmente enquanto acumulava sua fortuna, já que ela foi fruto de trocas voluntárias que geraram muita riqueza para seus consumidores. Eu afirmei que Bill Gates fez mais pelo mundo do que todos os membros da comunidade rezando juntos para deus. Não custa lembrar ainda de suas bilionárias doações, ou o fato dele ser o maior financiador das pesquisas pela cura da malária. Mas eis a resposta que Olavo de Carvalho me deu:
"Para variar, você está errado. Tudo o que Bill Gates fez foi encher o cu de dinheiro usando as técnicas inventadas por Tim Berners-Lee, um católico que as criou com a intenção explícita de dar à humanidade um meio de resistir aos dominadores globalistas ateus. Quanto aos atos de suposta benemerência de Bill Gates, são praticamente todos em favor da ONU e sua rede de ONGs -- é o globalismo ajudando o globalismo. O lobo ajudando o lobo."
Creio que sequer seja necessário comentar uma coisa dessas. Mas farei mesmo assim. Em primeiro lugar, Tim Berners-Lee não era católico. Vejamos o que ele mesmo diz: "I had a religious upbringing which I rejected as a teenager: in my case it was a protestant Christian (Church of England) upbringing. I rejected it just after being "confirmed" and told how essential it was to believe in all kinds of unbelievable things". Ele retornou à religiosidade após ter filhos, mas para algo chamado Unitarian Universalists. Eis o que o próprio diz sobre sua nova religião: "Unitarian Universalists are people who are concerned about all the things which your favorite religion is concerned about, but allow or even require their belief to be compatible with reason. They are hugely tolerant and decidedly liberal". Muitos membros dessa "religião" se consideram humanistas, agnósticos ou mesmo ateus. Não obstante, nada consta sobre Lee ter criado a World Wide Web com o intuito de dar à humanidade um meio de resistir aos "dominadores globalistas ateus". Não sei se Olavo apenas chuta tudo para alimentar sua paranóia ou usa de má-fé.
E o ponto mais importante deste artigo, que considero crucial para distinguir conservadores de liberais, é quando Olavo deixa transparecer seu viés anti-capitalista, usando inclusive uma expressão totalmente chula para o acúmulo de riqueza de Bill Gates. Ora, um liberal sabe desde Adam Smith que a busca dos interesses particulares faz o bem comum através da "mão invisível". Os conservadores, imbuídos do preconceito cristão contra a riqueza, acabam condenando este "egoísmo" benéfico. Não é por acaso que tantos usam a mesma fonte, o "livro sagrado", para defender o socialismo. Também não é por acaso que a CNBB está infestada de esquerdistas, para não falar da Teologia da Libertação. Crentes não gostam muito do lucro e da riqueza. Acham que um frei que distribui pílulas de papel fez mais pelos homens que um empresário rico que oferece um produto inovador, gerando milhões de empregos e criando riqueza. Colocam a fé acima dos resultados concretos, ignorando que as intenções nunca são totalmente reveladas, enquanto as conseqüências das ações são bem concretas. Assim, Bill Gates merece um tom de repúdio por ter criado a Microsoft e ficado rico, sendo que suas doações ainda são condenadas por ser parte de uma conspiração para ajudar o "globalismo ateu". Bill Gates é um lobo, e Frei Galvão é um santo!
Acho que fica claro a incompatibilidade entre conservadores e liberais. Mas para quem ainda não está convencido, creio que essa outra pérola olaviana sobre Karl Popper, o defensor da Grande Sociedade Aberta, pode ajudar:
"Fora do estrito domínio da metodologia, onde sua contribuição é apenas razoável, Popper é um amador."
Pois é: Popper é um amador; Bill Gates é um lobo do movimento globalista ateu; Ayn Rand é uma burra sendo que Olavo mal conhece sua obra e não aponta a burrice; e não podemos esquecer de Newton, que teria espalhado o vírus da burrice pelo Ocidente, segundo Olavo. A esquerda deita e rola com tudo isso – e muito mais, usando alguém como Olavo para manchar a imagem de toda a direita, levando por tabela os liberais. Sei que nem todos os conservadores são como Olavo. Mas que fique bem claro aqui: liberais não são conservadores!
domingo, fevereiro 25, 2007
A Pílula Milagrosa
Rodrigo Constantino
“Duas mãos trabalhando fazem mais que milhares rezando.” (Anônimo)
Está para ser canonizado pelo Papa Bento XVI Frei Galvão, que será o primeiro santo brasileiro. De acordo com relatos da época em que viveu, de 1739 a 1822, o frade franciscano encontrou um rapaz gritando de dor causada por um cálculo renal. Frei Galvão teria escrito num pedaço de papel uma oração, inspirado por Nossa Senhora, e teria enrolado esse papel na forma de um pequeno canudo, dado ao enfermo, que deveria então engolir em três pedaços o papel. O homem teria expelido a pedra e sarado. Um milagre! Será mesmo?
Chama-se milagre aquilo que a ciência ainda não conseguiu explicar. Curas sem óbvia explicação aparente, atribuídas a alguma divindade. Mas creio que devemos aplicar um pouco de Karl Popper nisso, buscando a refutação do suposto milagre em vez de sua confirmação. Não custa lembrar que a epilepsia, hoje perfeitamente compreendida pela ciência, já foi vista como intervenção divina no corpo nos tempos de Alexandre O Grande e Júlio César. Será que nossa atual ignorância é motivo suficiente para atribuir uma cura desconhecida a algum milagre divino?
Ainda hoje são produzidas pelo Mosteiro da Luz e distribuídas aos fiéis milhares de pílulas com a oração escrita pelo religioso. Tanto a revista Veja como Época trazem, como matéria de capa, o assunto, colocando em evidência alguns casos extraordinários que são creditados ao milagre das pílulas. Um filho que nasceu depois de uma gestação difícil ou a cura de um caso de hepatite. Mas Popper iria perguntar quantos casos fracassaram com o consumo da pílula, ou quantos outros casos tiveram curas ainda inexplicáveis sem pílula alguma. Eis a postura de quem realmente busca a verdade. Não vale afirmar que os casos de fracasso, infinitamente maiores que os de sucesso, ocorreram por falta de fé verdadeira dos pacientes. Ou que os demais casos raros de cura sem explicação também são obras divinas, mesmo que em doentes ateus. Assim estaríamos diante de uma tautologia, onde o crente está sempre certo, pois não é possível refutar seu próprio conceito de milagre divino.
Sei que esta postura cética costuma incomodar muitos que precisam acreditar no milagre. Mas aceito o fardo de chato por considerar que a postura contrária, de crer automaticamente no milagre, gera efeitos negativos à sociedade. O principal deles, a meu ver, é a passividade. Stephen Covey coloca isso de forma direta quando afirma que “pegar força emprestada de fora constrói fraqueza, porque isso alimenta dependência em fatores externos para fazer as coisas acontecerem”. Em outras palavras, quando alguém realmente acredita que um pedaço de papel e uma reza são tratamentos mais eficazes que aqueles da medicina convencional, pode-se deixar de buscar o método que realmente oferece maior probabilidade de cura. Não é preciso ficar apenas no campo da medicina, ainda que este seja um dos mais relevantes de todos.
Podemos verificar a passividade que a fé de que o Santo Expedito irá realmente resolver as causas urgentes pode gerar nos fiéis. Se um santo vai resolver meus problemas, posso ficar mais acomodado e batalhar com menos afinco para resolvê-los por conta própria. Ou então a crença de que o Santo Antônio irá de fato arranjar um companheiro para a noiva em potencial, que fica na esperança de que um príncipe encantado irá bater à sua porta. Não é por acaso que os principais clientes de tais superstições são pessoas desesperadas, apelando para qualquer coisa que possa aliviar o sofrimento. Ocorre que normalmente o término do sofrimento depende da própria pessoa, não de santos.
Se alguém vira santo porque realizou algumas curas que a ciência ainda não pode explicar, o que deveriam virar aqueles que realizam milhares de curas explicáveis pela ciência? Os testes de novos remédios costumam contar com um percentual de placebos, dados a uma parte das cobaias. De tempos em tempos, alguns dos que tomaram o placebo demonstram uma cura similar aos que tomaram o remédio verdadeiro. Mas para o remédio ser aceito, é preciso que seu poder de cura seja real, com elevado grau probabilístico. Afinal, se não fosse esse o caso, bastaria dar açúcar para todos e esperar os “milagres” aparecerem. Não é assim que se faz ciência, por sorte dos consumidores enfermos.
Compare-se o milagre de uma ou outra cura aleatória que a ciência ainda não explica com a cura quase certa daqueles que tomam um remédio testado por laboratórios. Qual é o mais importante? Não é um milagre que qualquer um possa comprar por poucos centavos uma Neosaldina e com quase certeza acabar com uma irritante dor de cabeça? Não é um verdadeiro milagre que a Pfizer, em busca do lucro, tenha colocado à disposição de milhões de pessoas uma pílula azul que elimina o problema da impotência? Santa Pfizer! Enfim, o verdadeiro milagre não é o fato de que vários laboratórios, em busca do lucro, acabem ofertando tantos remédios no mercado, possibilitando maior conforto e qualidade de vida para tanta gente?
Mas parece que as pessoas atribuem maior valor às intenções que aos resultados. Agnes Gonxha Bojaxhiu, mais conhecida como Madre Teresa de Calcutá, é citada por muitos como exemplo de dedicação altruísta. Mas será que podemos comparar os resultados concretos que suas ações geraram com aquilo que o ateu individualista Bill Gates fez pela humanidade, gerando milhões de empregos mundo afora, que possibilita uma vida mais digna para essas pessoas? Isso sem falar dos seus bilhões gastos em filantropia, como os investimentos para a cura da malária. Quem merece mais o título de santo? Não dizem que no inferno pululam as boas intenções? Por que então devemos valorizar mais um suposto altruísta que pouco faz pelo mundo em vez de um egoísta que gera resultados fantásticos para a humanidade? Tenho um pouco de dificuldade para entender esta lógica, que coloca supostas intenções, sempre incertas e desconhecidas, acima de resultados concretos e objetivos.
Tudo bem, o Brasil terá seu primeiro santo. Mas que os brasileiros entendam que a pílula milagrosa mesmo não é aquela de papel e oração, mas sim aquela que o laboratório oferece, após rigorosos testes, para curar de fato os enfermos.
O Ente Abstrato
Rodrigo Constantino
“O Estado é a grande ficção através da qual TODO MUNDO se esforça para viver às custas de TODO MUNDO.” (Frédéric Bastiat)
Considero um dos maiores defensores que a liberdade já teve o francês Frédéric Bastiat. Sua curta vida não o impediu de deixar uma obra fantástica sobre o Liberalismo, especialmente pela sua incrível objetividade de argumentação. Bastiat derrubou muitos sofismas econômicos, e defendeu a separação entre Estado e economia. Este artigo tem como objetivo resumir sua visão básica sobre o Estado.
Para Bastiat, o Estado é tratado como um personagem misterioso, extremamente solicitado e invocado para a solução dos males que assolam as pessoas. Acabar com a miséria, gerar empregos, garantir a segurança, proteger indústrias, fomentar o crédito, educar os jovens, socorrer os idosos, incentivar as artes, enfim, para praticamente tudo que há demanda, o Estado surge como uma panacéia, capaz de resolver todos os problemas. As ações benévolas do Estado representam aquilo que se vê, enquanto os custos muitas vezes representam aquilo que não se vê. Para quem não entende corretamente a ligação entre causa e efeito, ainda mais ao longo do tempo, nada mais natural que exigir do Estado sempre mais e mais, ignorando as nefastas conseqüências disso.
O homem repudia o sofrimento e a dor. Contudo, é condenado pela natureza ao sofrimento da privação, se não partir para o trabalho. Mas muitos preferem tentar descobrir uma forma de se aproveitar do trabalho de outrem. Daí surge a escravidão, a espoliação, as fraudes. Com o desaparecimento da escravidão, não desaparece a infeliz “inclinação primitiva” que trazem em si os homens para lançar sobre outros o sacrifício necessário para a satisfação e o prazer próprios. Bastiat afirma: “Existem ainda o tirano e a vítima, mas, entre eles, se coloca um intermediário que é o Estado, ou seja, a própria lei”. E para Bastiat, essa espoliação legal é ainda mais imoral que a escravidão, que pelo menos era mais direta e clara.
Assim, todos acabam se dirigindo ao Estado, alegando que entre o trabalho e os prazeres não está havendo uma proporção satisfatória. Para restabelecer o equilíbrio desejado, pretendem avançar um pouco nos bens de outra pessoa. O Estado será o veículo usado, o intermediário. O objetivo é alcançado com tranqüilidade de consciência, já que a própria lei terá agido por eles, que terão as vantagens da espoliação sem os riscos de tê-la praticado, ou sem o ódio que ela gera nas vítimas. Brincam que a diferença entre um político e um ladrão é que, o primeiro, nós escolhemos, enquanto o segundo nos escolhe. As brincadeiras têm um fundo de verdade.
Essa “personificação” do Estado tem sido no passado e será no futuro uma fonte fecunda de calamidades e de revoluções. O povo está de um lado, o Estado do outro, como se fossem dois seres distintos. O Estado tem duas mãos: uma para receber, outra para dar. Conforme Bastiat, a mão rude e a mão delicada. A ação da segunda subordina-se necessariamente à da primeira. Como dizia Roberto Campos, “o bem que o Estado pode fazer é limitado; o mal, infinito”. Afinal, “o que ele nos pode dar é sempre menos do que nos pode tirar”. Isso se explica, segundo Bastiat, “pela natureza porosa e absorvente de suas mãos, que retêm sempre uma parte e às vezes a totalidade daquilo que tocam”. O que é realmente impossível é o Estado devolver ao povo mais do que ele tomou, como se pudesse criar riqueza do nada.
Dessa forma, coexistem no povo duas esperanças e no governo duas promessas: muitos benefícios e nenhum imposto. Por serem esperanças e promessas contraditórias, não podem se realizar nunca. Bastiat questiona: “Não estará aí a causa de todas as nossas revoluções?”. Pois entre o Estado que esbanja promessas impossíveis e o povo que sonha coisas irrealizáveis, surgem os ambiciosos e vendedores de utopias. O povo passa a acreditar nas promessas utópicas, mas estas nunca se concretizam. A contradição é eterna: se o governante quiser ser filantropo, é forçado a permanecer fiscal. Antes de oferecer qualquer coisa ao povo, tem inexoravelmente que tirar dele antes. A idéia de que o Estado deve dar muito aos cidadãos e tirar deles muito pouco é absurda e perigosa. Mas como alerta Bastiat, os “cortejadores de popularidade” são peritos na arte de mostrar a mão delicada, mas esconder a mão rude.
Tudo exigir do Estado e nada dar é “quimérico, absurdo, pueril, contraditório e perigoso”. Bastiat pergunta: “Como é que o povo não vai fazer revolução em cima de revolução, se ele estiver decidido a só parar quando houver realizado esta contradição: nada dar ao Estado e dele receber tudo?”. Mas esses utópicos fogem desta contradição justamente pela abstração do Estado, como se ele pudesse ser algo diferente da soma dos cidadãos que compõem a nação. Para os socialistas, existe um estado natural de abundância. Nunca compreenderam direito o conceito de escassez. Basta empurrar as demandas existentes para o ente abstrato chamado Estado, que tudo irá ficar maravilhoso. Teremos o paraíso terrestre!
Para os outros que entendem a mensagem de Bastiat, no entanto, o Estado não é ou não deveria ser outra coisa senão “a força comum instituída, não para ser entre todos os cidadãos um instrumento de opressão e de espoliação recíproca, mas, ao contrário, para garantir a cada um o seu e fazer reinar a justiça e a segurança”. Ou seja, o Estado deveria existir para garantir a propriedade privada e as trocas voluntárias num ambiente de liberdade. Nunca para praticar a espoliação legal, que nada mais é que escravidão velada.
quinta-feira, fevereiro 22, 2007
Os Saudosistas
Rodrigo Constantino
"O hábito de culpar o presente e admirar o passado está profundamente arraigado na natureza humana." (David Hume)
Um dos campos onde a saudade por um passado idealizado mais mexe com as pessoas é o da moralidade. Há um sentimento bastante comum de que nunca antes a humanidade esteve tão desapegada de valores morais como no presente. Ocorre que isso vale para o passado também. Muitos antigamente tinham o mesmo tipo de impressão, e assim sucessivamente. Mas será que os valores morais da humanidade estão mesmo em declínio desde os primórdios? Será que cada vez mais os indivíduos se tornam seres imorais? Ou será que esta imagem é apenas fruto de uma característica comum da natureza humana, de enaltecer o passado e condenar o presente, sendo normalmente mais catastrófico ainda com as previsões do futuro?
Em seu livro Moral Freedom, Alan Wolfe diz que “toda geração acha a moralidade das gerações anteriores melhor que a sua própria”. Ele usa como exemplo a imagem da Era Vitoriana, tida hoje por alguns como o ícone da moralidade. Mas o que dizer da sátira de Anthony Trollope, The Way We Live Now, escrita em 1875 justamente para expor uma Inglaterra repleta de jogadores bêbados, financistas corruptos e amantes incompetentes? Será que podemos mesmo encarar a Era Vitoriana como a retidão moral vis-à-vis a atualidade? Em quais aspectos o mundo era moralmente superior naqueles tempos?
Podemos comparar as duas épocas em uma área onde muitos conservadores costumam usar para atacar o suposto declínio moral dos nossos dias: o divórcio. Muitos afirmam que as crescentes taxas de divórcio são forte evidência – senão prova – do total desapego aos sólidos valores morais. Mas que valores seriam esses? A lealdade acima de tudo, inclusive da felicidade? A submissão da mulher que permanece casada porque seria vítima dos mais pérfidos comentários? O apego ao conceito cristão de matrimônio, transformando dois indivíduos em um até que a morte os separe, mesmo que a vida seja infeliz? A obediência da mulher aos pais, do tempo em que sequer tinha a liberdade para escolher seu próprio marido? Pois por esta ótica, não vejo declínio algum, mas sim uma evolução moral, que garante maior liberdade de escolha para os envolvidos no casamento, que deve ser visto como algo bom e sempre voluntário, e não um sacrifício.
O Ato de 1857 na Inglaterra sobre o divórcio foi um pequeno passo rumo à liberdade, mas muito tímido ainda. Um marido poderia pedir o divórcio por adultério, mas uma mulher teria que provar não só o adultério, como maus tratos e uso de crueldade. Será que isto é moralmente superior ao que temos hoje, mesmo que sejamos obrigados a conviver com maiores taxas de divórcio? As pessoas não têm o direito de buscar a felicidade à sua própria maneira? Com o advento da independência financeira feminina, muitos casamentos acabam simplesmente porque as mulheres não são mais obrigadas a aturar certas coisas que consideram inaceitáveis. Isso não é algo bom, que deveria ser celebrado? Desde quando ficar casado a qualquer custo é algo decente e moralmente correto? Devemos enaltecer os tempos onde maridos autoritários abusavam da escravidão velada da mulher, atendendo as demandas sexuais com cortesãs enquanto as esposas ficavam submissas em casa?
Que fique claro que deposito bastante importância na família e no papel que esta instituição desempenha na sociedade. É bom para os filhos que tenham os pais juntos no mesmo lar, se possível. Mas nem de perto é essencial para a criação de adultos felizes. Muito melhor ter pais separados que se entendem bem do que marido e mulher brigando dentro de casa, sob os olhares assustados dos filhos. Mesmo sem briga, os filhos sentem se houver desprezo ou indiferença entre os pais, e a dura verdade será melhor do que a mentira hipócrita. Um pai pode ser ótimo para seu filho, mesmo separado da mãe, e vice-versa. Jamais aceitaria ficar com uma mulher somente por causa de um filho. Minha felicidade vem em primeiro lugar, e creio que para a felicidade do próprio filho é fundamental que os pais sejam indivíduos felizes.
No fundo, acredito que a ampliação do leque de escolhas dos indivíduos é que incomoda muitos saudosistas. O puritanismo hipócrita, por exemplo, costuma ser fruto da inveja que esses puritanos sentem daqueles que conseguem ser felizes atendendo os anseios do corpo, sem cair num vazio espiritual por conta disso. Que mal há em alguém querer ser feliz ao máximo nessa vida, a única que existe com certeza, sem desejar encará-la como um sacrifício para algo mais? Os conservadores freqüentemente alegam que esta postura leva ao niilismo, ao hedonismo que deixa um vácuo interior. Mas os indivíduos não precisam aderir ao carpe diem e viver cada dia como se fosse o último da vida, para focarem na maximização da própria felicidade nesta vida. Afinal, somos seres racionais, e podemos tentar calcular o valor do amanhã, pesando sempre o presente e o futuro em nossas escolhas.
O hedonismo seria a doutrina que prega que o bem é qualquer coisa que lhe dá prazer e que, portanto, o prazer é um padrão para a moralidade. Dizer que o prazer momentâneo deve ser o padrão da moralidade significa dizer que quaisquer valores que você escolhe, consciente ou inconscientemente, racional ou irracionalmente, são corretos e morais. A vida será então guiada por sentimentos ao acaso, não pela mente. Alguém que segue de forma tão arbitrária e randômica a felicidade dificilmente irá alcançá-la. Podemos, entretanto, constatar que o bem pode ser definido por um padrão racional de valor, que o prazer não é uma primeira causa, mas apenas uma conseqüência, que somente o prazer que procede de um julgamento racional de valor pode ser considerado moral. Desta forma, estaríamos ainda buscando a maximização do prazer e da felicidade, mas de forma racional. Isto me parece algo bem mais correto do ponto de vista moral que seguir uma doutrina de sacrifício individual em nome de um bem maior qualquer.
O mundo parece estar caminhando cada vez mais para este tipo de princípio moral, onde cada indivíduo pode focar em sua própria felicidade. Como todo aumento da liberdade de escolha, isso deverá gerar conseqüências indesejadas também, da mesma forma que a democracia imperfeita pode levar ao arrependimento em certas ocasiões. Mas nem por isso vamos desejar a volta aos tempos das monarquias, ditaduras ou teocracias. Pelo mesmo motivo, não vejo razão para o saudosismo de tempos onde o moralmente correto era a ausência da liberdade de escolha individual.
"O hábito de culpar o presente e admirar o passado está profundamente arraigado na natureza humana." (David Hume)
Um dos campos onde a saudade por um passado idealizado mais mexe com as pessoas é o da moralidade. Há um sentimento bastante comum de que nunca antes a humanidade esteve tão desapegada de valores morais como no presente. Ocorre que isso vale para o passado também. Muitos antigamente tinham o mesmo tipo de impressão, e assim sucessivamente. Mas será que os valores morais da humanidade estão mesmo em declínio desde os primórdios? Será que cada vez mais os indivíduos se tornam seres imorais? Ou será que esta imagem é apenas fruto de uma característica comum da natureza humana, de enaltecer o passado e condenar o presente, sendo normalmente mais catastrófico ainda com as previsões do futuro?
Em seu livro Moral Freedom, Alan Wolfe diz que “toda geração acha a moralidade das gerações anteriores melhor que a sua própria”. Ele usa como exemplo a imagem da Era Vitoriana, tida hoje por alguns como o ícone da moralidade. Mas o que dizer da sátira de Anthony Trollope, The Way We Live Now, escrita em 1875 justamente para expor uma Inglaterra repleta de jogadores bêbados, financistas corruptos e amantes incompetentes? Será que podemos mesmo encarar a Era Vitoriana como a retidão moral vis-à-vis a atualidade? Em quais aspectos o mundo era moralmente superior naqueles tempos?
Podemos comparar as duas épocas em uma área onde muitos conservadores costumam usar para atacar o suposto declínio moral dos nossos dias: o divórcio. Muitos afirmam que as crescentes taxas de divórcio são forte evidência – senão prova – do total desapego aos sólidos valores morais. Mas que valores seriam esses? A lealdade acima de tudo, inclusive da felicidade? A submissão da mulher que permanece casada porque seria vítima dos mais pérfidos comentários? O apego ao conceito cristão de matrimônio, transformando dois indivíduos em um até que a morte os separe, mesmo que a vida seja infeliz? A obediência da mulher aos pais, do tempo em que sequer tinha a liberdade para escolher seu próprio marido? Pois por esta ótica, não vejo declínio algum, mas sim uma evolução moral, que garante maior liberdade de escolha para os envolvidos no casamento, que deve ser visto como algo bom e sempre voluntário, e não um sacrifício.
O Ato de 1857 na Inglaterra sobre o divórcio foi um pequeno passo rumo à liberdade, mas muito tímido ainda. Um marido poderia pedir o divórcio por adultério, mas uma mulher teria que provar não só o adultério, como maus tratos e uso de crueldade. Será que isto é moralmente superior ao que temos hoje, mesmo que sejamos obrigados a conviver com maiores taxas de divórcio? As pessoas não têm o direito de buscar a felicidade à sua própria maneira? Com o advento da independência financeira feminina, muitos casamentos acabam simplesmente porque as mulheres não são mais obrigadas a aturar certas coisas que consideram inaceitáveis. Isso não é algo bom, que deveria ser celebrado? Desde quando ficar casado a qualquer custo é algo decente e moralmente correto? Devemos enaltecer os tempos onde maridos autoritários abusavam da escravidão velada da mulher, atendendo as demandas sexuais com cortesãs enquanto as esposas ficavam submissas em casa?
Que fique claro que deposito bastante importância na família e no papel que esta instituição desempenha na sociedade. É bom para os filhos que tenham os pais juntos no mesmo lar, se possível. Mas nem de perto é essencial para a criação de adultos felizes. Muito melhor ter pais separados que se entendem bem do que marido e mulher brigando dentro de casa, sob os olhares assustados dos filhos. Mesmo sem briga, os filhos sentem se houver desprezo ou indiferença entre os pais, e a dura verdade será melhor do que a mentira hipócrita. Um pai pode ser ótimo para seu filho, mesmo separado da mãe, e vice-versa. Jamais aceitaria ficar com uma mulher somente por causa de um filho. Minha felicidade vem em primeiro lugar, e creio que para a felicidade do próprio filho é fundamental que os pais sejam indivíduos felizes.
No fundo, acredito que a ampliação do leque de escolhas dos indivíduos é que incomoda muitos saudosistas. O puritanismo hipócrita, por exemplo, costuma ser fruto da inveja que esses puritanos sentem daqueles que conseguem ser felizes atendendo os anseios do corpo, sem cair num vazio espiritual por conta disso. Que mal há em alguém querer ser feliz ao máximo nessa vida, a única que existe com certeza, sem desejar encará-la como um sacrifício para algo mais? Os conservadores freqüentemente alegam que esta postura leva ao niilismo, ao hedonismo que deixa um vácuo interior. Mas os indivíduos não precisam aderir ao carpe diem e viver cada dia como se fosse o último da vida, para focarem na maximização da própria felicidade nesta vida. Afinal, somos seres racionais, e podemos tentar calcular o valor do amanhã, pesando sempre o presente e o futuro em nossas escolhas.
O hedonismo seria a doutrina que prega que o bem é qualquer coisa que lhe dá prazer e que, portanto, o prazer é um padrão para a moralidade. Dizer que o prazer momentâneo deve ser o padrão da moralidade significa dizer que quaisquer valores que você escolhe, consciente ou inconscientemente, racional ou irracionalmente, são corretos e morais. A vida será então guiada por sentimentos ao acaso, não pela mente. Alguém que segue de forma tão arbitrária e randômica a felicidade dificilmente irá alcançá-la. Podemos, entretanto, constatar que o bem pode ser definido por um padrão racional de valor, que o prazer não é uma primeira causa, mas apenas uma conseqüência, que somente o prazer que procede de um julgamento racional de valor pode ser considerado moral. Desta forma, estaríamos ainda buscando a maximização do prazer e da felicidade, mas de forma racional. Isto me parece algo bem mais correto do ponto de vista moral que seguir uma doutrina de sacrifício individual em nome de um bem maior qualquer.
O mundo parece estar caminhando cada vez mais para este tipo de princípio moral, onde cada indivíduo pode focar em sua própria felicidade. Como todo aumento da liberdade de escolha, isso deverá gerar conseqüências indesejadas também, da mesma forma que a democracia imperfeita pode levar ao arrependimento em certas ocasiões. Mas nem por isso vamos desejar a volta aos tempos das monarquias, ditaduras ou teocracias. Pelo mesmo motivo, não vejo razão para o saudosismo de tempos onde o moralmente correto era a ausência da liberdade de escolha individual.
terça-feira, fevereiro 20, 2007
A Guerra Fria
Rodrigo Constantino
“Regimes plantados com baionetas não deitam raízes.” (Ronald Reagan)
O professor de história em Yale, John Lewis Gaddis, compilou em um curto livro os principais fatos sobre a traumática Guerra Fria, que marcou a segunda metade do século XX. Como o próprio autor destaca em História da Guerra Fria, o mundo “é um lugar melhor pelo fato de o conflito ter-se travado da forma como o foi e ser vencido pelo lado que o venceu”. Gaddis julga com objetividade o que se passou, compreendendo que de fato havia um lado lutando pelos valores corretos e outro lado representando o “Império do Mal”, como chamou Reagan.
Venceu a Segunda Guerra uma coalizão cujos membros mais importantes já estavam em guerra, ao menos ideológica e geopolítica. Aquela vitória “exigiria que os vencedores deixassem de ser o que eram ou desistissem de muito do que esperavam atingir com aquela guerra”. Os cidadãos dos Estados Unidos proclamavam, com razão, que viviam na mais livre sociedade da face da Terra, enquanto os bolcheviques haviam adotado a concentração de autoridade como forma de derrubar inimigos e consolidar uma base para exportar a revolução pelo resto do mundo. A URSS era, ao final da Segunda Guerra, “a sociedade mais autoritária da face da Terra”. O embate que se travava era, portanto, entre esses dois modos contrastantes de ver o mundo. De um lado a liberdade individual e a democracia, e do outro o autoritarismo estatal e o terror. E em 1945, ainda não estava claro, para muitos, qual seria a onda do futuro.
Nas próprias palavras de Gaddis: “Ambas as ideologias que definiam aqueles dois mundos se destinavam a oferecer esperança: para isto, antes de mais nada, serve uma ideologia. Uma delas, no entanto, para funcionar veio a depender da instalação do medo. A outra não precisava deste recurso. Neste ponto está a assimetria ideológica fundamental da Guerra Fria”. Não é por acaso que o lado que precisou erguer um muro para impedir a própria saída do povo foi o comunista.
A postura soviética era claramente ofensiva, enquanto os americanos ficaram a maior parte do tempo na defensiva. “A meta de Stalin não era restaurar o equilíbrio de poder na Europa”, como diz Gaddis, “mas dominar o continente tão completamente quanto Hitler quisera”. Roosevelt e Churchill insistiram repetidamente com Stalin para que permitisse eleições livres nos estados bálticos, na Polônia e noutras áreas da Europa oriental. Na Conferência de Yalta, Stalin concordou em fazê-lo, mas sem a menor intenção de cumprir o prometido. Como Roosevelt disse pouco antes de sua morte, “Stalin quebrou todas as promessas feitas em Yalta”.
O enorme telegrama que George Kennan, respeitado membro do serviço diplomático na embaixada americana em Moscou, enviou para o Departamento de Estado em 1946 tornou-se o fundamento da estratégia dos Estados Unidos em relação à União Soviética por todo o restante da Guerra Fria. Nele, Kennan insistia que a intransigência de Moscou não resultava de qualquer iniciativa do Ocidente, mas decorria das necessidades internas do regime stalinista e nada poderia ser feito num futuro previsível para alterar este quadro. “Os líderes soviéticos tinham que tratar o mundo exterior como hostil porque isso lhes dava o único pretexto para a ditadura sem a qual não sabiam governar”. Seria necessária então uma contenção de longo prazo das tendências expansivas russas.
Praticamente todas as guerras “quentes” que ocorreram durante a Guerra Fria foram iniciativas do lado comunista, tentando expandir suas fronteiras e colonizar outros países. Os americanos e seus aliados entravam em cena para impedir esse imperialismo, defendendo os invadidos. Mas não houve confronto militar direto soviético-americano, nem mesmo em função da Coréia, ainda que provas recentes levaram a crer que Stalin autorizou o emprego de aviões de caça soviéticos, pilotados por soviéticos, sobre a península coreana, onde engajaram caças americanos pilotados por americanos. Mas o fato é que o temor do uso de bombas atômicas em larga escala funcionou como um freio entre as duas grandes potências, impedindo um confronto direto oficialmente. Como constatou Churchill, “é para a universalidade da destruição potencial que devemos olhar com esperança e até mesmo confiança”.
Um dos episódios mais tensos da Guerra Fria foi a crise dos mísseis em Cuba. Khruschev encarava a instalação de mísseis em Cuba principalmente como uma tentativa de propagar a revolução pela América Latina. Kennedy e seus auxiliares encararam a instalação dos mísseis, da qual tomaram conhecimento apenas em outubro de 1962, como a mais perigosa de uma longa série de provocações que remontavam às ameaças dos dirigentes do Kremlin à Inglaterra e à França durante a crise de Suez, seis anos antes. Foi um dos momentos mais delicados da Guerra Fria, e Gaddis considera que “o que evitou que ocorresse uma guerra no outono de 1962 foi a irracionalidade do terror absoluto que tomou conta de ambos os lados”.
O professor John Gaddis não ignora, de forma alguma, os erros cometidos pelos americanos durante a Guerra Fria. A própria criação da CIA e suas atividades clandestinas são citadas, levando-se em conta o debate que o assunto gerou dentro dos próprios Estados Unidos. Até que ponto o realpolitik era aceito? Até onde cabia a máxima maquiavélica de que o homem virtuoso precisa aprender a não ser virtuoso, de acordo com as necessidades? Como conciliar os valores domésticos com a política externa mais pragmática? Podemos condenar as atividades da CIA com o benefício do retrospecto, mas seria injusto não levar em conta o cenário da época, com a real ameaça comunista batendo à porta com força. Esta ambivalência moral, entretanto, não significava equivalência moral, já que os Estados Unidos nunca julgaram necessário violar direitos humanos na escala em que a União Soviética e seus aliados tinham praticado. Mas felizmente a Grande Sociedade Aberta venceu, e um presidente americano foi forçado a renunciar por escândalos e mentiras, mostrando que os fins não justificavam os meios, e que o império da lei ainda valia.
Nos últimos capítulos, Gaddis fala dos grandes líderes que surgiram, dentro de um contexto histórico, para acelerar o processo de desmantelamento do comunismo e término da Guerra Fria. Figuras como Reagan, Thatcher, Walesa, Václav Havel e João Paulo II seriam peças fundamentais no desfecho desta fase sombria que viveu a humanidade. Compare-se a estes nomes figuras pitorescas como Mao Tse Tung, Stalin, Pol Pot, Kim Il-Sung, Fidel Castro, Ho Chi Minh e Ceausescu, e não resta dúvidas de que um lado lutava pela liberdade e valores decentes da humanidade, enquanto o outro representava o mal encarnado, o terror e a violência. Gorbachev recebeu muitos méritos pela queda soviética, mas na verdade tentara salvar o socialismo tomando emprestadas idéias capitalistas. Nunca abandonou de verdade o ideal socialista, ainda que não estivesse disposto a usar a força para sustentá-lo. Como um não vive em o outro, Gorbachev acabou contribuindo para o fim da União Soviética.
Segundo Gaddis, “a Guerra Fria pode bem ser lembrada como o ponto a partir do qual força militar, o elemento definidor de ‘poder’ nos cinco séculos anteriores, deixou de sê-lo”. Afinal, “a União Soviética se desfez com todo seu poder militar, inclusive a capacidade nuclear, perfeitamente intacto”. A Guerra Fria, não obstante todas as suas atrocidades, podia ter sido muito pior. “Começou com uma volta do medo e terminou com um triunfo da esperança”.
O triste é saber que muitos torciam pelo lado errado, e até hoje não perdoaram os americanos por terem vencido a Guerra Fria. Este socialismo envergonhado é uma das causas do antiamericanismo patológico que vem crescendo desde então. Seus defensores irão perder, uma vez mais.
segunda-feira, fevereiro 19, 2007
A Carta de Dawkins
Rodrigo Constantino
“Faith is the commitment of one's consciousness to beliefs for which one has no sensory evidence or rational proof; a mystic is a man who treats his feelings as tools of cognition.” (Ayn Rand)
Em O Capelão do Diabo, Richard Dawkins dedica a última seção a uma carta que escrevera para sua filha quando esta completou dez anos de idade. Pela simplicidade da linguagem, mas importância do conteúdo, considero interessante expor aqui alguns trechos desta carta, já que penso de forma bastante parecida e tento educar minha filha nesta mesma linha. Dawkins diz: “Eu sempre quis encorajá-la a pensar, sem dizer a ela o que pensar”. Costumo fazer o mesmo com minha filha, evitando a doutrinação e tentando estimular o questionamento. Quando ela pergunta se viramos anjos quando morremos, por exemplo, respondo que não sei, que alguns acreditam que sim e outros pensam que não, mas que o mais importante é ela não deixar de questionar, não aceitar uma resposta pronta, e também focar mais na vida que na morte. Isso é bem diferente de um pai que responde um enfático “sim”, fechando todas as portas de reflexão para uma criança ainda imatura. Mas vamos aos trechos de maior destaque na carta de Dawkins.
Os cientistas quase sempre agem como detetives, partindo de uma intuição de que algo pode ser verdadeiro – que chamamos de hipótese – e buscando evidências através basicamente de observações. Dawkins alerta sua filha contra três razões indevidas para acreditar no que quer que seja: tradição, autoridade e revelação. Estas três fontes de “conhecimento” são bem distintas deste método científico da busca pela verdade.
Como diz Dawkins, “as crenças tradicionais em geral se iniciam a partir de quase nada”. Talvez alguém simplesmente as invente, como tantas histórias e fábulas conhecidas. Mas “depois de terem sido transmitidas durante alguns séculos, o mero fato de serem tão antigas faz com que pareçam especiais”. As pessoas acreditam em certas coisas somente porque acreditaram nelas durante séculos. Isso é tradição. Como lembra Dawkins, “coisas distintas são ditas às crianças muçulmanas e às crianças cristãs, e nos dois casos elas crescem absolutamente convencidas de que estão certas e que as outras estão erradas”. Dawkins conclui: “Se inventarmos uma história que não é verdadeira, transmiti-la ao longo de muitos séculos não a tornará nem um pouquinho mais verdadeira!”. As tradições têm sua importância, sem dúvida. Mas não há motivo algum para que não possamos – ou mesmo devamos – questioná-las, buscar suas origens, e checar se são verdadeiras.
Como um caso que vem à mente, podemos falar dos muçulmanos, que não podem beber vinho. A bebida fazia parte da vida cotidiana de Meca no século VI, mas em 632, dez anos após a morte de Maomé, o vinho fora completamente banido de todos os países onde o Islã ditava as regras. O único verso do Alcorão em que se baseia a proibição do vinho foi ditado em função de um incidente ocorrido em Medina, quando os discípulos de Maomé bebiam após a ceia. Houve um desentendimento entre dois destes discípulos, que acabou num golpe que feriu um deles superficialmente. Maomé não gostou, e após consultar Alá, concluiu que o vinho era um veículo do Satanás, que procurava a inimizade e o ódio entre as pessoas. Maomé prescreveu quarenta chibatadas para quem violasse sua injunção contra o vinho, e seu sucessor, o califa Omar, aumentou para oitenta o número. Existem centenas de milhões de consumidores de vinho a menos no mundo hoje, e tudo por causa de uma briga entre dois discípulos provavelmente embriagados de Maomé, no século VII. Será que faz sentido seguir esta tradição sem sequer questionar os motivos dela? Para alguns, o vinho é sagrado, para outros, o caminho do inferno. E muitos aceitam essas “verdades” somente pelo peso da tradição. Dependendo de onde nasceram, sem escolha alguma, podem adorar ou detestar uma bebida, sem motivo racional algum.
O outro alerta de Dawkins é contra a autoridade, significando que acreditamos em algo somente porque alguma pessoa importante nos disse para fazê-lo. Dawkins cita como exemplo a figura máxima da Igreja Católica, o Papa, que passa a adquirir um ar de infalibilidade somente por se tornar Papa. Somente em 1950 um Papa disse oficialmente aos católicos romanos que eles deveriam acreditar que o corpo de Maria subiu ao céu. Mas será que isso se torna mais ou menos verdade apenas porque alguma autoridade resolveu afirmar assim? Dawkins reconhece que mesmo na ciência, “algumas vezes não é possível que vejamos as evidências nós mesmos e, nesse caso, temos que acreditar na palavra de alguém”. Mas é algo bem mais confortante do que a fé necessária na autoridade religiosa, já que as pessoas que escreveram os livros viram as evidências e qualquer um tem a liberdade de examiná-las a qualquer momento, já que são objetivas. Em contrapartida, nem mesmo os padres afirmam que existem evidências para a história sobre o corpo de Maria voando em direção ao Céu. São duas situações bem diferentes.
O terceiro alerta é contra a revelação, que Dawkins descreve como o sentimento que algumas pessoas religiosas têm no seu interior, de que alguma coisa deve ser verdade, muito embora não tenham evidência alguma disso. “Todos nós temos sentimentos dentro de nós de tempos em tempos; às vezes eles se mostram corretos e outras vezes não”, ele diz. Pessoas diferentes podem ter sentimentos opostos e assim fica impossível descobrir quais são os sentimentos corretos. Sentimentos interiores precisam ser sustentados por evidências, “caso contrário simplesmente não devemos acreditar neles”. Os cientistas usam sentimentos interiores a todo o momento, mas para transformarem isto em ciência precisam encontrar sustentação nas evidências, caso contrário não há valor científico.
A carta é endereçada a uma criança, mas acredito que muitos adultos deveriam refletir sobre sua mensagem. Creio que devemos deixar o desfecho com o próprio Richard Dawkins:
“A próxima vez que alguém lhe disser algo que soe importante, pense consigo mesma: ‘Será que esse é o tipo de coisa que as pessoas provavelmente sabem porque há evidências? Ou será que é o tipo de coisa em que as pessoas só acreditam por causa da tradição, da autoridade ou da revelação?’ E, quando alguém lhe disser que uma coisa é verdade, por que não dizer a ela: ‘Que tipo de evidência há para isso?’ E se ela não puder lhe dar uma boa resposta, espero que você pense com muito cuidado antes de acreditar numa só palavra.”
domingo, fevereiro 18, 2007
A Vaidade de Olavo
Rodrigo Constantino
“The true teacher defends his pupils against his own personal influence.” (Amos Bronson Alcott)
O “filósofo” Olavo de Carvalho, que havia anunciado ser impossível debater comigo por causa de minha ignorância e que não iria perder tempo com um “moleque idiota”, já escreveu cinco longos artigos atacando a minha pessoa. Para filtrar argumentos entre aqueles adjetivos tão chulos é preciso espremer bastante, e mesmo assim pouco sai. Ele reclama que eu estou fugindo de um debate proposto por mim mesmo, mas na verdade estou apenas evitando o show que Olavo tanto gosta de oferecer a seus seguidores. Quase todo “debate” com Olavo acaba com um xingamento tosco envolto numa expressão em latim, para dar um toque de erudição. Estou lidando com um “adolescente crescido”, um “filósofo” que fica xingando os outros dos mais baixos nomes e que ainda usa como “argumento” as mensagens que recebeu de admiradores atacando a minha pessoa. O argumentum ad populum , quem diria?, passou a ser um dos preferidos de Olavo.
Alguém que já conhecia Olavo melhor que eu comentou no meu blog que o homem estava realmente mordido por causa de uma correção que fiz sobre a língua portuguesa. Eu pensei que era besteira, que um filósofo jamais seria tão tolo, e que a sua reação era mesmo fruto do fanatismo religioso. Mas depois foi ficando mais claro que havia verdade nisso. De fato, basta observarmos que o título da série de longos artigos atacando minha pessoa é Rodericus Constantinus Grammaticus, com o subtítulo O Homem do Mim. Para quem não sabe, isto se deve ao fato de Olavo ter escrito “entre eu e você” em uma mensagem para mim, e eu ter apontado que o correto seria “entre mim e você”. Bastou isso. Para um homem cuja vaidade é maior que o mundo, foi algo insuportável. Olavo ainda mentiu depois, afirmando em sua comunidade de Orkut que eu fiquei “pisando e repisando o mesmo ponto com obsessividade compulsiva e fazendo-se de [seu] professor de redação”. Mentira. Eu fiz a correção uma única vez, e foi o suficiente para despertar a ira de Olavo. A seguir ele insistiu na mentira: “É claro que não fiquei brabo com a correção do ‘mim’, embora a achasse estilisticamente inadequada”. Não ficou “brabo”, mas disse, faltando com a verdade, que eu foquei nisso obsessivamente, e ainda deu importância ao fato a ponto de virar o tema do título dos seus artigos? Talvez ele não esteja mentindo quando diz que fiquei repisando o mesmo ponto. Talvez seja apenas auto-engano. Vai ver que ele realmente ficou vendo isso o tempo todo, em qualquer lugar que olhasse. Freud explica. E um de seus mais fervorosos admiradores ainda se deu ao trabalho de criar um tópico apenas para apontar os meus erros de português!
Voltaire dizia que a “tolerância é a conseqüência necessária da percepção de que somos pessoas falíveis”, já que “errar é humano, e estamos o tempo todo cometendo erros”. O filósofo Karl Popper, quem Olavo chegou a desqualificar como fonte séria para alguma coisa, endossa esta postura, e sempre defendeu a tolerância e a falibilidade humana. Popper estimulava seus alunos a questionar livremente suas premissas nas aulas, criando um ambiente aonde apontar os erros do mestre fosse algo bastante natural. Compare-se isso ao que Olavo parece fazer com seus alunos, e vemos o abismo que separa ambos. Os seguidores de Olavo parecem incapazes de questionar o mestre, de apontar suas falhas, de criticá-lo abertamente. Receberam o jocoso apelido de “olavetes” não foi à toa. Como crianças desamparadas, ficam torcendo para o “guru” detonar o oponente, não à base de sólidos argumentos, mas sim com adjetivos que sequer podem ser reproduzidos aqui. Trata-se de um comportamento típico de seitas, onde o “líder iluminado” está sempre com a razão, e quando acusa outro de fazer algo que ele mesmo faz com tanta freqüência, recebe os aplausos das focas adestradas, incapazes de enxergar o que ocorre de fato. É desta maneira que Olavo consegue denunciar as falácias dos esquerdistas, enquanto as aplica com maestria sem que seus admiradores notem. Olavo conseguiu até mesmo criticar o meu suposto “tom de superioridade infinita”. Será que falta espelho na casa do “filósofo”?
Em um novo artigo, Disfarçando o Mico, Olavo mente mais um pouco ao afirmar: “Enviou tantas mensagens para todos os lados (inclusive para a minha página pessoal no Orkut), que acabou ganhando dos orkutianos o apelido de Spamtantino”. Nada poderia estar mais longe da verdade! Este “carinhoso” apelido me foi dado pelos esquerdistas, que sempre preferiram atacar a minha pessoa a argumentar. Deve-se ao fato de eu utilizar o Orkut como veículo de divulgação dos meus artigos, colocando o link para eles em inúmeras comunidades diferentes. Em resumo: quem criou o apelido que Olavo agora tenta usar para me desqualificar foram justamente os membros da comunidade “Olavo nos Odeia”, um grupo de esquerdistas imaturos que detesta Olavo e prefere atacar pessoas a debater idéias. Cada vez mais fico convencido que são dois lados da mesma moeda, que são, no fundo, bem parecidos, trocando apenas o sinal.
Por fim, Olavo chegou ao ponto de colocar mensagens que recebeu de admiradores me atacando. Creio que Olavo e sua turma perderam a capacidade de olhar para fora, algo muito comum em seitas. Tentam “vencer” os debates no grito, e não conseguem nem mesmo olhar a reação que esta conduta lamentável tem gerado fora do rebanho. Se eu fosse escrever artigos com a quantidade de mensagens que recebi lamentando a postura do “filósofo” e me dando razão, seria preciso praticamente um livro. Ainda assim, a quantidade não faz a qualidade, e o número de adeptos jamais fez uma causa ser verdadeira por tal critério. Mas comento isso apenas para mostrar como eles se fecharam em seu mundo, entorpecidos com as trocas mútuas de bajulações. Já dizia Nelson Rodrigues: “A grande vaia é mil vezes mais forte, mais poderosa, mais nobre do que a grande apoteose; os admiradores corrompem”. Em uma linha parecida foi Norman Vincent, ao afirmar que “o mal de quase todos nós é que preferimos ser arruinados pelo elogio a ser salvos pela crítica”.
Olavo foi alçado ao patamar de “líder iluminado” por seus seguidores, e isso o cegou. Sua vaidade é tanta que perdeu o costume de ser criticado por pessoas que concordam com muitas de suas idéias. E quando é alvo de um “fogo amigo”, que não é proferido por comunistas, fica perdido, desnorteado, partindo para o ataque pessoal. Inverte tudo, chegando a afirmar que eu estou humilhado e enraivecido. Será que é a minha conduta que demonstra raiva? E termina me classificando como um “mico em pele de jumento”. Quem diria que a correção de um erro de português pudesse mexer tanto assim com alguém?! Creio que a vaidade de Olavo é ainda maior que seu fanatismo religioso.
sexta-feira, fevereiro 16, 2007
Assim Falou Zaratustra
Rodrigo Constantino
Considero que minha “cruzada” contra o fanatismo religioso foi útil, pois despertou intensos debates sobre o tema, o que sempre leva a uma saudável reflexão. Não dos fanáticos em si, claro, mas o alvo não era este, já que, como disse Thomas Paine, “argumentar com uma pessoa que tenha renunciado ao uso da razão é como dar remédio para os mortos”. Espero que tenha ficado claro que luto contra o fanatismo, não contra qualquer pessoa religiosa em si. E pela reação de muitos, notei como ainda existem fanáticos, pessoas que realmente acreditam que antes da Bíblia nada de bom existia ou que são incapazes de questionar seus dogmas e criticar sua religião. A ciência parte de axiomas, que são verdades evidentes por si próprias, como a existência, por exemplo. Enquanto isso, as religiões partem de dogmas, que são “verdades” impostas que devem ser aceitas indiscutivelmente. Como considero as discussões calcadas nos argumentos fundamentais para a evolução humana, fica claro qual postura acho mais adequada.
