Rodrigo Constantino
“Não é possível discutir racionalmente com alguém que prefere matar-nos a ser convencido pelos nossos argumentos.” (Karl Popper)
O filósofo Bertrand Russell definiu a obra-prima de Sir Karl Popper, A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, como “um trabalho cuja importância é de primeira linha e que deve ser largamente lido por sua crítica de mestre aos inimigos da democracia, antigos e modernos”. O livro faz um ataque contundente a Platão, assim como uma análise mortal de Hegel e Marx. Creio que um dos grandes valores do livro é levar o debate político para a divisão entre coletivistas e individualistas, ao invés de esquerda e direita. Popper combate duramente os autoritários coletivistas, independente do espectro político. Seu foco é a transição da sociedade tribal, ou sociedade fechada, para uma sociedade aberta. Na primeira, há uma submissão às forças mágicas, enquanto a última “põe em liberdade as faculdades críticas do homem”.
Um dos maiores inimigos da sociedade aberta é o historicismo. Para Popper, “o futuro depende de nós mesmos, e nós não dependemos de qualquer necessidade histórica”. Os historicistas, ao contrário, acreditam ter descoberto leis históricas que permitem profecias sobre o curso dos acontecimentos históricos. Os homens não seriam donos do próprio destino, segundo esses pensadores. Esta postura alivia os homens do ônus de suas responsabilidades, pois não importa o que façam, o futuro já está definido. Como exemplo está a doutrina do “povo escolhido”, ou o determinismo econômico de Marx. A doutrina historicista costuma ser profética, conduzindo à rejeição da aplicabilidade da ciência e da razão aos problemas da vida social. Em última instância, é a doutrina do poder, da dominação e da submissão.
Como sinônimo desse modelo, temos o tribalismo, ou seja, “a ênfase sobre a suprema importância da tribo, sem a qual o indivíduo nada é em absoluto”. O coletivismo, seja ele de classe, raça, credo ou nação, fica acima do indivíduo, que nada significa. Esse tribalismo tem como traço marcante uma rigidez social, sendo a vida determinada por tabus sociais e religiosos. Cada um tem seu lugar definido, um lugar “natural”, que lhe foi destinado pelas forças que regem o mundo. A sociedade ideal de Platão, exposta em A República, atesta isso, defendendo a divisão entre castas. Popper diz: “Em combinação com a idéia historicista de um destino inexorável encontramos freqüentemente um elemento de misticismo”. Popper demonstra aberta hostilidade para com o historicismo, convicto de que ele é “fútil, senão pior do que isso”. Com base na tradição tribal coletivista, as instituições não deixam campo à responsabilidade pessoal. Essa sociedade mágica, tribal ou coletivista seria a sociedade fechada, enquanto uma sociedade aberta ou democrática seria aquela “em que os indivíduos são confrontados com decisões pessoais”. Platão, ao ir contra tudo isso segundo a leitura de Popper, foi tachado por este de “partidário do totalitarismo”. *
Para Popper, a transição da sociedade fechada para a aberta “pode ser descrita como uma das mais profundas revoluções por que passou a humanidade”. O comércio seria um dos maiores perigos para a sociedade fechada, forçando sua abertura. Por isso vemos tanta hostilidade ainda hoje, por parte dos coletivistas, em relação ao comércio global. A queda da sociedade fechada gera tensões, criadas pelo esforço que a vida em uma sociedade aberta continuamente exige, através da necessidade de ser racional, de cuidar de nós mesmos e de aceitar responsabilidades. A comunidade tribal é o refúgio dos receosos, o lugar de segurança contra os “inimigos hostis”, o desconhecido. Seria o análogo a uma família para uma criança, que sabe qual papel deve desempenhar, já que lhe é imposto.
