Idéias de um livre pensador sem medo da polêmica ou da patrulha dos "politicamente corretos".
segunda-feira, outubro 27, 2008
A Grande Família
Rodrigo Constantino, para a Revista Banco de Idéias (Instituto Liberal)
“O patrimonialismo é a vida privada incrustada na vida pública.” (Octavio Paz)
Dando continuidade à sua obra Patrimonialismo e a Realidade Latino-Americana, Ricardo Vélez Rodríguez analisa em seu novo trabalho, a questão da cultura patrimonialista na região, dessa vez pela ótica da literatura. Em A Análise do Patrimonialismo Através da Literatura Latino-Americana, o autor utiliza esta “antropologia das antropologias” para estudar como a mentalidade que trata o Estado como um bem de família não é algo superficial, mas sim uma profunda característica de nossa cultura. A idéia de que o Estado é o “pai de todos” sobrevive ao longo dos séculos, permitindo a privatização do espaço público por uma “patota”. Este lamentável aspecto cultural da região foi muito bem capturado em obras de literatura, e Vélez selecionou algumas delas para sua análise, como O Outono do Patriarca, de García Márquez, O Ogro Filantrópico, de Octavio Paz, e O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo. Independente de o país em questão ser a Venezuela, o México ou o Brasil, a similaridade de aspectos fundamentais dos traços culturais que levam ao patrimonialismo é impressionante.
Em todos os casos, trata-se de Estados mais fortes do que a sociedade. Como o autor explica, “o Estado surge a partir da hipertrofia de um poder patriarcal original, que alarga a sua dominação doméstica sobre territórios, pessoas e coisas extrapatrimoniais, passando a administrá-los como propriedade familiar”. O aparato burocrático passa a controlar o aparelho estatal, normalmente girando em torno de uma figura central. A privatização do Estado ocorre através das práticas de nepotismo e clientelismo, e as leis deixam de ser impessoais, passando a representar um braço dos privilégios da “grande família”. Não há objetividade nem coerência nos decretos do caudilho. As origens disso vêm de longe, da tradição ibérica, e o Estado costuma ser visto como o grande empresário que garante a riqueza da nação. Os súditos precisam se “encostar” no Estado como fonte de enriquecimento. A figura do governante se confunde com a própria noção de Pátria, levando a um culto à personalidade. O controle sobre a mídia é vital, e informações devidamente manipuladas são repassadas à sociedade através de programas como “A Hora do Brasil” ou “Alô, Presidente”. Um tom messiânico é adotado por ele, resultando numa postura extremamente populista. A sede pelo poder é total. “O tirano quer ser Deus”, resume Vélez.
Em um Estado patrimonialista, não se distingue direito o que é público do que é privado. Todas as funções reduzem-se a incumbências ditadas pelo interesse de família ou de clã. Ao contrário de outras culturas, onde a política é um meio para favorecer os negócios, para os latino-americanos ela é o grande negócio em si. O princípio básico da economia patrimonialista, segundo Vélez, é: “privatização dos lucros, socialização dos prejuízos”. Quem não faz parte do andar de cima, acaba pagando as “aventuras dos tiranetes”. A variável política tem preponderância sobre a variável econômica. A troca de favores é o meio para o sucesso, e não a meritocracia. Conforme Octavio Paz constatou, “o Estado moderno é uma máquina, mas uma máquina que se reproduz sem cessar”. O patrimonialismo é a via que leva ao autoritarismo, através dessa crescente concentração de poder.
Infelizmente, a América Latina parece longe do dia em que tais características serão apenas um triste capítulo do passado. Se no passado figuras como Juan Vicente Gómez, Juan Domingo Perón e Getúlio Vargas representavam os ícones desse patrimonialismo, atualmente Hugo Chávez, Evo Morales e mesmo o presidente Lula, sem falar do casal Kirchner, substituíram os antigos “patriarcas”. Em um estágio mais avançado de autoritarismo, está o exemplo dos irmãos Castro, que transformaram Cuba literalmente numa propriedade familiar. Buscar as origens desse traço cultural, inclusive presente em nossa literatura, pode ajudar a esclarecer melhor as causas que permitem a manutenção destes modelos na política latino-americana, tratada como uma cosa nostra desses populistas. Nesse contexto bastante atual é que o novo livro de Vélez torna-se uma leitura imprescindível, como complemento ao seu trabalho anterior.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário