Idéias de um livre pensador sem medo da polêmica ou da patrulha dos "politicamente corretos".
terça-feira, maio 19, 2009
O Culto à Democracia
Rodrigo Constantino
“Se a democracia é um meio para preservar a liberdade, então a liberdade individual é não menos uma condição essencial para o funcionamento da democracia.” (Hayek)
Atualmente, existe uma espécie de “culto à democracia”, entendida aqui como simplesmente o governo da maioria. Assume-se automaticamente que a maioria tem direito de decidir sobre tudo, incluindo temas totalmente restritos à esfera individual. Nesse contexto, vale a pena resgatar o que Friedrich Hayek tinha a dizer sobre o tema. Em sua obra clássica The Constitution of Liberty, ele dedica um capítulo ao assunto, explicando os riscos da democracia e lembrando que ela é apenas um meio para se obter determinados fins.
O liberalismo, segundo Hayek, está preocupado basicamente em limitar o poder coercitivo de qualquer governo, seja ele democrático ou não. Por outro lado, o democrata dogmático reconhece apenas um limite aos poderes do governo: a opinião atual da maioria. Hayek repete o que Aristóteles já havia dito: que a democracia pode resultar em poderes totalitários. O liberalismo é uma doutrina sobre o que a lei deveria ser, enquanto a democracia é uma doutrina sobre a forma de determinar o que a lei será. Enquanto o liberalismo prega a isonomia das leis, i.e., a igualdade de todos perante das leis, a democracia é um meio para se tentar alcançar tal finalidade.
Naturalmente, este meio pode falhar. Uma democracia pode facilmente criar inúmeras leis injustas e ineficientes, concedendo privilégios e, portanto, discriminando grupos. Mas, para o democrata dogmático, o fato de que a maioria deseja algo é motivo suficiente para considerar este algo desejável. Para ele, o desejo da maioria determina não apenas o que será a lei, mas o que será uma boa lei. Se o liberalismo se preocupa com o escopo e o propósito do governo, a democracia, por outro lado, nada tem a dizer sobre as metas do governo em si. O liberalismo defende princípios, enquanto a democracia oferece um método de escolha, que pode ou não respeitar tais princípios.
O uso indiscriminado do termo “democrático” representa muitas vezes um perigo à própria liberdade individual. Esta falácia parte da premissa de que, porque a democracia é uma coisa boa, então ela deve beneficiar a humanidade sempre que for estendida. Trata-se de um non sequitur. Como Hayek diz, existem pelo menos dois aspectos que podem servir para estender a democracia: o tamanho do grupo encarregado de votar e os temas que devem ser decididos pelo processo democrático. Em nenhum dos dois aspectos é possível concluir que todo avanço na extensão da democracia representa um ganho, ou que seria desejável estender indefinidamente a democracia. No entanto, na maioria dos debates sobre todo tema particular, o caso pela democracia é freqüentemente apresentado como desejável.
Hayek cita o próprio conceito de “sufrágio universal” para mostrar que há limites arbitrários na democracia. O limite de idade é o mais óbvio. Assume-se que há certa idade em que ainda não existe maturidade suficiente para decidir sobre as coisas públicas. Ninguém razoável poderia defender o método democrático para as escolhas de uma família com três filhos, por exemplo. No entanto, existem outros limites, como criminosos, residentes estrangeiros, etc. Hayek argumenta então que diferentes limites seriam igualmente arbitrários caso fossem adotados. Por exemplo, o voto apenas de adultos com mais de 40 anos, ou somente os que possuem renda, ou apenas os alfabetizados. Para Hayek, seria possível argumentar também que os ideais da democracia estariam melhor servidos se os funcionários do governo fossem excluídos do voto. Em resumo, o fato de que o sufrágio universal de “adultos” (no caso brasileiro, jovens de 16 anos inimputáveis por crimes podem votar) prevaleceu na maioria dos países não prova que essa deve ser a regra com base em algum princípio básico.
