Rodrigo Constantino*
“Cada
homem, onde quer que vá, é englobado por uma nuvem reconfortante de convicções,
que se move com ele como moscas num dia de verão.” (Bertrand Russell)
Eu adoro debater. Participo de
infindáveis debates em diversas redes sociais, e também face a face. Acredito
no poder das ideias e sei que elas podem mudar as pessoas, pois vi este
resultado inúmeras vezes, e algumas diante do espelho. Mas sempre me
impressionou a resistência que muitos oferecem nos debates, quando confrontados
por ideias diferentes daquelas previamente defendidas. Como ouriços, estas
pessoas se fecham em suas crenças prévias, sem deixar espaço para o
questionamento.
Quando isso acontece, o debate
vira conversa de surdos, cada um tentando impor sua visão de mundo.
Infelizmente, esse talvez seja o padrão dos debates, não a exceção. E creio que
Thomas Sowell, em seu melhor livro, conseguiu oferecer boas explicações para
este espantoso fenômeno: estamos diante de um conflito de visões. A questão
fundamental que se apresenta aqui é: quais são as premissas por trás de cada
visão ideológica diferente? Dependendo destas premissas básicas – sobre o
homem, sobre a sociedade –, então pode ocorrer um conflito irreconciliável de
visões de mundo.
Sowell deposita enorme importância
a estas premissas e sua consequente visão de mundo. Conforme ele diz, os
conflitos de interesse podem dominar o curto prazo, mas os conflitos de visões
dominam a história. Não é possível ignorar uma visão de mundo para lidar com a
realidade. Todos possuem uma, ainda que repitam o contrário, alegando serem
pessoas “práticas”. A visão de mundo é como um mapa que nos guia em um mundo
complexo. Não podemos dispensá-la. Podemos, no máximo, nos evadir de reflexões
mais profundas sobre ela. Mas, neste caso, estaremos seguindo cegamente a visão
de outro, ou de outros, pincelada de forma aleatória e formando verdadeira
colcha de retalhos.
Esta visão normalmente não é
produto do raciocínio, mas sim um ato cognitivo pré-analítico. Ela é algo que
sentimos antes de termos construído qualquer raciocínio sistemático que possa
ser chamado de teoria. Não é o resultado da dedução lógica de hipóteses
testadas contra suas evidências. Por isso, é tão complicado alterar uma visão
de mundo: ela está enraizada em nossa personalidade desde muito cedo.
Toda visão será simplista,
justamente porque ela serve para facilitar a compreensão de um mundo complexo.
Mas isso não quer dizer que sejam ruins; elas oferecem um sentido básico de
como o mundo funciona. Qualquer teoria é calcada sobre pilares que dependem
desta visão de mundo que temos. Apesar de subjetivas, as visões e suas
respectivas teorias possuem implicações claras, e fatos podem testar e medir
sua validade objetiva. Um homem primitivo pode ter uma visão de que possui
poderes místicos e que a reza altera o curso da natureza, mas sabemos que sua
paralisia diante de um vulcão em erupção não vai evitar que a lava o mate se
ele não começar a correr e fugir. É a visão de mundo que vai pautar nossa
agenda tanto de pensamento como de ação.
Falando mais especificamente das
visões sociais e políticas, elas diferem basicamente em suas concepções sobre a
natureza dos homens. Para Sowell, esta divisão pode ser resumida entre a visão
“limitada” e a “ilimitada”. Na visão limitada, o homem é visto não como uma tabula
rasa, mas como um ser que possui limitações desde sempre. Adam Smith, por
exemplo, não olhava a natureza humana como algo a ser alterado. Sua preocupação
era como chegar aos melhores meios para produzir benefícios sociais desejados,
dentro destas limitações humanas.
Um dos pontos-chave da visão
limitada, conforme explica Sowell, é que ela lida com trade-offs em vez de “soluções”. Já na visão ilimitada, a natureza
humana é vista como infinitamente plástica, e isso possibilita a noção de
“solução”. Uma solução ocorre quando não é mais necessário fazer uma escolha
entre duas alternativas imperfeitas, em que qualquer uma delas produza efeito
negativo. Há uma resposta final e absoluta. As guerras, a pobreza e os crimes,
todos estes males são vistos, na versão ilimitada, como coisas que podem ser
extirpadas do mundo. Já pela visão limitada, tais desgraças são vistas como
parte dos efeitos das paixões humanas, que podem ser, no máximo, minimizadas. A
visão ilimitada desfruta de uma esperança utópica enquanto a limitada adota
postura bem mais cética.
A Revolução Francesa é o exemplo
típico da visão ilimitada. Finalmente, as injustiças seriam debeladas e o
paraíso terrestre poderia se tornar realidade. Igualdade, liberdade e
fraternidade, todos viveriam em paz e felizes. Faltou combinar com a natureza
humana, e o resultado prático foi Robespierre, a guilhotina e o terror. Já a
Revolução Americana, ainda que com a influência de pensadores da vertente
ilimitada, como Thomas Paine e Thomas Jefferson, também contou com a importante
participação de pensadores mais céticos. A Constituição americana é prova
disso, elaborada com total preocupação aos pesos e contrapesos que limitariam a
capacidade de estrago causada pelo governo. Ninguém com tanto poder merece
confiança cega.
