domingo, outubro 02, 2011

O totalitarismo científico

João Ubaldo RIbeiro, O GLOBO

“Totalitarismo”, que já teve sua grande voga, é uma palavra hoje pouco usada. Levado pela experiência, fico com receio de que o leitor mais jovem não saiba a que me estou referindo e então dou uma rápida explicação, só para o gasto. Há totalitarismo quando uma organização, geralmente um Estado (“Estado”, no caso, são todos os países politicamente organizados), mas pode ser qualquer outra, como um partido político, pretende assumir controle sobre toda a vida do cidadão, não somente quanto a ideias e sentimentos, mas quanto a comportamento e observação de valores. O totalitarismo já mostrou sua carantonha algumas vezes na História e talvez se tenha pensado que, com a derrocada do nazifascismo e das ditaduras socialistas, ele tenha ido embora.

Mas não foi e está botando as manguinhas de fora cada vez mais. Cada vez mais se tenta regular a conduta do cidadão, mesmo em áreas imemorialmente reservadas a arbítrio e atos da sua exclusiva alçada. E é “científico” porque costuma apoiar-se nas fugazes verdades supostamente inatacáveis da ciência, que, como sabemos, mudam praticamente todo dia. Subitamente, há um afã por proteger-nos de nós mesmos e, muito pior, impor-nos “verdades” científicas que na realidade estão no terreno dos valores e permitem a convicção em outras “verdades”, por motivos culturais, psíquicos, religiosos ou o que lá seja. Isso se deu, por exemplo, com a lei da palmada, que, aliás, parece que não colou, considerada descabida por muitos pais.

O fumo é um bom caso. Não estou a soldo da execrada indústria do tabaco, sou a favor de que não se fume (contanto que se faça esta escolha livremente), mas ninguém que tenha um pensamento consequente pode aceitar o que já se começa a fazer (ainda mais que está na moda nos Estados Unidos e o nosso ideal é ser americano). É possível agora – e parece que alguns poucos já fizeram isso – que um condomínio residencial, por decisão de maioria simples, resolva abolir o fumo em suas dependências e aplicar pesadas multas aos moradores que fumarem – atenção -, mesmo trancados em seus próprios apartamentos ou casas. Fala-se na instalação, que já ocorre nos Estados Unidos, de detectores de fumaça nos apartamentos. Não sei o que acontecerá com quem queime incenso em casa, mas provavelmente acionará uma sirene e convocará uma brigada do Comando de Caça ao Tabagista. Cada casa vai virar banheiro de avião e qualquer fumacinha que seu dono fizer será denunciada e implacavelmente castigada.

Que é isso? Aonde chegamos? O infeliz compra uma casa, faz dela seu lar supostamente inviolável e não tem liberdade em seu próprio território, sem prejudicar ninguém, a não ser ele mesmo? O condômino que for voto vencido vai ter de parar de fumar, pitar ao relento ou vender o apartamento e se mudar? Vive-se em cidades poluídas como Rio e São Paulo, mas o cigarro do vizinho, trancado em seu escritório, é o que prejudica o condomínio? E se fumaça e cheiro começarem a ultrapassar os limites do cigarro e do charuto? Deverão em breve manifestar-se os que se sentem incomodados com cheiro de carne assada – e assim poderão ser banidos os churrascos na cobertura. Talvez várias plantas também venham a ser proscritas, pois há muitos alérgicos a pólen que padecem com flores. Caprichando, dá para proibir tudo.

Já previ aqui, e continuo acreditando que vai acontecer, que, no futuro, para proteger nossa saúde, seremos obrigados a seguir restrições alimentares baixadas pelo Ministério da Saúde e, em certos casos, o supermercado só nos poderá vender alimentos de uma lista carimbada por uma nutricionista oficial. Como essas coisas mudam a cada instante, todo mês sairia uma lista revista do que é cientificamente aconselhável comer e, portanto, devia ser obrigatório e, mais dia menos dia, pelo visto, será.

Se haverá detectores de fumaça, não sobra muita razão para não se instalarem câmeras de tevê, a fim de monitorar pelo menos certos casos, como na área da educação. Os pais estabeleceriam os horários em que ajudariam os filhos com os deveres de casa e aí um funcionário do Ministério da Educação acompanharia os acontecimentos em tempo real, para ver se o pai se interessa mesmo pela educação do filho, se segue a metodologia traçada pelo Ministério e se não faz observações politicamente incorretas, levando-se também em conta que linguagem chula está fora de cogitação. E, na hora em que os pais dessem um livro para os filhos lerem, a leitura só poderia ser realizada depois que os pais ouvissem do governo a contextualização do livro e como ele deverá ser corretamente entendido e explicado.

Talvez não seja simples atuar em outras áreas, mais delicadas, como a da conduta sexual do cidadão (sim, claro, e da cidadã, da cidadã também; eu esqueço que agora o certo é escrever assim). Sabe-se que, dentro de uma gama razoável de ação, muitas práticas sexuais pouco ortodoxas são aceitas, desde que mutuamente consentidas. Mas o problema está aí. Serão mesmo mutuamente consentidas, ou um dos cônjuges é na verdade violentado? Para ter certeza, só monitorando tudo com câmeras, o que poderá ser feito a pedido de qualquer um dos cônjuges, ou causado por uma denúncia feita junto ao Ministério Público. Aliás, deverá ser possível que a d. Marta, do sexto andar, suspeite da trilha sonora que, certas horas da noite, se esgueira da alcova de seus vizinhos do sétimo e recorra ao Disque Denúncia para que a escabrosa situação seja monitorada. Sei que muitos de vocês talvez pensem que deliro. Mas não deliro, já está acontecendo e a tecnologia facilita o controle sobre qualquer indivíduo. É daqui para pior e – nunca se sabe – dentro em breve estará em graves apuros quem der um punzinho na sala.

9 comentários:

Leandro Santiago disse...

Sinceramente achei o autor uma espécie de louco lutando contra um espantalho que ele mesmo criou. Parece-me que ele, no fim das contas, está prevendo um futuro retirado de algum 1984 de algum Orwell, e colocando a culpa disso tudo no avanço da tecnologia, principalmente tecnologia de monitoramento e segurança.

A solução para ele seria simplesmente evitarmos todo e qualquer tipo de tecnologia, pois sem tecnologia, não há como o Estado controlar nossa conduta pessoal. Cita um ou dois casos que justifiquem sua teoria conspiratória (realmente a questão dos detectores de fumaça são um chute nos direitos e liberdades individuais) e está provado que ele está certo.

O cenário que ele relata é possível de acontecer? Sim, sempre é. Eu não chamo isso de totalitarismo científico, mas só de totalitarismo. A ciência não é um corpo dotado de julgamento moral, bom ou mau. Descobertas e invenções que usaram-se da ciência sempre são usadas em regimes totalitários, sejam as armas, meios de comunicação em massa, instrumentos de tortura ou um bocado de soma. E nenhum destes regimes foi chamado de totalismo científico.

Particularmente acho a própria luta contra o "fantasma do politicamente correto que ameaça a liberdade individual, etc..." uma besteira. Não que não existam pessoas que possuem uma moral absoluta e querem impor um modelo de comportamento e pensamento à toda a população, por força de lei, mas que há muitos dos lutadores que acham que ser politicamente incorreto o tempo todo (gostam de sair por aí ofendendo a honra de pessoas, ou grupo delas o tempo todo e não querem ser repreendidos em momento algum, dizendo que estão sendo atacados pelos politicamente corretos que, além de tudo, não fumam, não comem carne e não fazem sexo, além de serem religiosos anienados), mas não estão dispostos a aceitar que, em alguns momentos, passaram do ponto ou estão falando babaquices. Politicamente incorreto é dizer, por exemplo, "em briga de marido e mulher não se mete a colher", ao saber que sua vizinha é espancada pelo marido. Se você tenta interferir, está sendo um nazifeminista politicamente correto.

Não, não sou politicamente correto ou incorreto. Particularmente já passei desta fase. Hoje, mesmo ainda sendo jovem, vejo que o mundo é mais complicado - e como é! - que isso.

Gosto dos textos publicados neste blog, em especial quando escritos pelo próprio Constantino, mas de vez em quando aparecem alguns reproduzidos que são difíceis de engolir.

No mais, continue com este excelente blog. Já o leio há tempos, mas nunca havia comentado. Embora eu não concorde com boa parte de suas ideias, conhecê-las está realmente me ajudando a moldar minhas opiniões e "tunelar" minha visão de mundo. Já fui um defensor - "não praticante" - do socialismo, já tive tendências anarquistas, mas hoje, quando reflexiono sobre qualquer uma destas visões, sinto-me mais lúcido ao enxergar seus defeitos.

Abraços e me desculpe pelo comentário longo e prolixo.

Anônimo disse...

É que esse nosso país já é perfeito, tudo funciona bem, os reguladores não tem muito o que fazer e ficam inventado esses caprichos!!!

Anônimo disse...

'Eu não chamo isso de totalitarismo científico, mas só de totalitarismo. A ciência não é um corpo dotado de julgamento moral, bom ou mau.'
[2]

Anônimo disse...

A continuar assim a ditadura do politicamente correto atingirá a todos.
Os que apoiam algumas proibições logo também serão proibidos.
Está passando do limite e como porcos capturados no curral que pouco a pouco se constrói, todos serão capturados e sacrificados pelas ideologias esquerdistas.

Anônimo disse...

Correto é o que se diz, o preço da liberdade é a eterna vigilância.Se permitirmos logo, logo controlaram todos os aspectos de nossas vidas, é o caminho da servidão.

Anônimo disse...

Conversa fiada!

Anônimo disse...

ontem o fantástico fez uma enquete 'fantástica': pais de filhos obesos devem perder a guarda destes?

vai mais ou menos nessa linha de intromissao do estado na vida das pessoas... se bem que mandar as crianças gordinhas pro estado cuidar talvez resolva o problema da obesidade...

Anônimo disse...

O “POLITICAMENTE CORRETO” ESTÁ MATANDO O ROCK.
Embora o rock tenha estourado nos anos 60 do século passado se associando a causas afins à esquerda (crítica à guerra do Vietnã, ao racismo contra os negros [sendo inclusive derivado em grande parte do blues], ao que se julgava conservador, etc), na esteira das pregações do marxismo cultural da chamada Escola de Frankfurt - em verdade, uma estratégia para enfraquecer a juventude ocidental na guerra fria, em que pese também criticar o totalitarismo soviético -, havia no estilo musical e de vida que o rock encarnava algo de anárquico e libertário (não sou anarquista) que o tornava rebelde, crítico e iconoclasta, irredutível a esquemas morais rígidos e dogmáticos.
Era justamente aí que residia o charme e a estética roqueira: algo rebelde, contestador, libertário, jovem.
E o que se vê agora? Um rock rendido ao esquerdismo totalitário e “politicamente correto”. É o que se constata ao se assistir à MTV e às manifestações “políticas” de alguns artistas no Rock in Rio. Os nacionais criticam Sarney mas têm medo de fazer o mesmo com o seu maior defensor (do Sarney), o Lula; os internacionais, dominados pelo “politicamente correto”, cuja tradução mais grotesca e patética é o Bono Vox, em pleno século XXI, depois de tudo que se soube e se sabe a respeito do esquerdismo na prática (que nos anos 60 ainda se desconhecia em grande parte), continua em geral caudatário dos mitos esquerdistas e de sua versão moderna no Ocidente, o “politicamente correto”.
Também o rock, com a esquerda totalitária no poder, se tornou pelego.
Muito se fala no meio roqueiro que está acabando o espírito rebelde e juvenil do rock. A razão disso está exposta acima.
O “POLITICAMENTE CORRETO” ESTÁ MATANDO O ROCK.

Marcel Freitas disse...

"Eu não chamo isso de totalitarismo científico, mas só de totalitarismo. A ciência não é um corpo dotado de julgamento moral, bom ou mau".

Leandro, concordo com você quando diz que a ciência não é um corpo dotado de julgamento moral. Mas não foi isso que o autor quis dizer. Não é a ciência que está ditando o que é certo ou errado para nossa vida, mas sim os burocratas que se utilizam de argumentos "científicos" para legitimar o controle sobre as pessoas.