Este artigo, com o qual pretendo finalizar esta luta inglória contra o fanatismo, será baseado num filósofo ainda mais virulento que Voltaire nas críticas religiosas. Não necessariamente endosso todas elas, mas as considero úteis para estimular uma reflexão. Antes disso, porém, cabe desfazer um mal entendido que possa ter ficado sobre o artigo que deu origem a esta empreitada, justamente sobre o livro de Voltaire. Alguns interpretaram a seguinte passagem como anti-semitismo do autor e, por conseguinte, meu: “Como eles [judeus] mesmos reconhecem, são um povo de ladrões que carregam para um deserto tudo o que roubaram dos egípcios”. Esta frase foi tirada de um contexto o qual Voltaire está claramente condenando as fábulas judaicas, alegando que quem nelas acredita literalmente, e aplaude, está enaltecendo um povo ladrão. Tanto que logo em seguida ele compara isso com as fábulas dos gregos, considerando-as mais suaves. Quem me conhece sabe que eu jamais seria um anti-semita. Em primeiro lugar, tratar todos os judeus como um grupo monolítico é típico de coletivistas, e sou um individualista. Em segundo lugar, tenho inúmeros artigos defendendo a posição de Israel na questão da Palestina, ou expondo o critério injusto de julgamento contra os judeus, especialmente na mídia. O rótulo de anti-semita simplesmente não cola em mim. Mas vamos a Zaratustra de Nietzsche!
Os ataques de Nietzsche às religiões em geral e ao Cristianismo em particular são bastante ácidos. Nietzsche começa afirmando que todos os deuses não passam de criações humanas: “Ah, meus irmãos, esse Deus, que eu criava, era obra humana e humana loucura, como todos os deuses!”. Entre os motivos para tal criação, ele diz: “Enfermos e moribundos, eram os que desprezaram o corpo e a terra e inventaram o céu e as gotas de sangue redentoras”. Para o filósofo, o desejo de morrer é que faz voltarem as costas à vida, e desprezarem o próprio corpo. “Há uma inconsciente inveja no vesgo olhar do vosso desprezo”, afirma Zaratustra. Para esses pregadores da morte, o recado não poderia ser mais duro: “Tratai, portanto, de que cesse essa vida que é somente sofrimento!”.
Sobre o conceito do bem e do mal, Nietzsche diz: “Em verdade, foram os homens a dar a si mesmos o seu bem e o seu mal. Em verdade, não o tomaram, não o acharam, não lhes caiu do céu em forma de voz. Valores às coisas conferiu o homem, primeiro, para conservar-se”. E em relação ao amor ao próximo: “O vosso amor ao próximo é o vosso mau amor por vós mesmos. Fugis para junto do próximo a fim de fugir de vós mesmos e desejaríeis fazer disto uma virtude; mas eu vejo claro em vosso ‘altruísmo’. Não vos suportais a vós mesmos e não vos amais bastante: então, quereis induzir o próximo a amar-vos, para vos dourardes com seu erro. O vosso mau amor por vós mesmos transforma, para vós, a solidão em cárcere”.
Mais à frente, Nietzsche questiona: “Podeis pensar em Deus? Mas é isto que significa o vosso desejo de verdade: que tudo se transforme no que pode ser humanamente pensado, humanamente visto, humanamente sentido! Deveis pensar, até o fim, os vossos próprios sentidos! Deus é um pensamento que torna torto tudo que é reto e faz girar tudo que está parado”.
Sobre o pecado original, Zaratustra diz: “Desde que os homens existem, sempre o homem se alegrou pouco demais; é somente este, meus irmãos, o nosso pecado original! E, se aprendermos a alegrar-nos melhor, será este o melhor modo de desaprendermos a fazer sofrer os outros e a inventar novos sofrimentos”.
Nietzsche não poupa os templos religiosos: “Oh, olhai essas choupanas que esses sacerdotes construíram para si! Igrejas, chamam eles a tais antros de cheiro adocicado. Oh, nessa falsa luz, esse ar abafado! Aqui, onde a alma, para elevar-se à sua eminência, não tem o direito de voar! Senão que, ao contrário, assim manda a sua fé: Subi a escada de joelhos, pecadores! E não souberam amar o seu Deus de outro modo, senão crucificando o homem!”.
Do conceito de virtude: “Quanto mais se afundam, tanto mais ardentes lhes brilham os olhos e o anseio pelo seu Deus. Também, o grito desses, ai de nós, já abriu caminho até vossos ouvidos, ó virtuosos: ‘O que eu não sou, isso, isso é, para mim, Deus e virtude!’ Com sua virtude, querem arrancar os olhos dos inimigos; e se elevam somente para abaixar outrem. Cansados de dizer: ‘O que faz uma ação ser boa é ser desinteressada.’ Ah, meus amigos! Que o vosso ser próprio esteja na ação, tal como a mãe está no filho: seja esta a vossa palavra a respeito da virtude!”.
Sobre as rezas: “Rezar é uma vergonha. Não para todos, mas para mim e para ti e para quem tenha a consciência também na cabeça. Para ti, rezar é uma vergonha! E bem o sabes. É o teu demônio covarde dentro de ti que gostaria de ficar de mãos cruzadas sobre o ventre e levar vida mais cômoda. É esse covarde demônio que te inculca: ‘Existe um Deus!’ Com isto, porém, pertences à espécie de homens que temem a luz e que a luz nunca deixa tranqüilos; todos os dias, agora, deverás meter a cabeça mais fundamente na noite e na névoa!”.
Não concordo com todos os pensamentos de Nietzsche, mas reconheço muitas verdades duras em seu discurso. Sei que muitos irão automaticamente acusá-lo de ter ficado louco, ignorando sua doença física. Sei também que alguns vão tentar desqualificá-lo por uma injusta associação ao nazismo, mais por culpa de sua irmã que por suas próprias idéias, já que seria estranho associar ao nazismo quem afirmou que “chama-se Estado o mais frio de todos os monstros frios”. Mas nada disso importa. Um bom argumento independe de quem o fornece. É mais importante as pessoas focarem em o que é dito do que em quem disse. E o fato é que as palavras de Nietzsche não deixam de suscitar uma boa reflexão sobre os deuses que os homens parecem ter criado para suportar suas próprias fraquezas. Ou então sobre um foco mais egoísta na própria felicidade, em vez de viver enaltecendo o sofrimento próprio em prol de terceiros ou de outra vida qualquer. Afinal, “é a minha felicidade que deveria justificar a existência”. Assim falou Zaratustra.
quinta-feira, fevereiro 15, 2007
A Desonestidade de Olavo
Rodrigo Constantino
“The argument from intimidation is a confession of intellectual impotence.” (Ayn Rand)
O filósofo Olavo de Carvalho, conhecido pelo excesso de agressões pessoais nos “debates” em que participa, disse que não existe debate entre o conhecimento e a ignorância, ou seja, entre ele e eu, segundo o próprio. Não obstante a extrema arrogância, escreveu um enorme artigo em seu site, onde muito ataca e pouco argumenta, e agora divulgou um outro artigo no JB Online, chamado “Barbárie Mental”, onde a desonestidade fica evidente. Para quem disse que sou insignificante, até que Olavo tem dado bastante atenção à minha pessoa. Mas vamos aos pontos!
Olavo começa seu artigo da seguinte maneira: “Outro dia, em discussão na internet, um rapaz que de vez em quando escreve artigos políticos assegurou que todos os santos e profetas da cristandade só queriam poder e dinheiro, que Jesus nasceu de um adultério e que os judeus são um povo de ladrões”. Vejamos os trechos do meu artigo, já que Olavo está se referindo a mim, para julgar se o filósofo está sendo honesto.
O parágrafo que Olavo usa para afirmar que eu assegurei que todos os santos e profetas da cristandade só queriam poder e dinheiro é este:
“As críticas embasadas de Voltaire foram focadas no Judaísmo e no Cristianismo, mas ele fala de forma geral, quando diz que “a desconfiança aumenta quando se percebe que o objetivo de todos aqueles que estão à frente das seitas é dominar e enriquecer quanto puderem, e que, desde os dairis do Japão até os bispos de Roma, a única preocupação foi erguer para um pontífice um trono fundado na miséria dos povos e muitas vezes cimentado com seu sangue”.”
Podemos notar três pontos relevantes aqui: em primeiro lugar, estou usando as próprias palavras de Voltaire, por isso entre aspas, e portanto é Voltaire quem disse o que está escrito; em segundo lugar, Voltaire – e não eu – está falando de todas as seitas, e não apenas da cristandade; por fim, Voltaire está se referindo apenas aos que estão à frente das seitas. Eu, particularmente, considero a generalização de Voltaire injusta, mas não totalmente errada. Sem dúvida existiram exceções honrosas, mas de forma geral acho que pode-se dizer que os que fundaram seitas tinham como objetivo o poder ou o enriquecimento. O poder é sedutor, e nada como o poder sobre uma legião de seguidores autômatos, típico de seitas, como acho que Olavo deve saber muito bem. Os admiradores corrompem, e os fiéis seguidores, nunca dispostos a criticar ou questionar o “mestre iluminado”, corrompem ainda mais. Tornam o líder ainda mais arrogante e fechado à críticas.
Sobre eu ter assegurado que Jesus nasceu de um adultério, creio que Olavo só pode ter pescado do seguinte parágrafo:
“Voltaire começa questionando a origem de Jesus, que nasceu numa época em que o fanatismo estava em alta. Vários que acreditaram nele escreveram Evangelhos, que quer dizer “boa nova” em grego. Cada um escrevia uma Vida de Jesus, todas discordando, mas parecidas na enorme quantidade de prodígios incríveis atribuídos ao fundador da nova seita. Num desses livros, diz-se que Jesus era filho de uma mulher chamada Mirja, casada em Belém com um pobre homem chamado Jocanam. Havia na vizinhança um soldado de nome José Panther, que teria se apaixonado por Mirja, que teria engravidado dele. Existe mais que isso na história, mas Voltaire conclui: “É mais provável que José Panther tenha feito um filho a Mirja do que um anjo tenha vindo pelos ares cumprimentar da parte de Deus a mulher de um carpinteiro”. De fato. E como não custa lembrar, Deus tinha irmãos homens, se Jesus era Deus.”
Ou seja, Voltaire está usando um livro escrito por judeus para questionar se Jesus poderia ser filho de um soldado. Questionar virou assegurar, para o “grande” filósofo brasileiro. Um pequeno detalhe da língua portuguesa. Na verdade, só é pecado questionar se Jesus nasceu mesmo do ventre de uma virgem para quem for fanático, já que parece mais crível considerar que tal fato não é possível. E se os relatos bíblicos forem para ser levados ao pé da letra, então devemos acreditar, com a mesma intensidade, que um burro falou, que o sol parou, que o mundo foi criado em seis dias e que Adão e Eva de fato existiram. Não vejo mal algum em perguntar se Jesus nasceu mesmo de uma virgem, mas que fique constatada a desonestidade de Olavo, que mentiu descaradamente.
Por último, Olavo diz que eu assegurei que os judeus são um povo de ladrões. Eis a origem disso:
“Mas centrando a mira no Cristianismo e no Judaísmo, Voltaire começa questionando se existiu mesmo um Moisés. O que se fala de sua vida seria tão fantástico como o encantador Merlin. Voltaire busca também a origem muito suspeita das histórias de Moisés, como ser salvo das águas num cesto, que poderiam ser cópias de contos muito semelhantes na Arábia. O resto todo de sua história seria igualmente absurda e bárbara, com dados fantásticos e impossíveis, exageros grosseiros etc. “Que lamentável fazer Deus descer em meio a raios e trovões, sobre uma pequena montanha calva, para ensinar que não se deve ser ladrão!”. Os judeus, de forma geral, não são poupados: “Como eles mesmos reconhecem, são um povo de ladrões que carregam para um deserto tudo o que roubaram dos egípcios”.”
