quinta-feira, março 27, 2008

As Seqüelas da Crise



Rodrigo Constantino

"Se a incoordenação social da liberdade econômica é um defeito, maior, socialmente, é o defeito que nasce de essa liberdade se coordenar." (Fernando Pessoa)

Quando a economia americana entrou em depressão na década de 1930, uma das conseqüências mais negativas de longo prazo foi a crença amplamente disseminada de que a culpa estava no livre mercado, e não na hiperatividade do próprio governo. Tal mito foi responsável por um aumento assustador da intervenção estatal na economia, com graves resultados para o país. O New Deal foi visto por muitos como a salvação, ignorando-se os efeitos perversos dessa política ao longo do tempo. Os maiores gastos estatais foram causa da elevada inflação que assolou a nação depois, assim como o excesso de intervenção prejudicou a economia. A maioria era míope demais para enxergar esses efeitos, separados por décadas em alguns casos. Os economistas da Escola Austríaca faziam parte da minoria que era capaz de fazer a ligação causal lógica entre as medidas e os efeitos. Porém, tal como Cassandra, eram vítimas da maldição de que podiam ver melhor os perigos, mas não seriam escutados.

Na crise atual dos Estados Unidos, há o mesmo risco. A crise, por si só, já cobra um elevado preço, gerando perdas bilionárias, risco de desemprego e recessão. Tais são os efeitos nefastos no curto prazo. No entanto, existe um risco grande de mais longo prazo, que é a mentalidade mudar e demandar mais governo. Muitos correm o risco de sucumbir novamente à crença falsa de que foi o livre mercado o responsável pela crise, e que cabe ao governo "clarividente" evitar tais riscos no futuro, através de maior intervenção e regulação. Até mesmo o bom economista Martin Wolf, economista-chefe do Financial Times, aderiu a esta tese. Eis como ele começou seu artigo sobre o resgate do Bear Stearns: "Lembre a sexta-feira, 14 de março de 2008: foi o dia em que o sonho de um capitalismo de livre mercado morreu". Wolf parece ter perdido a confiança no poder de autoterapia do mercado. Para ele, os Estados Unidos "estão mostrando os limites da desregulamentação". Mas será que é isso mesmo?

Felizmente, nem todos aceitam este diagnóstico. A respeitada revista britânica The Economist fez um excelente relatório sobre a crise atual, e afirmou que a crítica de que esta crise é o produto da desregulamentação no setor financeiro ignora um ponto importante: os piores excessos na bagunça das securitizações ocorreram precisamente onde a regulamentação pretendia proteger os bancos e investidores dos perigos do crescimento de crédito descontrolado. As regulamentações oferecem não apenas proteção, mas caminhos inteligentes para se ganhar dinheiro as contornando. As regras que exigem capital adequado para ativos também criam incentivos para que os bancos criem mecanismos que livrem os ativos dessa necessidade. As centenas de bilhões de dólares nos mecanismos mais "cinzentos" como SIVs foram resultado dessa tentativa de fugir das regras. As agências de risco também sofrem a pressão de incentivos perversos. A obrigação legal de vários fundos de pensão de investir somente em títulos com rating máximo criou distorções nos preços dos bonds, que puderam ser exploradas com elevados ganhos enquanto a festa durou.

Em resumo, muitas regras criadas pelo próprio governo acabam gerando efeitos indesejáveis, pois o mercado vai se ajustando e explorando as oportunidades que surgem pela intervenção arbitrária do governo. Além disso, a política de juros baixos adotada pelo Federal Reserve no passado pode ter contribuído para lançar lenha na fogueira, estimulando uma busca mais irresponsável por maiores retornos. Alan Greenspan teria sua parcela de culpa, ainda que seja um grande defensor, na teoria, da flexibilização dos mercados e redução da intervenção estatal na economia. O Fed de Bernanke está novamente hiperativo na tentativa de evitar o pior. O dólar acusa o golpe, perdendo valor frente às demais moedas, e uma nova bolha pode ser incentivada com essas medidas. Mas um dos grandes riscos existentes hoje é o retorno da descrença em relação ao livre mercado, depositando-se uma fé tola nos agentes do governo, que são seres humanos falhos também, e sob mecanismos inadequados de incentivos. Aqueles que ingenuamente encaram o governo como uma espécie de deus, capaz de resolver todas as falhas do mercado, ignoram tanto a lógica econômica como as evidências empíricas. O excesso de intervenção estatal na economia é um grande veneno. A atração dos leigos pela cicuta pode ser uma das grandes seqüelas desta crise.

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