A visão limitada parte da premissa
de que nossa natureza é relativamente imutável ao longo do tempo. Claro que
costumes se aprimoram e o conceito de moral evolui. Mas o mal sempre estará
presente nos homens, segundo esta visão. E isso justifica a desconfiança com
relação a todo tipo de “engenharia social”. A visão ilimitada enxerga o homem
como um ser com potencial praticamente infinito, e que basta oferecer as
condições “certas” para que todos pratiquem o bem. Na outra versão, o ser
humano é visto como uma criatura tragicamente limitada, com impulsos egoístas e
perigosos. Rousseau e seu “homem bom”, corrompido pela sociedade, representam o
ícone da visão ilimitada; Hobbes e seu pessimismo, com o “lobo do homem”, seria
o exemplo alternativo.
Sobre o conhecimento, a visão
limitada assume que qualquer indivíduo será incapaz de tomar decisões sociais e
políticas por conta própria, pois ele possui minúscula parcela do conhecimento
necessário. A ideia de um “déspota esclarecido” desperta calafrios aos adeptos
desta visão. O conhecimento vem muito da experiência, do processo de tentativa
e erro, aprendizagem gradual e darwinista que vai eliminando aquelas ideias que
não funcionam. Hayek foi quem melhor resumiu esta visão limitada do
conhecimento humano, com seu argumento sobre o conhecimento disperso e
fragmentado na sociedade. Por outro lado, a versão ilimitada deposita fé
infinita na capacidade da razão humana. Seus adeptos estão dispostos a ignorar
séculos de experiência e partir do zero para desenhar a sociedade perfeita e
justa.
Dependendo da visão adotada, as
medidas pregadas em diferentes áreas serão diametralmente opostas. Vejamos o
caso do crime. Na visão limitada, há a noção de que seres humanos sempre terão
um lado sombrio e violento, e que o mecanismo de incentivos pode mitigar seus
efeitos. Por isso, defende-se, nesta visão, o uso de punição exemplar para
crimes, especialmente os mais graves. Já na visão ilimitada, a culpa recai
quase sempre sobre a “sociedade”, e se as condições sociais forem melhoradas,
então o crime poderá desaparecer. Esta visão costuma defender uma “reeducação”
para os criminosos, mesmo os mais bárbaros.
A postura com relação às crianças
também será radicalmente distinta. Na visão limitada, cada nova geração é como
uma invasão de pequenos bárbaros que precisam ser civilizados antes que seja
tarde demais. O livro O Senhor das Moscas,
de William Golding, captura bem esta imagem nada romantizada das crianças.
Sozinhas em uma ilha após um acidente, elas criam todo tipo de situação absurda
que costumamos ver nas sociedades de adultos. Intrigas, grupos formados para
concentrar poder, inveja, violência e atos claramente irracionais são parte do
dia a dia das crianças na ilha. Já a visão rousseauniana ilimitada vai enxergar
as crianças como seres “puros”, totalmente voltados para o bem, e qualquer
forma de educação mais rigorosa será vista como um absurdo. Alguns vão chegar a
ponto de defender leis que proíbam até palmadas.
Para Sowell, há ainda as visões
“híbridas”, aquelas que misturam a versão limitada com a ilimitada, dependendo
do assunto em questão.
Muito daquilo que chamamos de “incoerência” no posicionamento
dos outros se deve ao fato de que uma pessoa pode manter uma visão limitada em
um tema específico, e uma visão ilimitada em outro assunto. Estas visões
híbridas são mais difíceis de serem classificadas ou encaixadas em rótulos
tradicionais, tais como direita e esquerda.
Cada visão dessas irá produzir
conclusões que são consequências lógicas de suas premissas. Seguro delas, seu
defensor tentará “vencer” os debates, muitas vezes com base em emoções. Não há saída
fácil para o embate entre dois tipos tão diferentes de visão de mundo. O que
podemos fazer, talvez, é seguir o conselho de Ayn Rand: checar sempre as
premissas, e verificar se elas fazem mesmo sentido. Além disso, torna-se
crucial manter a mente sempre aberta, e aceitar o debate civilizado, em que o
grande objetivo é se aproximar da verdade, e não derrotar o “oponente”. Não
adianta fugir da questão em si, fingir que tanto faz qual visão de mundo nós
temos, pois dependendo de qual seja ela, os resultados práticos daquilo que
pensamos e fazemos será totalmente diferente. Para o bem ou para o mal.
* Texto inédito do livro LIBERAL COM ORGULHO (Ed. Lacre, 2011)
3 comentários:
Excelente texto Rodrigo. Apenas cuidado que o teu "ceticismo" pode te levar ao centro, ou seja, virar um PSDB.
Li o livro "Porque não sou cristão" do Russell. Pra mim ele é um baita marxista, fica sonhando com as várias formas com que o Estado deveria fazer as coisas. Como o Pondé diz, seria uma daqueles que querem "construir um mundo melhor".
Alvaro
Muito bom mesmo este texto! Outro exemplo que pode ser citado é o filme A Vila, de M. Night Shyamalan, onde um grupo de pessoas resolveu viver afastada da violência (e influência) das grandes cidades, imaginando que este seria o melhor caminho para uma sociedade "perfeita".
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