Como podemos ver, Voltaire está questionando se é factível o que falam sobre a vida de Moisés, insinuando que histórias fantásticas como as dele existiam já na Arábia e podem ter influenciado os judeus. O que Voltaire quer dizer aqui parece ser, na minha opinião, que se os judeus realmente enaltecem essas histórias fantásticas, estão reconhecendo ser um povo de ladrões, pois isso que teria ocorrido. Da mesma forma que rabinos que idolatram a figura de Davi estão idolatrando um assassino, como os próprios relatos afirmam. Não há uma acusação minha que diga que todos os judeus são ladrões, até porque seria absurdo para quem me conhece imaginar isso, posto que tenho artigos defendendo Israel e os judeus na questão da Palestina.
Em seguida, Olavo mente um pouco mais, quando diz: “Por incrível que pareça, alguns estudantes correram em socorro do insolente, consolando-o dos maus-tratos sofridos da parte de seu desbocado opositor, tão carente de ‘argumentos’”. Seria o caso de perguntar se Olavo pediu a certidão de nascimento de todos – e foram muitos – que condenaram sua atitude no episódio. Pois vários que foram em minha defesa não são estudantes, mas pais de família formados, adultos com muito mais sabedoria que o filósofo, que parece confundir erudição com sabedoria. Aliás, a única verdade nisso é sua carência de argumentos, que seu tom irônico tenta inverter. A tentativa de Olavo é clara e lamentável: ele pretende desqualificar todos que discordaram dele no assunto como adolescentes tolos. Seria útil recomendá-lo a observar como os seus defensores estão reagindo em sua comunidade do Orkut, já que a infantilidade lá é diretamente proporcional ao fanatismo. Estudantes parecem os seguidores de Olavo, incapazes de condenar o “guru” pelos mesmos critérios que condenam os demais. Alguns deles têm a cara-de-pau de me chamar de arrogante. Falta espelho nas seitas. São sempre dois pesos e duas medidas.
Para concluir, Olavo vem com esta verdadeira pérola: “O episódio, irrelevante em si, é bastante significativo do presente estado de barbárie intelectual. Falar em ‘crise cultural’, nessas circunstâncias, é eufemismo. Na época em que um sociopata adolescente pode fazer em pedaços o corpo de um menino e ainda ser defendido como vítima do capitalismo, o discernimento elementar do certo e do errado já se tornou uma operação complexa demais para os cérebros dos brasileiros. Nas pequenas como nas grandes questões, vigora a mesma estupidez grandiloqüente, a mesma brutalidade mental ornada de belos pretextos”.
Olavo tenta forçar uma associação bizarra entre meu estado intelectual e a reação comum da esquerda ao horror do recente caso do menino morto num assalto, onde muitos culpam o capitalismo pela barbárie. Será que Olavo esqueceu, de repente, que sou um grande defensor do capitalismo, e vários artigos meus foram inclusive publicados no seu próprio site? Será que Olavo desconhece que sou um grande defensor da responsabilidade individual, que jamais culpo a “sociedade” pelos atos criminosos de indivíduos, e que defendo maior punição para esses assassinos? Será que a culpa do estado de barbárie em que o país se encontra está em alguém questionar se Jesus nasceu mesmo de uma virgem, lembrando que somos um povo predominantemente cristão, e não ateu? A tentativa de Olavo de forjar uma ligação entre meu jeito de ver o mundo e a crise cultural do nosso país não é apenas absurda, mas fruto de pura má-fé.
Olavo diz que não há debate entre o conhecimento e a ignorância, ainda que dedique longos textos ao “ignorante” em questão. Pois eu afirmo: não há debate possível entre a honestidade intelectual e a perfídia. Escrevo um longo texto não para debater com Olavo, pois isso parece impossível, mas sim para expor o que está por trás de sua postura arrogante e desequilibrada: a desonestidade intelectual. Não dá para esperar muito de quem afirma que Sir Newton espalhou o vírus da burrice pelo Ocidente.
O Profeta Guerreiro
Rodrigo Constantino
“The whole problem with the world is that fools and fanatics are always so certain of themselves, but wiser people so full of doubts.” (Bertrand Russell)
Maomé, que significa “o glorificado”, nasceu no ano 570 d.C. em Meca, localizada no centro do comércio das caravanas árabes. Ela ficava cercada pelos impérios sassânida da Pérsia, que governava toda a costa oriental da Arábia, assim como o império abissínio e o bizantino. Meca era dominada pelos coraixitas, de predominância pagã. Ao redor de Meca, os beduínos viviam como nômades em tendas, divididos em clãs. A infãncia de Maomé foi passada no deserto com sua mãe adotiva, uma beduína. Desde cedo ele aprendeu tudo sobe o comércio e os desertos, assim como os cuidados com os camelos, fundamentais para a sobrevivência neste local. Os dados a seguir foram retirados da biografia que o historiador Barnaby Rogerson escreveu sobre o fundador do Islã.
Já um bem sucedido comerciante, Maomé buscava adquirir um bom rebanho de camelos para poder pagar o preço de uma noiva. Entretanto, ele acabou casando com Khadija, mais velha que ele e já com considerável riqueza. Ele era considerado um bom marido, assim como pai, tendo tido seis filhos, sendo que os dois únicos meninos morreram jovens. Ele era analfabeto, o que era bastante comum na Arábia esses anos.
No ano 610, em uma caverna nas encostas do Monte Hira, Maomé supostamente teria tido sua revelação divina. Ele tentou mais tarde explicar a sensação, afirmando que sentiu como se um anjo o tivesse prendido com um braço assustador que ameaçava esmagar a vida, expulsando o ar de seus pulmões. A seguir ele teria escutado a ordem de recitar a palavra de deus, e assim foi o início do Alcorão, traduzido literalmente como “recitação”. Ele saiu da forma oral para a escrita somente após a morte do profeta. Sua mensagem subvertia todos os valores fundamentais nos quais a sociedade de Meca se baseava, posto que pregava atitudes como alimentar os pobres, cuidar dos órfãos, dar abrigo às viúvas e proteger os fracos, sem falar da cobrança do dízimo, claro. Parecia evidente que Maomé encontraria problemas na sua tentativa de impor o Islã, que significa “render-se a deus”. Ele defendia a paz com os coraixitas, sob a condição de que estes declarassem que não há nenhum outro deus além de Alá, renunciando a qualquer tipo de adoração que não fosse a Ele. No Alcorão, sura 8 do versículo 39, encontramos: “e combatei-os até que não haja mais idolatria e que a religião pertença exclusivamente a Deus". Com o crescimento do número de adeptos muçulmanos, e tal postura intransigente, logo Maomé foi visto como um perigo para os coraixitas. Planos para assassinar o profeta foram feitos, e Maomé fugiu de Meca, buscando refúgio em Medina.
A era islãmica, a Hégira, começou nesse ano em que Maomé fugiu de Meca, em 622. Formando uma comunidade teocrática, em uma base segura dos inimigos, ele iniciou sua guerra contra os não-crentes. Os habitantes de Meca queriam ser deixados em paz, com suas riquezas materiais e suas divindades pagãs, mas Maomé não queria permitir isso. Ele era o agressor no conflito. De comerciante para profeta, agora Maomé se transformaria em um grande guerreiro.
Por esta época, a igualdade pregada por Maomé também foi abalada pelos desejos carnais do profeta. Em 626 ele casou-se pela quinta vez, tendo se apaixonado pela sua nora, esposa do seu filho adotivo, Zayd. Tal casamento seria ilegal, dado que a regra era de um máximo de quatro esposas para cada um. Foi então que Maomé supostamente recebeu uma nova revelação, tornando legal apenas para ele, o profeta, casar com quantas mulheres ele quisesse. No total de sua vida foram onze. Parece que até Maomé encontrou os limites da igualdade quando a natureza humana falou mais alto.
O ato mais cruel dos muçulmanos liderados por Maomé ocorreu na batalha contra o clã Bani Qurayzah, de judeus árabes. Derrotados, os judeus foram condenados à morte, e valas estreitas foram cavadas, sendo então um por um, dos cerca de setecentos homens, deitados e decapitados com um golpe de espada, com os corpos jogados nas valas. A carnificina durou o dia todo, tendo sido o último grupo executado à luz de tochas. A brutalidade desse ato espalhou ondas de choque por toda a Arábia. Uma estranha maneira, para dizer o mínimo, de se pregar a palavra de deus.
No total, Maomé comandou 27 expedições militares, além de ter organizado outras 38 que foram lideradas por comandantes subordinados. Todos deveriam se render ao Islã e pagar o dízimo, caso contrário poderiam ser roubados, escravizados ou mortos pelos crentes. O profeta também aboliu um mês tradicional do calendário, ligado a um festival popular pagão. Os meses perdiam então qualquer ligação com as estações do ano, cortando uma tradição milenar de cultos de fertilidade sazonais. No fim de 632, o ano dez da Hégira, Maomé comandava toda a Arábia. Em um dos seus últimos discursos, ele declarou que nenhum profeta ou apóstolo viria depois dele, e nenhuma fé nova nasceria. Maomé reconhecia vários outros profetas anteriores, incluindo Moisés e Jesus. Mas em sua revelação ele teve o privilégio de ser o último enviado.
Foi assim, resumidamente, que o guerreiro empedernido criou o islamismo, dominando a Arábia antes, e depois conquistando multidões além de suas fronteiras. A palavra de deus, que teria sido revelada aos poucos para Maomé, tomou o mundo através das espadas dos seus seguidores muçulmanos. Todos são iguais perante deus, segundo o profeta. Menos aqueles que não concordam com o Islã. Esses, no entendimento dele, merecem a morte!
quarta-feira, fevereiro 14, 2007
A Marcha da Insensatez
Rodrigo Constantino
O racha que o protestantismo representou para a Igreja Católica foi, em grande parte, causado pelos próprios papas durante um período de sessenta anos entre meados do século XV e começo do XVI. Ao menos esta é a tese da historiadora Barbara Tuchman, que dedica alguns capítulos do seu livro A Marcha da Insensatez ao assunto. Ela define a Renascença como o “período histórico em que os valores deste mundo passaram a suplantar os do além-túmulo”, lembrando que sob seu impulso “o indivíduo percebeu ser artífice e diretor do próprio destino, ao invés de atribuir esse mérito a Deus”. O comportamento de seis papas, que praticaram a insensatez da contumácia e da obstinação, abalaram a Santa Sé, conseguindo espatifar a unidade da Igreja, que perdeu quase a metade de seu rebanho para a cisão protestante.
Tuchman resume bem o que poderia estar por trás dessa insensatez: “Perseguindo os despojos do cargo como cães a farejar a caça, cada um dos seis papas, entre os quais um Bórgia e dois Médici, revelou-se totalmente dominado pela ambição de estabelecer a fortuna da família”. Os fiéis sentiam-se traídos com o abismo entre o que os agentes de Cristo deveriam parecer e o que realmente demonstravam ser. “A veemência com que se valorizavam as benesses da vida material significou abandono do ideal de renúncia cristã”, explica a autora. A miséria ocorrida no crepúsculo da Idade Média foi seguida por novos empreendimentos econômicos e artísticos que marcaram o período assinalado como Idade Moderna. Os papas não ficariam para trás, e tornaram-se grandes patronos das artes. Leonardo da Vinci enfeitava a corte de Ludovico Sforza em Milão e o teto da Capela Sistina era pintado por Miguel Ângelo. Como conclui Tuchman, “acreditavam que através da grandiosidade e beleza visíveis o papado cresceria em renome e a Igreja manteria seu domínio sobre os fiéis”.
O papa Sisto IV, eleito em 1471, “inaugurou uma fase de caça ao ganho pessoal e ao poder político de forma notória, despudorada, incansável”. O mais escandaloso de seus atos foi o envolvimento e possível instigação dos Pazzi no tocante à conspiração homicida contra os irmãos Médici. Aliado aos Pazzi, ele teria aprovado ou até tomado parte no obscuro negócio. Um papa assassino! Segundo Tuchman, ninguém lamentou sua morte, e Sisto IV deixou apenas descrédito no seu legado.
Em seguida se deu o papado de Inocêncio VIII, o primeiro papa que reconheceu publicamente seu filho, Francesco. A legitimação de filhos ou sobrinhos transformou-se em rotina para os papas da Renascença, outro princípio da Igreja jogado ao léu. A vice-chancelaria do papado de Inocêncio VIII ficou com o Cardeal Bórgia, que controlava a Cúria. Novos cargos para executivos apostólicos foram criados, com a exigência de remuneração dos que aspiravam aos postos. Foi estabelecido um departamento destinado à venda de favores e perdões a preços inflacionados. Quando perdões em lugar de aplicação da pena de morte em casos de homicídio e outros crimes nefandos foram questionados, o Cardel Bórgia defendeu a prática sob alegação de que “o Senhor deseja não a morte do pecador mas, ao contrário, que ele viva e pague”.
