Contardo Calligaris, Folha de SP
Os Estados Unidos parecem estar divididos como nunca. No entanto, todos concordam: para ganhar as eleições presidenciais, é preciso conquistar o centro moderado -sem ele, não há vitória possível. Mas o que é, nos EUA, o centro político?
Em geral, a gente entende assim: os democratas são socialistas "rosas", indulgentes em matéria de costumes e convencidos de que o governo precisa intervir na vida econômica (por exemplo, para compensar as diferenças excessivas à força de impostos e programas assistenciais), e os republicanos são caretas em matéria de costumes, mas contrários a todo tipo de tutela governamental.
Essa descrição sumária omite um pano de fundo que é comum a democratas e republicanos, simplesmente por eles serem norte-americanos, e esse pano de fundo é feito de antigovernismo e valorização da liberdade individual.
Por exemplo, quando um democrata é indulgente em matéria de costumes, não é necessariamente por inclinação libertina, mas por ele colocar a liberdade dos indivíduos acima da moral comum.
Ou, então, quando um republicano defende um capitalismo desregrado, que garanta ao empreendedor a mesma liberdade que permitiu a expansão do país para o Oeste, não é por convicção econômica, mas porque ele acha que o governo deveria colocar obstáculos nas rodas dos indivíduos só se eles forem absolutamente necessários para a vida em comunidade.
Esse espírito libertário é o do centro americano, sem o qual ninguém é eleito. Dos dois lados desse centro, há extremos que o ameaçam e dos quais os moderados não gostam.
Por exemplo, as aspirações de justiça social dos democratas "extremistas" podem parecer perigosas aos olhos do centro moderado: ainda hoje, discute-se seriamente para saber se o seguro médico universal, por ser obrigatório, não ameaça a liberdade do indivíduo.
Quanto ao "extremismo" republicano, que também faz o desgosto dos moderados, ele mostrou sua cara especialmente no último ano.
Para não perder as simpatias do centro, o partido republicano obviamente prefere candidatos nada "extremos" -hoje, Mitt Romney, em 2008, John McCain.
Mas o sucesso da campanha do maior concorrente de Romney, o senador Rick Santorum, mostra que a tentação extremista republicana é forte. De que se trata?
Santorum, por exemplo, declarou que ele teve vontade de vomitar quando ouviu o presidente Kennedy defender a separação da igreja e do Estado. É óbvio que a união de Estado e igreja leva qualquer governo a atropelar a liberdade privada de seus cidadãos, ou seja, é óbvio que a frase de Santorum é oposta aos ideais libertários do centro americano.
Por que ele se engajou neste caminho? De onde lhe veio essa ideia? Costuma-se pensar (e dizer) que o sonho americano começa com os puritanos, que saíram da Inglaterra a procura de liberdade religiosa. Mas os puritanos estavam interessados só na sua própria liberdade religiosa, não na dos outros.
Como projetava John Winthrop em 1630, ainda no barco que o levava para a nova terra, eles construiriam "uma cidade que brilharia nas alturas", exemplo para mundo, mas uma cidade fechada (na qual quem não concordasse seria enforcado como as bruxas de Salem e a mulher que pecasse por adultério seria marcada com uma letra escarlate).
Por sorte, em 1631, Roger Williams começou a pregar a separação de Estado e igreja e o direito de qualquer um de venerar o deus que bem entendesse.
Williams foi expulso e fundou Providence, outra cidade "nas alturas", mas aberta, onde ele inventou a liberdade de professar sua fé sem impô-la aos outros -ao contrário, com a ideia de que defender a liberdade dos outros é a melhor maneira de proteger a nossa própria liberdade.
Pois bem, o centro moderado norte-americano acredita em Roger Williams. Mas é preciso constatar que Rick Santorum e os republicanos extremistas não são uma invenção recente: como John Winthrop, eles sonham com a paz simplória de um vilarejo onde não se leia nada além da Bíblia e onde sempre seja possível dizer o que é certo e errado -e, claro, proibir o que seria "errado".
É curioso que ninguém repare no óbvio: os sonhos deles não são diferentes dos sonhos do Talibã de qualquer vilarejo do Afeganistão.
Os fundamentalistas são todos iguais: "apenas" querem que a lei de seu deus seja mandatória para todos os demais.
Por sorte nossa, não é esse o sonho daquele centro moderado norte-americano que, em geral, escolhe os presidentes.
2 comentários:
Muito bom como sempre, mas será mesmo que é o centro é que elege os presidentes? Então porque John McCain perdeu pro Obama?
Falei recentemente com um americano de mais ou menos 60 anos e na opinião dele os americanos, principalmente os jovens, estão cada vez mais interessados em receber assistência social. E muitos jovens estão se endividando muito, já há quem fale em bolha do crédito educativo.
O artigo ia muuuito bem até a comparação com o Talibã, ridícula. Ele precisaria citar uma única demonstração de violência para calar seus adversários.
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