O corte de R$ 50,1 bilhões no Orçamento, anunciado na semana passada, revela que o governo percebeu a gravidade da situação fiscal. O difícil será resolvê-la
José Fucs Com Leandro Loyola, Revista Época
A presidente da República, Dilma Rousseff, preparou na semana passada uma omelete de queijo em sua participação no programa Mais você, comandado por Ana Maria Braga na TV Globo. Durante o preparo, Dilma quebrou e bateu os ovos numa cumbuca, antes de levar tudo à frigideira. Na véspera, seu governo anunciara um corte de R$ 50,1 bilhões nos gastos previstos para 2011 – e, diante da medida de austeridade, era quase inevitável lembrar a popular frase atribuída ao escritor escocês Robert Louis Stevenson: “Não dá para fazer omelete sem quebrar os ovos”. A omelete que Dilma precisa fazer em seu governo é o crescimento econômico robusto, durável e sem inflação – o mercado estima hoje que ela ficará em 5,8% neste ano. Os ovos que ela terá de quebrar, bem, eles são tantos que os cortes anunciados mal roçam a casca. “Mesmo com o corte, as despesas do governo crescerão 3,6% em termos reais neste ano”, afirma Octavio de Barros, economista-chefe do Bradesco.
Nos últimos quatro anos, entre 2007 e 2010, os gastos do governo aumentaram quase 60%, de R$ 461 bilhões para R$ 734 bilhões. Em termos relativos, as despesas passaram de 17,7% para 19,8% do Produto Interno Bruto (PIB), apesar do crescimento robusto da economia no período. Um dos maiores motivos para a alta foi a contratação de mais de 100 mil novos funcionários públicos. “Ao contratar pessoal, o governo cria despesas permanentes, que se estenderão por 50 anos, depois da morte do funcionário, porque a viúva e os filhos menores têm direito a pensão”, diz o economista Clóvis Panzarini, sócio da CP Consultores e ex-coordenador tributário da Secretaria da Fazenda paulista. A folha de pagamentos da União já soma assombrosos R$ 180 bilhões – e apenas agora o governo co-meçou a promover uma auditoria para eliminar os pagamentos indevidos. Outro fato que piorou o estado de nossas contas públicas foi a política generosa de aumentos salariais para os servidores e para os aposentados da Previdência Social, por meio da política de reajustes no salário mínimo promovida pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O anúncio dos cortes revela que o governo parece ter finalmente acordado para a gravidade de nossa situação fiscal. “É uma herança maldita”, diz Rodrigo Constantino, sócio da Graphus Capital. De acordo com o economista Raul Velloso, especialista em contas públicas, no segundo mandato de Lula o Brasil voltou 20 anos no tempo. “O governo havia adotado uma política fiscal austera nos primeiros anos do governo Lula, mas mudou o comportamento a partir de 2008 e trouxe o velho problema de volta”, afirma Velloso. Sem enfrentar a questão fiscal, Dilma será incapaz de pôr em prática qualquer política consistente em áreas críticas como saúde, educação ou segurança. “Se o Brasil quiser reduzir juros, aumentar investimentos e realizar nossos sonhos de crescimento e desenvolvi-mento, tem de manter o controle fiscal”, diz o economista Armínio Fraga, sócio da Gávea Investimentos e ex-presidente do Banco Central.
A dúvida já surge na hora em que o governo precisa escolher os ovos que vai ter de quebrar para bater sua omelete. Por enquanto, os cortes anunciados pela equipe econômica foram definidos apenas genericamente. Só nos próximos dias, cada um dos 38 ministérios publicará portarias com os detalhes dos gastos que serão retidos. A escolha do que será cortado é sempre difícil, porque envolve inte-resses políticos.
A margem de manobra para cortes no Brasil é muito restrita. O grosso dos gastos – descontados os juros para rolar a dívida pública – se refere a programas de transferência de renda, como os benefícios do INSS, o Bolsa Família e o seguro-desemprego, que não podem deixar de ser pagos. Fora isso, é quase impossível demitir servidores, em razão da legislação que regula o funcionalismo – e ninguém acredita que, mesmo que fosse possível, o governo seguiria esse caminho. Há, ainda, as transferências obrigatórias para Estados e municípios e as exigências constitucionais para investimentos em educação e saúde. Tudo isso somado, de acordo com Velloso, representa cerca de 85% do Orçamento. Resultado: sobram apenas 15% dos gastos sobre os quais o governo tem alguma autonomia. Entre eles, estão os investimentos e os gastos de manutenção, como viagens, compra de carros oficiais, aluguéis e o cafezinho.