Inocêncio anunciou uma Cruzada numa bula de 1486, decretando, ao mesmo tempo, um dízimo a ser cobrado de todas as igrejas. A Guerra Santa já havia perdido a credibilidade neste época, quando o comércio com os infiéis provou ser lucrativo e os Estados italianos regularmente negociavam a ajuda do sultão em suas guerras uns contra os outros. Era intenção de Inocêncio usar Djem, O Grande Turco, como meio de guerra contra o sultão sob a vaga teoria de que Djem retiraria as forças turcas da Europa. Mas como diz Tuchman, “mesmo que tal coisa fosse verossímil, nunca ficou bem esclarecido de que forma significaria Guerra Santa a simples substituição de um muçulmano por outro muçulmano”.
Depois de servir sob cinco papas, tendo perdido a última eleição, Bórgia teria simplesmente comprado o papado diretamente de seus dois maiores rivais, os Cardeais Della Rovere e Ascanio Sforza. O papado de Alexandre VI, o título que usou, pode ser resumido na palavra depravação. Tinha amantes casadas, e sua ligação com uma garota quarenta anos mais jovem ofendeu o gosto dos italianos. Como a historiadora coloca, “os assuntos da família Bórgia conseguiam escandalizar uma época acostumada a todos os excessos”. O próprio papa teria dito, num momento de rara introspecção: “O mais atroz dos perigos para qualquer papa está no fato de que, cercado como vive, por lisonjeadores, jamais escuta verdades sobre sua pessoa e acaba por não querer mais escutá-las”. Em resumo, “os admiradores corrompem”, como dizia Nelson Rodrigues.
Na nova eleição, Giuliano della Rovere teria utilizado “tráfico de promessas” e propinas onde necessário, para trazer a seu campo vastas e antigas oposições, assegurando por fim a tiara papal. Com o título de Júlio II, pode ser considerado o papa guerreiro, tendo se engajado em anos de beligerância, conquistas e disputas. Vários papas depois dele manifestaram consternação pelo espetáculo do Santo Padre como guerreiro. Comandou uma ofensiva contra uma rebelião dos próprios cristãos, no feudo papal de Ferrara. Nada como a visão insólita de “um Vigário de Cristo na Terra aplicando-se em pessoa a dirigir uma guerra que ele próprio exigira, contra cristãos”. Na estátua que Miguel Ângelo fora incumbido de esculpir em sua homenagem, Júlio teria mandado colocar uma espada em vez de um livro na mão esquerda. Apesar de tudo, Júlio conseguiu deter o desmembramento do território papal, o que lhe valeu grande prestígio histórico, contando com a definição de “salvador da Igreja” em algumas enciclopédias. Nada é mencionado nestes livros sobre o fato de ter banhado de sangue seu país, ou sobre os seus lucros temporais com suas empreitadas violentas.
O penúltimo dos seis papas foi Leão X, cujo reinado foi intitulado por parte de seus apaniguados de “Idade de Ouro”, tamanha a quantidade de moedas que choviam em seus bolsos vindas de comissões, festividades e entretenimentos contínuos. O dinheiro não caía do céu, mas era tirado através de tributos cada vez maiores, extorsivos, cobrados pelos agentes papalinos. O ressentimento era crescente. Para atender suas despesas a chancelaria papal criou cerca de dois mil cargos a serem vendidos durante seu pontificado, incluindo a Ordem dos Cavalheiros de São Pedro. As pessoas mostraram-se cada vez mais indignadas com as incansáveis e extravagantes dívidas do papa, e para muitos, excluindo os dirigentes da Igreja, tornara-se evidente que o início da dissensão se aproximava.
Maquiavel chegou a constatar que “quanto mais se aproximam da Igreja de Roma, cabeça de nossa religião, menos religiosas as pessoas ficam”. Segundo Tuchman, “o abuso que precipitou a ruptura final materializou-se na comercialização de indulgências”. Um frade dominicano, Tetzel, chegou a anunciar em voz alta que tinha “os passaportes que levarão as almas às glórias celestiais do paraíso”. Com respeito aos já falecidos, dizia que “tão logo a moeda tilinta no vaso, a alma que ela está resgatando parte como uma flecha do purgatório diretamente ao paraíso”. Em resposta à campanha de Tetzel, Lutero pregou em 1517 suas famosas 95 teses na porta da igreja de Wittenberg, denunciando como sacrílego o ultraje das indulgências. As sementes do cisma já haviam sido plantadas.
O Cardeal Giulio, outro Médici, foi o último dos papas citados por Tuchman, sob o nome Clemente VII. Roma estava desmoralizada e em crise. Em 1527, os invasores hispano-germânicos romperam os muros e jorraram dentro da cidade. Durante semanas Roma “queimou em meio ao fedor de corpos insepultos destroçados pelos cães”. Os danos foram irreparáveis.
Barbara Tuchman conclui: “A insensatez dos papas não foi apenas a busca de políticas contraproducentes; foi, muito mais, a rejeição de uma tônica aceitável e coerente, quer política quer religiosa, que melhorasse o panorama geral do papado, evitando o crescente descontentamento”. Para ela, “grotesca extravagância e obsessiva busca de lucro pessoal se constituíram em segundo fator, de igual importância”. E por fim, “ilusão de permanência, da inviolabilidade do poder e do status, eis a terceira insensatez”. Resumindo, “essas três atitudes incompatíveis – indiferença ao crescente descontentamento dos fiéis, preocupação de auto-engrandecimento, ilusão de status invulnerável – caracterizam aspectos persistentes da insensatez”. E não custa lembrar que os religiosos, inclusive os papas, são apenas homens.
terça-feira, fevereiro 13, 2007
Fides et Ratio
Rodrigo Constantino
“So convenient a thing it is to be a reasonable creature, since it enables one to find or make a reason for everything one has a mind to do.” (Benjamin Franklin)
De todos os absurdos que observei nas reações passionais aos meus artigos sobre religião, o que mais me chocou foi a impressionante tentativa de alguns em inverter o fato de que a ciência está mais aberta à crítica que a religião. Que havia algum debate dentro do Cristianismo, é fato. Que dentro do suposto campo científico existe o “cientificismo”, um embuste que não respeita o método científico, é fato também. Mas chega a ser risível comparar a disponibilidade e estímulo ao debate dentro do campo científico com o que ocorre nas religiões de forma geral. Afinal, duvidar e questionar da própria fé já pode ser considerado pecado em alguns casos. Na ciência, como Popper sempre defendeu, as teorias pedem para ser refutadas, e o método científico consiste justamente nisso.
Será que Maomé pedia para ter seus dogmas questionados? Os muçulmanos, de forma geral, estão mais abertos ao debate crítico que a Royal Society? Será que os papas cristãos recebiam com satisfação duras críticas aos dogmas de sua fé? Não vamos esquecer que o mito do Pecado Original declara que o homem comeu o fruto proibido, da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Deus havia ameaçado Adão, sob pena de sofrer com sua ira. Nem mesmo a pergunta inocente do que era o bem e o mal agradara Deus. No Jardim do Éden não havia espaço para questionamentos e conhecimento humano. Não havia lugar para a razão! O castigo para o homem foi o trabalho, posto que ele teria que arrancar com seu suor o alimento da terra. Adão e Eva perderam a pureza, que por esta ótica, nada mais é que ignorância absoluta e obediência cega, sem questionamentos. Eis o que alguns consideram um estímulo ao debate aberto em busca do conhecimento verdadeiro!
Quem pode ignorar que a Igreja Católica criou a Inquisição e o Index Librorum Prohibitorum? Por acaso é uma postura adequada de quem defende o debate proibir a leitura de livros, sejam quais forem? Não parece a postura de ditadores socialistas que mandam queimar livros de autores liberais? Alguém imagina um cientista indo para a fogueira por questionar a teoria do “Big Bang”? Algum livro é vetado no meio científico, sob pena de punição para quem for pego com ele? O objetivo do Index era prevenir a corrupção dos fiéis. E isto pode ser comparado com a postura dos cientistas, por acaso? Isso lembra Hitler proibindo o livro de Mises, isso sim!
Olavo de Carvalho, um dos que inverte a postura entre a religião e a ciência, minimiza a polêmica, afirmando em um debate do Orkut que “toda e qualquer organização tem o estrito direito de exigir que nas suas escolas seja ensinada a sua doutrina e não outra qualquer”. Ou seja, para ele “não há nenhuma intolerância nisso”, já que “o Index é precisamente isso, nada mais”. Nada mais? Um índice de livros proibidos que durou até a metade do século XX não é nada demais e nem demonstra intolerância ao debate? Em 1948 ainda existiam cerca de quatro mil livros proibidos. Não é censura? Não é espantoso que autores como Galileu, Copérnico, Maquiavel, Erasmo de Roterdã, Espinosa, Locke, Pascal, Hobbes, Descartes, Rousseau, Montesquieu, Hume, Voltaire, Victor Hugo e Kant tenham pertencido a lista? Não é uma evidência de que o obscurantismo andava lado a lado com a fé dogmática? Curiosamente, o famoso livro de Hitler, Mein Kampf, nunca fez parte do Index, lembrando que Hitler se considerava cristão.
O falecido Papa João Paulo II, cuja postura era admirável em vários aspectos, tentou conciliar a fé e a razão na Encíclica Fides et Ratio. Não convenceu, na minha opinião. Em determinado trecho, ele diz: "As vias para chegar à verdade continuam a ser muitas: mas, dado que a verdade cristã tem valor salvífico, cada uma delas só pode ser percorrida se conduzir à meta final, ou seja, à revelação de Jesus Cristo". Ora, vários métodos da busca da verdade são possíveis contanto que todos eles levem à revelação de Cristo? Isso me parece mais uma racionalização de emoções já existentes. O indivíduo sente algo, acredita em algo a priori, e parte para uma tentativa de justificar esta crença buscando coisas que confirmem o que ele deseja que seja verdade. Isso é bem diferente da postura científica séria, onde os cientistas honestos partem de uma tese e tentam buscar dados que contradigam-na. A mente humana costuma buscar confirmações para aquilo que já acreditava antes. Poucos são os que realmente desafiam suas crenças, procurando justamente aquilo que possa derrubá-las, provar seus erros. Não pode restar muita dúvida de que é na ciência, mesmo com seus defeitos, que encontramos com maior freqüência esta postura e este método, enquanto nas religiões vemos, normalmente, a necessidade de acreditar falando mais alto que o desejo de realmente conhecer.
segunda-feira, fevereiro 12, 2007
A Escola de Salamanca
Rodrigo Constantino
Em recentes artigos, alguns podem ter ficado com a errada impressão de que condeno de forma generalizada qualquer religioso já por ser religioso. Não é verdade. Sim, eu considero o fanatismo religioso extremamente perigoso e uma das maiores ameaças à liberdade. Sim, eu considero prepotente a alegação de que existe a verdade sobre as grandes questões e esta foi revelada por um messias qualquer. Sim, eu penso que a paixão que o tema desperta muitas vezes funciona como uma catraca no cérebro, impedindo um raciocínio claro e objetivo e levando ao repúdio de qualquer questionamento ou crítica. Sim, eu vejo que existem muitos embusteiros no meio religioso em busca de poder e riqueza à custa da ignorância alheia. O próprio fato da Igreja Católica ser tão rica materialmente falando incomoda. Mas não considero tudo que sai das religiões algo ruim, nem de perto.
Em resumo, condeno o fanatismo religioso, a hipocrisia muitas vezes presente no meio religioso e a crença de que a fé pode ser objetiva, e não subjetiva. Mas reconheço o lado bom das religiões, assim como o fato de grandes homens terem sido religiosos. Aliás, tenho um parente próximo que é padre, e uma excelente pessoa. Convivemos bem com as divergências sobre o assunto, pois ele não é um fanático. E para fazer justiça e não deixar também a imagem de que condeno qualquer pessoa religiosa – o que está longe da verdade – pretendo tratar neste artigo da enorme e muitas vezes desconhecida influência que a Escola de Salamanca exerceu na Escola Austríaca, a que mais admiro no mundo econômico.