Na Guerra do Peloponeso, entre Esparta e Atenas, Popper encontra o berço dessa transição, com os espartanos representando a vida tribal e os atenienses esboçando uma abertura ao indivíduo livre e racional. Entre os princípios da política espartana estavam a proteção contra as influências estrangeiras que pudessem pôr em perigo a rigidez dos tabus tribais, a independência do comércio externo, o anti-universalismo de não se misturar com os inferiores e a dominação dos vizinhos. Em Atenas, ao contrário, vários pensadores já defendiam os pilares básicos da sociedade aberta, com uma nova fé na razão, na liberdade e na fraternidade dos homens. Para Popper, esta é a única possível fé da sociedade aberta. Seus principais inimigos são justamente os misantropos e os detratores da razão humana. Aqueles que sonham com uma unidade, beleza e perfeição, com um coletivismo utópico, demonstram um sintoma do espírito de grupo do tribalismo. “Nunca podemos retornar à alegada inocência e beleza da sociedade fechada”, afirma Popper. O sonho de um céu não pode ser realizado na terra.
Quando começamos a confiar em nossa razão, a usar nossos poderes de crítica, “não poderemos retornar a um estado de submissão implícita à magia tribal”. O paraíso está perdido para aqueles que experimentaram da Árvore do Conhecimento. Uma tentativa de regressar à Idade de Ouro leva à Inquisição, à Polícia Secreta e a um banditismo romantizado. Popper diz: “Não há mais volta possível a um estado harmonioso da natureza; se voltarmos, então deveremos refazer o caminho integral – devemos retornar às bestas”. Para permanecermos humanos, só existe o caminho da sociedade aberta. Popper conclui: “Devemos marchar para o desconhecido, o incerto e o inseguro, utilizando a razão de que pudermos dispor para planejar tanto a segurança como a liberdade”.
* Platão, em A República, traça o que seria o Estado ideal, ainda que não exeqüível na prática. Há um claro viés coletivista, colocando os indivíduos como nada mais que instrumentos para a felicidade da “República”. Caberia aos sábios determinar as regras, aniquilando as escolhas individuais. Normalmente, o coletivista parte do pressuposto que ele estará sempre do lado legislador, criando as regras e decidindo o rumo da felicidade alheia. Temos passagens bastante autoritárias no livro: “Deixaremos ao cuidado dos magistrados regular o número dos casamentos, de forma que o número dos cidadãos seja sempre, mais ou menos, o mesmo, suprindo os claros abertos pelas guerras, enfermidades e vários acidentes, a fim de que a república nunca se torne nem demasiado grande nem demasiado pequena”. Ou ainda: “Os filhos bem nascidos serão levados ao berço comum e confiados a amas de leite que terão habitações à parte em um bairro da cidade. Quanto às crianças enfermiças e às que sofrerem qualquer deformidade, serão levadas, como convém, a paradeiro desconhecido e secreto”. O ataque contra a liberdade individual não acaba por aí: “As mulheres gerarão filhos desde os vinte até os quarenta anos; os homens logo depois de passado o primeiro fogo de juventude, até os cinqüenta e cinco”. Platão foi muito além, defendendo o fim das propriedades dos guerreiros, e deixando todas as decisões importantes para os poucos sábios. Essa outra passagem deixa claro que a República estaria muito acima, em grau de importância, dos indivíduos: “Assim, em nossa República, quando ocorrer algo de bom ou de mau a um cidadão, todos dirão a um tempo meus negócios vão bem ou meus negócios vão mal”. Tamanho coletivismo iria influenciar a Utopia de Thomas More, assim como Cidade do Sol, de Tommaso Campanella. Tais idéias, quando tentadas na prática, resultaram no infeliz experimento soviético.
“Não é possível discutir racionalmente com alguém que prefere matar-nos a ser convencido pelos nossos argumentos.” (Karl Popper)
O filósofo Bertrand Russell definiu a obra-prima de Sir Karl Popper, A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, como “um trabalho cuja importância é de primeira linha e que deve ser largamente lido por sua crítica de mestre aos inimigos da democracia, antigos e modernos”. O livro faz um ataque contundente a Platão, assim como uma análise mortal de Hegel e Marx. Creio que um dos grandes valores do livro é levar o debate político para a divisão entre coletivistas e individualistas, ao invés de esquerda e direita. Popper combate duramente os autoritários coletivistas, independente do espectro político. Seu foco é a transição da sociedade tribal, ou sociedade fechada, para uma sociedade aberta. Na primeira, há uma submissão às forças mágicas, enquanto a última “põe em liberdade as faculdades críticas do homem”.
