Idéias de um livre pensador sem medo da polêmica ou da patrulha dos "politicamente corretos".
quarta-feira, março 09, 2011
As penas do desejo
Rodrigo Constantino
A liberdade de expressão só existe de fato quando são livres para se expressar pensadores cujas idéias entram em confronto com àquelas estabelecidas e consensuais. “Liberdade” para repetir o que muitos já pensam não é liberdade verdadeira, mas sim a “liberdade” de um papagaio. Isso me veio à mente ao assistir o excelente filme Quills, que recebeu a tradução de Contos Proibidos do Marquês de Sade no Brasil, e o nome infinitamente melhor de As Penas do Desejo em Portugal.
Trata-se de um filme de 2000, produzido com conjunto pelos Estados Unidos, Alemanha e Reino Unido, e dirigido por Philip Kaufman. Conta, em seu elenco, com ótimos atores, como Geoffrey Rush, Kate Winslet, Joaquin Phoenix e Michael Caine. O filme retrata o término da vida do Marquês de Sade no asilo de Charenton, durante os anos de Napoleão Bonaparte no poder.
O libertino indomável se negava a parar de escrever seus contos eróticos, que horrorizavam a Igreja Católica e seus seguidores mais fiéis. O abade Coulmier incentiva a escrita do marquês por acreditar que somente assim ele pode tratar seu problema e espantar seus demônios. Mas, com a ajuda de uma camareira do asilo, seus contos são publicados e ganham o mundo. Revoltado com a repercussão negativa dessas palavras, Napoleão Bonaparte envia ao asilo um famoso médico, cuja missão é calar o marquês, custe o que custar.
De fato, o silêncio do Marquês de Sade custa muito, pois o aumento da repressão apenas o instiga a escrever mais. Quando lhe tiram as tintas e a pena, ele consegue escrever nos lençóis usando vinho como tinta e um osso de galinha como pena. Quando lhe tiram tudo, ele crava no corpo suas palavras com seu próprio sangue. Ele precisa escrever. Ele só se sente vivo escrevendo. Sua língua acaba sendo cortada, e, num último ato de desespero, ele usa seu próprio excremento para escrever suas palavras finais. Seu desejo de escrever era maior que sua própria vontade de viver.
Apesar dos floreios de ficção, a arte imita a vida. Quantos não foram mortos ou silenciados somente por escrever palavras que batiam de frente com a ideologia dos poderosos? Quantos não foram queimados pela Igreja por rejeitar suas crenças ou fazer graça delas? Que liberdade há quando todos são obrigados a escrever somente aquilo que é aprovado pela censura? Por mais chocante que possa ser ao consenso do momento, todos devem ser livres para se expressar. Voltaire teria dito a Rousseau, quem ele considerava um “poço de vileza”: “Não concordo com uma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte seu direito de dizê-las”.
O filme retrata muito bem a hipocrisia dos poderosos, que praticavam entre quatro paredes aquilo que o marquês colocava em seus contos, condenados publicamente. Colocar um espelho diante da sociedade, expondo toda sua hipocrisia, eis uma arma poderosa – e perigosa. O filme ataca também os “puritanos” que odeiam tudo aquilo que remete à alegria, potência, vida, talvez por não serem capazes de realizar seus desejos. Falta-lhes coragem para viver, e a inveja daqueles que rejeitam seus rígidos códigos moralistas os leva ao desejo de destruir a liberdade. “Perecer, quer o vosso ser próprio, e por isso vos tornastes desprezadores do corpo!”, acusou o filósofo Nietzsche.
O poder das armas não pode conter a força das idéias, e por isso os poderosos sempre temeram tanto as palavras. Que elas circulem livremente, para que cada um possa escolher suas crenças e ideais, ao invés de tê-los impostos goela abaixo pelas autoridades no comando. Eis a mensagem deste belo filme que deveria ser lembrada sempre. Podemos não ter mais a censura oficial, mas sem dúvida vivemos em tempos de ameaça para a liberdade de expressão. A “ditadura do politicamente correto” é uma das causas. Se desejamos ser livres, então temos que lutar pela mais básica liberdade: a de expressar nossos pensamentos e sentimentos sem medo de coerção ou represálias.