Os precursores intelectuais da moderna Escola Austríaca foram, na maioria, dominicanos e jesuítas, professores de moral e teologia em universidades que constituíram os focos mais importantes do pensamento durante o Século de Ouro espanhol. Uma detalhada análise encontra-se no livro Escola Autríaca de Jesús Huerta de Soto. Já em 1555, o bispo Diego de Covarrubias expôs melhor que ninguém a teoria subjetiva do valor, afirmando que “o valor de uma coisa não depende da sua natureza objetiva mas antes da estimação subjetiva dos homens, mesmo que tal estimação seja insensata”. O estudo de Covarrubias, cujo título era Veterum collatio numismatum, é citado por Carl Menger nos seus Princípios de Economia Política. Menger é considerado o fundador da Escola Austríaca.
Este foco subjetivista iniciado por Covarrubias tem continuidade por outro escolástico, Luis Saraiva de La Calle, que definiu a relação entre custos e preços já naquela época, mostrando que os custos é que tendem a seguir os preços e não o contrário. Isso seria a antecipação da refutação que Menger faria da teoria objetiva do valor, que passaria a ser o ícone da teoria de exploração marxista.
Outra notável contribuição dos escolásticos foi a introdução do conceito dinâmico de concorrência, entendida como “o processo empresarial de rivalidade que move o mercado e impulsiona o desenvolvimento da sociedade”, segundo Huerta de Soto. Este viria a ser o coração da teoria do mercado da Escola Austríaca, contrastando com o modelo de equilíbrio de concorrência perfeita ou monopolística dos neoclássicos. Os preços de equilíbrio, portanto, não poderiam ser conhecidos, e isso derrubava a teoria de planejamento rígido defendida pelos socialistas. As contribuições dos cardeais jesuítas espanhóis Juan de Lugo e Juan de Salas também merecem destaque. O primeiro, já em 1643 havia concluído que o preço de equilíbrio depende de uma quantidade tão grande de circunstâncias que apenas Deus pode conhecer. O segundo afirma que apenas Deus pode ponderar e compreender exatamente toda a informação e conhecimento usados no processo de mercado pelos agentes econômicos. As mais refinadas contribuições de Mises e Hayek sobre a teoria do conhecimento estavam então sendo antecipadas no século XVII.
O princípio da preferência temporal, um dos elementos essenciais da Escola Austríaca, fora mencionada por Martín de Azpilcurta em 1556. Ele diz que, tudo o mais constante, os bens presentes são sempre mais valorizados do que os bens futuros. Azpilcurta tomou emprestado este conceito de um dos discípulos de Tomás de Aquino, Giles de Lessines, que já em 1285 havia afirmado que “os bens futuros não são tão valorizados como os mesmos bens disponíveis de imediato”. Complicado é entender isso e condenar a usura, como tantos religiosos fizeram.
O trabalho do padre Juan de Mariana, intitulado De monetae mutatione, publicado em 1605, critica a política seguida pelos governantes da sua época de baixar de forma deliberada o valor da moeda, embora não utilize o termo “inflação”, desconhecido então. Mariana critica também a política de estabelecimento de um preço máximo para lutar contra os efeitos da inflação. Ele refere-se ao governo como um cego tentando guiar aquele que vê. E ainda sobre a contribuição à questão monetária, Luis de Molina foi o primeiro teórico a salientar que os depósitos e o dinheiro bancário em geral, que ele denomina em latim chirographis pecuniarum, é parte integrante, da mesma forma que o dinheiro em espécie, da oferta monetária.
Huerta de Soto conclui que “os escolásticos espanhóis do Século de Ouro foram já capazes de articular o que depois viriam a ser os princípios mais importantes da Escola Austríaca de Economia”. Como fica claro, ainda mais para um profundo entusiasta do brilhantismo da Escola Austríaca, os religiosos ofereceram ao mundo muitas coisas boas também. Isso nunca deve ser negado apenas para atacar os frutos podres – que existiram, e aos montes. Este tipo de atitude é desonesta, típica de bandos coletivistas que consideram tudo fora de sua seita terrível. Como fazem alguns religiosos fanáticos, que jogam no mesmo saco os ateístas e os comunistas, como se os horrores destes fossem conseqüência inexorável da descrença na divindade, ou como se todo ateu fosse comunista, ignorando a enorme quantidade de excelentes liberais ateus ou agnósticos.
Os desonestos ignoram convenientemente que uma das maiores influências do comunismo foi um fervoroso cristão católico, Thomas More, cuja obra Utopia estimulou vários comunistas. Afinal, para os crentes fanáticos, o primeiro e muitas vezes único critério de julgamento de valor é a crença religiosa, ainda que muitos crentes sejam pérfidos e muitos ateus sejam honestos. Para aqueles que não são fanáticos, no entanto, não há mal algum em reconhecer que existiram muitos ateus terríveis, como os comunistas (ainda que possamos considerar o comunismo uma seita religiosa, com puro misticismo como pilar de sustentação), e muitos religiosos terríveis também. Por outro lado, vários ateus são ótimas pessoas, assim como vários religiosos. E é neste grupo que devemos incluir os membros da Escola de Salamanca, com espetacular contribuição para o pensamento moderno.
Resposta a Olavo
Rodrigo Constantino
Meu artigo sobre o fanatismo religioso, inspirado em Voltaire, despertou passionais reações, como era de se esperar. Seguidores do filósofo Olavo de Carvalho, em uma comunidade do Orkut, preferiram me xingar de adjetivos tão chulos que não vem ao caso repeti-los. Nivaldo Cordeiro escreveu um artigo também me atacando, como o título deixa claro: “O Bestialógico do Constantino”. Mas não atacou meus argumentos. Após algum tempo só de agressões na comunidade do Olavo, resolveram chamar o próprio “mestre”, e foi quando ele entrou também me agredindo, e apelando à autoridade o tempo todo, apenas repetindo que era impossível debater com um ignorante como eu. Agora, resolveu responder através de um artigo no seu site, o qual pretendo comentar brevemente aqui.
Antes disso, entretanto, creio ser útil para o leitor ter uma noção melhor do tipo de reação de Olavo, que garantiu não ter reagido de forma emocional, citando algumas de suas frases direcionadas à minha pessoa: “Pare de blefar, moleque idiota”; “Não dá para discutir com o ignorante completo”; “Será bom para mostrar aos demais que tipo de lixo falante é esse pirralho desprezível”; “É esse o merda que quer me ensinar a debater?”; “Não odeio uma casca de banana quando escorrego nela, nem um bostinha metido a intelectual quando o mando de volta para a escolinha maternal”. Esta é a postura adequada de um filósofo? Enquanto isso, Olavo diz que Karl Popper não é referência séria para a filosofia. Faz sentido. E não custa lembrar que fui colunista do Mídia Sem Máscara por muito tempo, site de Olavo. Estranho ele oferecer tanto espaço para um “bostinha”. Mas eis o efeito na mudança de opinião que a religião pode gerar.
Olavo disse que responderia aos absurdos históricos levantados por Voltaire, mas não o fez. Em seu lugar, preferiu desqualificar o autor, afirmando que sua obra é considerada por muitos um embuste. As citações de Voltaire, abordadas em meu artigo, permanecem sem resposta. Por exemplo: é ou não é questionável se Moisés de fato existiu? O que falam sobre ele não parece pura fantasia? Não existiam histórias similares na Arábia, que podem ter influenciado a dos judeus? Davi não cometeu mesmo os crimes citados? Não existe um Evangelho que poderia levar a crer que Jesus era filho de Mirja numa relação adúltera? É falso que consta um milagre atribuído a Cristo de expulsar os demônios para porcos numa região onde não existiam porcos? É mentira que os Evangelhos hoje considerados apócrifos eram citados pelos primeiros padres? Seria mentira que os exorcizados eram pessoas mais ignorantes e humildes, como ocorre hoje na Igreja Universal? Voltaire mente ao falar sobre o período de Diocleciano, onde os cristãos não foram perseguidos, ao menos no começo, e ainda criaram uma rica igreja? Constantino matou ou não sua própria mulher? Consta ou não nos relatos da Igreja como foi feita a escolha dos Evangelhos aceitos no Concílio de Nicéia? Enfim, quais das citações históricas de Voltaire são absurdas? Olavo não diz. Apenas desqualifica a obra inteira, sem especificar onde residem os erros.
Olavo discorda veementemente da minha afirmação de que a ciência pede para ser desafiada e refutada, como justamente ensina Popper, enquanto a religião costuma mandar aceitar com fé sem muitos questionamentos. Ele diz: “Desde os seus primórdios, a religião cristã sempre se abriu à discussão, como o evidenciam os escritos dos primeiros padres, quase todos eles compostos em resposta aos críticos da nova fé ou a divergências internas quanto ao seu significado”. Alguém consegue mesmo sustentar que é absurda a afirmação de que a ciência, mesmo com seus erros, é mais aberta às críticas que a religião? Alguém consegue imaginar cientistas em geral agindo da mesma forma que os crentes religiosos? É mesmo preciso responder essa inversão “olaviana” de que a religião é que pede críticas e questionamentos enquanto a ciência exige fé e boca calada?
Olavo não chega a defender a Inquisição, mas luta com afinco para justificá-la e reduzir suas atrocidades, afirmando que era normal ter um índice de livros proibidos (não vejo isso na ciência) e que heresia “significa uma doutrina não católica ou anticatólica pregada dentro da Igreja por alguém que continua a intitular-se membro dela e a desfrutar da sua proteção”. Ou seja, nada demais! Alguém consegue imaginar um cientista indo para a fogueira por questionar a teoria do “Big Bang”? Olavo diz: “Em termos quantitativos, a perseguição religiosa no Ocidente cristão não tem comparação possível com a sangueira desmedida inaugurada pela Revolução Francesa”. Ora, eu condeno ambos! Os jacobinos não têm qualquer semelhança com os verdadeiros liberais. Seus crimes inocentam os da Igreja? Notei que os aliados de Olavo insistiam o tempo todo em atrelar o ateísmo ao comunismo, e sempre que as barbaridades da Igreja vinham à tona, bastava acusar os ateus de crimes mais bárbaros ainda. Não creio que uma coisa justifique a outra, tampouco é razoável alguém associar todos os ateus aos comunistas. Os comunistas foram bárbaros porque eram comunistas, não por serem ateus. Essa falácia é tão absurda quanto condenar toda a fé religiosa por causa de Bin Laden. Dois pesos, duas medidas.
Por fim, Olavo diz que é possível debater o assunto religião somente com a mesma erudição dele, e profundo conhecimento. Pergunto então: por que tantos crentes são ignorantes? Esses sabem das coisas e podem debater o assunto? Na verdade, não importa o grau de leitura, certas perguntas podem e devem ser feitas por qualquer leigo, e merecem resposta. Se estas não existem, então o melhor é admitir a ignorância, mesmo com tanta erudição. Por exemplo: Jesus foi mesmo Deus em pessoa? Ora, como esperam provar isso? Se era o Messias, por que não podemos levar suas palavras ao pé da letra? Deus iria desejar confusão entre os homens, já que a ambigüidade de suas mensagens geraram tantas fações distintas de sua seita? Se existem diferentes interpretações para a Bíblia, então não é apenas a razão humana que irá determinar o correto? Como explicar as contradições do “livro sagrado” sem usar o livre-arbítrio humano? É crível que uma virgem realmente deu a luz a um filho de Espírito Santo? Fazer este tipo de questionamento não exige doutorado de teologia, apenas bom senso. E parece muita presunção assumir que a resposta é conhecida. Eis a postura de fanáticos. Os muçulmanos fundamentalistas também têm certeza de que encontraram a única verdade sobre o assunto. E ai de quem discordar...
Meu único interesse com o tema religioso é mantê-lo no seu devido lugar, ou seja, na esfera pessoal, no foro íntimo de cada um. Pois fé é algo subjetivo. E o perigo começa justamente quando alguns pensam que é algo objetivo, e que basta umas leituras para resolver de uma vez por todas as questões que atormentam a humanidade desde os primórdios. É uma perigosa arrogância. Como disse Mises, o Liberalismo limita sua preocupação exclusivamente com objetos desse mundo, enquanto o reino da religião é de outro mundo. Liberalismo e religião podem conviver lado a lado, pois o liberal proclama tolerância para qualquer crença religiosa. Isso leva à paz, que fica ameaçada justamente quando os crentes começam a tratar um tema tão subjetivo assim com presunçosa objetividade, alegando que apenas os ignorantes não enxergam as roupas do imperador. A reação passional de muitos admiradores de Olavo, e do próprio, apenas corrobora com isso. Foi uma grande decepção. Ainda que esperada, de certa forma. Como muitos sabem, Olavo já foi comunista. Pelo que me parece, ele trocou o deus, mas não mudou o fanatismo.