Outra dificuldade é que, no Brasil, ao contrário do que ocorre em outros países, o Orçamento não é impositivo, mas autorizativo. Isso significa que o Poder Executivo não tem de cumprir a Lei Orçamentária aprovada pelo Congresso. Ele não pode ultrapassar os valores estabelecidos, mas pode gastar menos que o previsto. A rigor, os cortes nem representam exatamente redução de gastos. São aquilo que o jargão consagrou chamar de “contingenciamento de despesas”. Dos R$ 50,1 bilhões assim “contingenciados”, apenas R$ 13,1 bilhões atingem os gastos de custeio da máquina e os investimentos administrativos, como aluguéis de imóveis e veículos e compra de máquinas e equipamentos. O restante se refere apenas a cortes na intenção de gastos. Isso significa que nada impede o governo de gastar esse dinheiro depois. Se a arrecadação crescer, ele poderá liberar despesas adicionais ao longo do ano, algo que acontece sistematicamente desde 2007. No ano passado, o governo anunciou um contingenciamento de R$ 21,8 bilhões. No final, a economia somou apenas R$ 6,4 bilhões.
De imediato, o melhor que o governo teria a fazer, portanto, é garantir que os cortes anunciados sejam mesmo realizados. Em vez disso, Dilma anunciou a intenção de criar dois novos ministérios, o que põe em dúvida a real eficácia dos cortes. “Se o governo quisesse de fato promover um corte real, teria de rever o modelo de gestão”, diz o líder do DEM na Câmara Federal, deputado Antonio Carlos Magalhães Neto (BA), um dos principais críticos da gastança pública.
Cerca de R$ 18 bilhões “contingenciados” vêm do cancelamento de emendas parlamentares, que elevariam os gastos do Orçamento original, enviado pelo governo ao Congresso. Tais emendas são personagens de uma encenação que todo ano se repete: o governo envia o projeto de Orçamento ao Legislativo, os parlamentares incham a expectativa de arrecadação e criam espaço financeiro para introduzir bilhões de reais de gastos em projetos para favorecer sua região de origem ou os interesses que ajudaram a elegê-los. Como as despesas criadas são uma fantasia, o corte é a eliminação dessa fantasia. Trata-se simplesmente de uma manobra contábil, sem economia real de dinheiro público. A liberação das emendas dos deputados também serve de barganha política. Se o governo tem pela frente uma votação importante no Congresso, elas costumam ser liberadas em troca de votos no plenário. Na prática, isso torna as emendas ovos mais difíceis de quebrar.
Os ovos de casca mais dura são, evidentemente, os investimentos. No início, o governo havia dito que não haveria cortes nessa área. No final, não houve outra saída. Até o Programa de Aceleração do Crescimento e o Minha Casa Minha Vida, vitrines do governo Lula, serão afetados. Pelos cortes anunciados, os subsídios destinados ao Minha Casa Minha Vida deverão cair R$ 5,1 bilhões, de R$ 12,7 bilhões para R$ 7,6 bilhões, o equivalente à construção de 200 mil casas populares.
Há, por fim, outro fator que torna a situação fiscal ainda mais difícil. Na quarta-feira da semana passada, o Banco Central anunciou um aumento de 0,5 ponto porcentual na taxa básica de juros da economia, para 11,75%. O aumento s dos juros é um remédio amargo para conter a inflação. Só que o maior pagador de juros do país é o próprio governo federal, cuja dívida está roçando R$ 1,7 trilhão. A alta dos juros representará, de acordo com Panzarini, um gasto adicional para o governo de pelo menos R$ 15 bilhões em 2011, quase um terço de toda a economia que o governo pretende fazer com os cortes. O juro alto é o preço que todos teremos de pagar em razão de o governo ter gastado mais do que podia. “É um tiro de bazuca para matar uma formiga”, diz Constantino, da Graphus Capital.
Em comparação com países como Estados Unidos ou Inglaterra, a situação fiscal brasileira nem é tão dramática. No Brasil, o déficit público deverá alcançar neste ano entre 1,8% e 3,2% do Produto Interno Bruto (PIB), que chegou a R$ 3,6 trilhões em 2010, de acordo com um anúncio feito na sexta-feira pelo IBGE. Nos EUA, o déficit deverá chegar a 9,5% do PIB. Na Inglaterra, a 11%. A dívida pública brasileira, de 40% do PIB, também é bem menor que a dos EUA, de 97% do PIB, e a da Inglaterra, de 58%.
O mais ousado ajuste fiscal em curso é o da Inglaterra. Para combater o maior déficit público do país na história, o governo inglês adotou um programa radical de cortes de despesas. O primeiro-ministro David Cameron, do Partido Conservador, em coalizão com os liberal-democratas, pretende cortar o equivalente a 19% dos gastos públicos nos próximos quatro anos. O ajuste virá, na maior parte, de cortes de des-pesas. Serão extintos quase 500 mil empregos públicos. Benefícios sociais serão reduzidos. A idade mínima de aposentadoria aumentará de 64 para 66 anos até 2020. Haverá também um aumento na alíquota do imposto sobre consumo, de 17,5% para 20%. O plano de Cameron vem sendo comparado às duras medidas implementadas pela primeira-ministra Margaret Thatcher na década de 1980, com o objetivo de reduzir o peso do Estado na economia.