Um dos maiores inimigos da sociedade aberta é o historicismo. Para Popper, “o futuro depende de nós mesmos, e nós não dependemos de qualquer necessidade histórica”. Os historicistas, ao contrário, acreditam ter descoberto leis históricas que permitem profecias sobre o curso dos acontecimentos históricos. Os homens não seriam donos do próprio destino, segundo esses pensadores. Esta postura alivia os homens do ônus de suas responsabilidades, pois não importa o que façam, o futuro já está definido. Como exemplo está a doutrina do “povo escolhido”, ou o determinismo econômico de Marx. A doutrina historicista costuma ser profética, conduzindo à rejeição da aplicabilidade da ciência e da razão aos problemas da vida social. Em última instância, é a doutrina do poder, da dominação e da submissão.
Como sinônimo desse modelo, temos o tribalismo, ou seja, “a ênfase sobre a suprema importância da tribo, sem a qual o indivíduo nada é em absoluto”. O coletivismo, seja ele de classe, raça, credo ou nação, fica acima do indivíduo, que nada significa. Esse tribalismo tem como traço marcante uma rigidez social, sendo a vida determinada por tabus sociais e religiosos. Cada um tem seu lugar definido, um lugar “natural”, que lhe foi destinado pelas forças que regem o mundo. A sociedade ideal de Platão, exposta em A República, atesta isso, defendendo a divisão entre castas. Popper diz: “Em combinação com a idéia historicista de um destino inexorável encontramos freqüentemente um elemento de misticismo”. Popper demonstra aberta hostilidade para com o historicismo, convicto de que ele é “fútil, senão pior do que isso”. Com base na tradição tribal coletivista, as instituições não deixam campo à responsabilidade pessoal. Essa sociedade mágica, tribal ou coletivista seria a sociedade fechada, enquanto uma sociedade aberta ou democrática seria aquela “em que os indivíduos são confrontados com decisões pessoais”. Platão, ao ir contra tudo isso segundo a leitura de Popper, foi tachado por este de “partidário do totalitarismo”. *
Para Popper, a transição da sociedade fechada para a aberta “pode ser descrita como uma das mais profundas revoluções por que passou a humanidade”. O comércio seria um dos maiores perigos para a sociedade fechada, forçando sua abertura. Por isso vemos tanta hostilidade ainda hoje, por parte dos coletivistas, em relação ao comércio global. A queda da sociedade fechada gera tensões, criadas pelo esforço que a vida em uma sociedade aberta continuamente exige, através da necessidade de ser racional, de cuidar de nós mesmos e de aceitar responsabilidades. A comunidade tribal é o refúgio dos receosos, o lugar de segurança contra os “inimigos hostis”, o desconhecido. Seria o análogo a uma família para uma criança, que sabe qual papel deve desempenhar, já que lhe é imposto.
Na Guerra do Peloponeso, entre Esparta e Atenas, Popper encontra o berço dessa transição, com os espartanos representando a vida tribal e os atenienses esboçando uma abertura ao indivíduo livre e racional. Entre os princípios da política espartana estavam a proteção contra as influências estrangeiras que pudessem pôr em perigo a rigidez dos tabus tribais, a independência do comércio externo, o anti-universalismo de não se misturar com os inferiores e a dominação dos vizinhos. Em Atenas, ao contrário, vários pensadores já defendiam os pilares básicos da sociedade aberta, com uma nova fé na razão, na liberdade e na fraternidade dos homens. Para Popper, esta é a única possível fé da sociedade aberta. Seus principais inimigos são justamente os misantropos e os detratores da razão humana. Aqueles que sonham com uma unidade, beleza e perfeição, com um coletivismo utópico, demonstram um sintoma do espírito de grupo do tribalismo. “Nunca podemos retornar à alegada inocência e beleza da sociedade fechada”, afirma Popper. O sonho de um céu não pode ser realizado na terra.