PS: A revista VEJA desta semana traz excelente entrevista em suas “páginas amarelas”, com o economista Walter Williams. Perguntado sobre leis que proíbem a discriminação, ele responde ser um defensor radical da liberdade individual, e acrescenta: “O verdadeiro teste sobre o nosso grau de adesão à idéia da liberdade de associação não se dá quando aceitamos que as pessoas se associem em torno de idéias com as quais concordamos. O teste real se dá quando aceitamos que se associem em torno de idéias que julgamos repugnantes. O mesmo vale para a liberdade de expressão. É fácil defendê-la quando as pessoas estão dizendo coisas que julgamos positivas e sensatas, mas nosso compromisso com a liberdade de expressão só é realmente posto à prova quando diante de pessoas que dizem coisas que consideramos absolutamente repulsivas”. Na mosca!
Em princípio, está plenamente correto. Porém, é preciso não ter a ingenuidade liberal de estender o princípio da liberdade de expressão aos inimigos da liberdade. São os paradoxos da democracia, da liberdade e da tolerância, dos quais fala Karl Popper. Para este filósofo liberal, o liberalismo não pode ser tolerante com os intolerantes, democrático com os não democráticos, liberal com os liberticidas, sob pena de cometer suicídio.
ResponderExcluirReinaldo Azevedo tem uma máxima sobre isso que é mais ou menos assim: não podemos dar aos nossos adversários, em nome dos nossos princípios, as licenças que eles não nos dariam, em nome dos princípios deles.
Calma aí amigo! Entendo o que você disse. Entretanto, a liberdade irrestrita, as licenças totais permitem, infelizmente a longo prazo, senão longuíssimo, separar o joio do trigo. É só uma questão de tempo. As pessoas estão ficando mais alertas, previnidas, saturadas. Só ainda não possuem a força e a influencia necessarias para mudar as coisas. A liberdade ainda é o melhor caminho para que os que erram, roubam, enganam, ponham suas garras de fora
ResponderExcluirAlgumas pessoas defendem que raças existem, que não é só uma questão de cor da pele, e que são uma curva, não uma população homogênea.Outros acham que só o fato de ser permitido os primeiros PODEREM falar isso,é repugnante
ResponderExcluirEntão em nome da LE vale a pena tolerar quem diz que raças existem?
Norberto.
Ao anônimo de 1:37:
ResponderExcluirNesse longo prazo, os totalitários eliminam os libertários. A vida não é feita de ideais mas de realpolitk.
Ao anônimo de 3:41 (Norberto):
Concordo com você, em termos. Se apenas alguém diz que raças existem e até que alguma raça seja superior às outras, sua liberdade de expressão deve ser respeitada.
Entretanto, se esse alguém começa a defender a eliminação ou a escravização de outras raças, sua liberdade deverá ser cerceada, pois assim ele está pondo em risco a liberdade ou mesmo a vida alheia, a médio ou a longo prazos, se outras pessoas "entrarem" na dele.
Não sejamos otários diante dos totalitários.
Numa democracia liberal ou mesmo numa social-democracia, partidos não democráticos nos seus objetivos não deveriam ser tolerados.
Mais uma coisa: não existe, nunca existiu ou existirá um dia liberdade irrestrita na vida em sociedade. O que existe é uma maior ou menor margem de liberdade individual, mas esta é sempre limitada pelas demais liberdades individuais. Se a liberdade fosse irrestrita na vida social, a própria liberdade sucumbiria à luta de todos contra todos. Seria "a lei do mais forte" no momento, o estado de natureza hobbesiano.
ResponderExcluirE mais isto: a liberdade individual coexiste com outros valores também caros à vida em sociedade - aqui entendida como um conjunto de indivíduos reais e concretos e não como uma abstração coletivista -, tais como a vida, a segurança, a saúde, o sossego, a propriedade, etc.
Liberdade irrestrita somente seria possível se a vida não fosse em sociedade.
É preciso tomar cuidado para não cair em conceitos utópicos e impraticáveis.
Vou pegar para assistir.
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