Nos EUA, um duro ajuste nas finanças públicas também está em andamento. O país tem um gigantesco déficit público de US$ 1,1 trilhão (R$ 1,8 trilhão), formado pela alta dos gastos desde o início do governo George W. Bush (2001-2009). O presidente Barack Obama faz apelos insistentes ao Congresso para aprovar seu Orçamento. Obama enviou um projeto de gastos de US$ 3,7 trilhões (R$ 6,1 trilhões) em 2012, 2,4% a menos que o deste ano. É algo proporcionalmente parecido com o corte proposto por Dilma no Brasil. Mas o plano de Obama prevê medidas para reduzir progressivamente o déficit nos próximos dez anos. Dois terços do corte virão da redução de gastos. O restante, do aumentos de impostos. Lá, como aqui, a oposição a Obama diz que as medidas são insuficientes para atingir o objetivo. Os dados sugerem que o déficit poderá atingir US$ 1,5 trilhão (R$ 2,5 trilhões) neste ano, ou 9,8% do PIB americano – o maior do mundo.
No Brasil, a discussão de longo prazo para as contas públicas ainda é um sonho distante. Mal e mal se consegue apagar o incêndio todo ano. Segundo Octavio de Barros, do Bradesco, há até motivos para ser otimista com a eficácia do ajuste fiscal. “O crescimento das despesas em 2011 é significativamente menor do que o observado entre 2004 e 2009, ao redor de 8,5% em termos reais”, diz ele. Mas seria interessante também que o governo aprovasse uma limitação para os gastos em relação ao PIB. Desse modo, a solvência fiscal de longo prazo estará assegurada e dependeríamos mais do crescimento do PIB para reduzir a dívida pública no longo prazo.
É essencial que os políticos parem de discutir apenas o aumento de receita e comecem a falar em melhorar a eficiência do gasto público. “Em vez de cortes, o que o setor público mais precisa é de um choque de eficiência”, diz o economista Paulo Rabello de Castro, sócio da SR Rating, colunista de ÉPOCA e um dos fundadores do movimento Brasil Eficiente, voltado para a melhoria das finanças do setor público. Um exemplo da área da saúde é citado pelo economista Velloso. “Se o sistema de gestão dos hospitais públicos de São Paulo, baseado numa parceria com o setor privado, fosse implementado pelo governo federal, poderia haver uma redução de 30% no giro dos leitos hospitalares, segundo um estudo feito pelo Banco Mundial, e uma economia de R$ 30 bilhões por ano por parte do Sistema Único de Saúde (SUS)”, afirma.
Na ótica de longo prazo, a reforma nas aposentadorias também é fundamental. A Previdência, cujo déficit somou R$ 41 bilhões em 2010 (ou 1,2% do PIB), ainda é o maior ralo de recursos públicos. Mas, em vez de propor o aumento na idade mínima para a aposentadoria, como na Inglaterra, o governo discute no momento acabar com um dispositivo que surgiu para desestimular as aposentadorias precoces dos segurados, chamado “fator previdenciário”. É algo que pode agravar o problema. Como o salário mínimo corrige o benefício de cerca de 27 milhões de segurados, os aumentos generosos para o mínimo também têm um efeito perverso nas contas da Previdência. O sistema de correção para o mínimo aprovado no mês passado pelo Congresso poderá provocar, em 2012, um rombo adicional de R$ 20 bilhões.
O governo deveria, finalmente, encarar de modo menos ideológico as privatizações, paralisadas desde 2007 com a concessão de meia dúzia de estradas federais. Há quase 200 estatais federais e, em muitos setores, a saída do Estado traria mais eficiência (leia o quadro). Com o país carente de serviços de qualidade, a venda de empresas como Infraero, Correios, Instituto de Resseguros do Brasil, Companhia Brasileira de Trens Urbanos e portos como os de Santos, Rio de Janeiro ou Salvador poderia recolocar o foco do Estado naquilo que realmente interessa: saúde, educação e segurança. “Pode ser uma alternativa, sem que o Estado deixe de preservar a capacidade de regulação e fiscalização desses setores”, diz Armínio Fraga. “Isso alavancaria mais recursos para investimentos essenciais para a modernização da infraestrutura do país. Os recursos de que o Estado dispõe para essa tarefa não são adequados nem para o crescimento que o país vem tendo hoje, quanto mais para o crescimento que precisa ter.” Esses ovos, porém, é difícil acreditar que o governo Dilma tenha coragem de quebrar. Omelete, por enquanto, só na televisão.
Só um parentese no texto: ACM Neto é liberal quando não se trata de canalizar dinheiro público para o bolso de sua família, ou alguém duvida que o patrimonio (império de comunicação) de sua familia foi fruto de empreendedorismo?
ResponderExcluirRodrigo, é bem isso mesmo, o governo precisa acabar com essa ideologia que faz muitos acreditarem que as privatizações são ruins.
ResponderExcluirQuando uma empresa é privatizada, cada pessoa tem a liberdade de participar dos lucros. Quando uma estatal é criada, somos todos obrigados a pagar a conta.