Quando começamos a confiar em nossa razão, a usar nossos poderes de crítica, “não poderemos retornar a um estado de submissão implícita à magia tribal”. O paraíso está perdido para aqueles que experimentaram da Árvore do Conhecimento. Uma tentativa de regressar à Idade de Ouro leva à Inquisição, à Polícia Secreta e a um banditismo romantizado. Popper diz: “Não há mais volta possível a um estado harmonioso da natureza; se voltarmos, então deveremos refazer o caminho integral – devemos retornar às bestas”. Para permanecermos humanos, só existe o caminho da sociedade aberta. Popper conclui: “Devemos marchar para o desconhecido, o incerto e o inseguro, utilizando a razão de que pudermos dispor para planejar tanto a segurança como a liberdade”.
* Platão, em A República, traça o que seria o Estado ideal, ainda que não exeqüível na prática. Há um claro viés coletivista, colocando os indivíduos como nada mais que instrumentos para a felicidade da “República”. Caberia aos sábios determinar as regras, aniquilando as escolhas individuais. Normalmente, o coletivista parte do pressuposto que ele estará sempre do lado legislador, criando as regras e decidindo o rumo da felicidade alheia. Temos passagens bastante autoritárias no livro: “Deixaremos ao cuidado dos magistrados regular o número dos casamentos, de forma que o número dos cidadãos seja sempre, mais ou menos, o mesmo, suprindo os claros abertos pelas guerras, enfermidades e vários acidentes, a fim de que a república nunca se torne nem demasiado grande nem demasiado pequena”. Ou ainda: “Os filhos bem nascidos serão levados ao berço comum e confiados a amas de leite que terão habitações à parte em um bairro da cidade. Quanto às crianças enfermiças e às que sofrerem qualquer deformidade, serão levadas, como convém, a paradeiro desconhecido e secreto”. O ataque contra a liberdade individual não acaba por aí: “As mulheres gerarão filhos desde os vinte até os quarenta anos; os homens logo depois de passado o primeiro fogo de juventude, até os cinqüenta e cinco”. Platão foi muito além, defendendo o fim das propriedades dos guerreiros, e deixando todas as decisões importantes para os poucos sábios. Essa outra passagem deixa claro que a República estaria muito acima, em grau de importância, dos indivíduos: “Assim, em nossa República, quando ocorrer algo de bom ou de mau a um cidadão, todos dirão a um tempo meus negócios vão bem ou meus negócios vão mal”. Tamanho coletivismo iria influenciar a Utopia de Thomas More, assim como Cidade do Sol, de Tommaso Campanella. Tais idéias, quando tentadas na prática, resultaram no infeliz experimento soviético.
Leia o Jornalóide se você tiver estômago forte!
ResponderExcluirCreio mesmo que o caminho é fundamentar as questo~es político-ideológicas entre coletivismo e individualismo. Ficando assim a nossa "esquerda" e a "direita conservadora" no mesmo grupo dos coletivistas.
ResponderExcluirPerfilo-me em seu ângulo de approuch.
ResponderExcluirPopper é incisivo no ataque ao pederasta grego. Mais ainda Kelsen. Recomendo a Ilusão da Justiça.
Enquanto isso, conheça ALLmirante.blogspot.com.
Aquele abraço.
Com licença, estou procurando seu E-mail para reclamar sobre uma imagem que você usa em seu blog, sem dar os devidos créditos a autora, aguardo resposta.
ResponderExcluirMaurício,
ResponderExcluirEsse é um blog pessoal sem fins lucrativos. Normalmente eu procuro alguma foto ligada ao assunto no Google mesmo e colo. Diga qual a foto que se vc desejar eu mudo ou dou os devidos créditos. Não fiz por mal.
Rodrigo