Outro ponto levantado por Hayek é o próprio limite arbitrário de nação. O direito da maioria é normalmente reconhecido somente dentro de um determinado país, mas o que define um país nem sempre é uma unidade óbvia ou natural. Certamente ninguém considera um direito dos cidadãos de um país grande dominar aqueles de um país vizinho menor, somente porque estão em maior número. No entanto, muitos assumem que dentro de um país os direitos da maioria são absolutos, o que carece de argumentação lógica. A democracia não é um valor absoluto. Os poderes de uma maioria temporária devem ser limitados por princípios de longo prazo, justamente para evitar a tirania da maioria. Apenas a aceitação desses princípios comuns torna um grupo de pessoas uma comunidade livre.
Para o liberal, existem coisas que ninguém tem o direito de fazer, seja um rei, seja uma maioria democrática. Conforme alerta Hayek, é quando se aceita que “na democracia o certo é aquilo que a maioria decide”, que a democracia degenera em uma demagogia. De fato, a democracia é o método mais pacífico para mudar governos que existe. Mas isso, sob hipótese alguma, quer dizer que as escolhas da maioria serão sempre certas. Hayek destaca o importante papel da democracia, de educar as massas ao longo do tempo, justamente porque todos acabam participando do processo de formação de opinião. Esse processo dinâmico é que garante o valor da democracia, não seu aspecto estático, ou seja, a escolha pontual dos governantes. Seus benefícios, portanto, costumam aparecer somente no longo prazo, enquanto suas conquistas imediatas podem ser inferiores a de outras formas de governo.
A ditadura do “politicamente correto” é outro risco do “culto à democracia”. A concepção de que a opinião da maioria deve ditar os padrões seguidos por todos representa o oposto do princípio que permitiu o avanço da civilização. O avanço, como afirma Hayek, consiste em poucos convencendo muitos. Novas visões devem antes surgir para depois se tornarem visões majoritárias. Como ninguém sabe quem será o mais apto a moldar novas visões, deixamos o processo de decisão aberto, sem controle da maioria. É pela conduta diferente de uma minoria que a maioria pode aprender algo novo e melhorar. A ditadura da visão majoritária, por outro lado, assume uma postura estática, como se todo o conhecimento necessário para o avanço futuro estivesse disponível. Isso acaba destruindo a capacidade de evolução da civilização.
Por fim, não é uma postura “antidemocrática” tentar convencer a maioria de que existem limites que não devem ser ultrapassados pela própria democracia. Para a sua sobrevivência mesmo, a democracia deve reconhecer que não é a fonte da justiça. O perigo, como coloca Hayek, é quando confundimos um meio de garantir a justiça com a própria justiça em si. Por esta ótica, dois lobos e uma ovelha escolhendo democraticamente qual será o jantar levaria a um resultado totalmente justo. O liberal discorda, pois entende que a ovelha tem o direito de não virar janta de lobo, independente do que deseja a maioria do momento.
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3 comentários:
O problema é o limite à ação do Estado. Paradoxo do voto circular e escolhas por maioria com distribuições assimétricas de renda de lado, acredito que a democracia, atualmente, é o melhor meio para escolhas públicas.
O problema é o que deve ou não ser alvo de escolhas públicas! Acho impressionante a facilidade com que as pessoas abençoam ações do governo em nome de um “bem maior”. Esse é um perigoso argumento que vive tanto em democracias, quando em outros tipos de governo. Porém, até onde meu conhecimento me permite ir, o único regime que foi capaz de impor limites a essas idéias foi à democracia, que por sua vez só foi capaz de florescer e se consolidar em sociedades capitalistas liberais (pq será?).
Acredito que a democracia só sobrevive no longo prazo quando faz parte integrante de uma sociedade que acredita na liberdade individual. Caso contrário, será sempre tentador se livra dos mecanismos de accountability que ela é capaz de criar.
No fim, ou as liberdades individuais já são um valor da sociedade e a democracia é livremente escolhida como uma forma melhor de se fazer escolhas públicas executadas por um Estado com poderes limitados, ou ela terá pouco tempo de vida.
A democracia não é capaz de criar valores sociais que zelam pela liberdade do indivíduo, acho que ela é antes de tudo fruto desses valores.
Abs
José Carneiro
Como sempre brilhante Rodrigo, mas neste artigo tu te superastes. Parabéns pelo blog.
Professor Hayek foi impecável e definitivo em diferenciar método como forma, meio como fim. Oportuníssimo o artigo, quando assistimos, em nossas fronteiras, o surrupio do poder pelo método democrático, e em sendo maioria governar sem limites.
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