Rodrigo
Constantino
Fui ver, após
recomendação de um amigo, o filme “As Neves do Kilimanjaro”, inspirado no conto
“Os Pobres”, de Victor Hugo. O francês Robert Guédiguian tenta resgatar nele
sua fé no ser humano, na capacidade de bondade e redenção em seres culpados que
somos.
O filme conta a
história de um líder sindical que perde o emprego em um sorteio no sindicato,
depois sofre um assalto e passa a refletir sobre sua vida, sentindo-se culpado
por ter se “aburguesado” demais. O cineasta se considera de extrema-esquerda, e
é crítico desta esquerda burguesa que chegou ao poder em vários países.
O filme é bom, e
retrata a realidade cada vez mais complicada dos europeus em crise, onde faltam
empregos, especialmente para os mais jovens. O “ranço” de esquerda fica
evidente quando o assaltante, que era um colega de trabalho do assaltado e que
também foi demitido no sorteio, transforma-se em vítima na história.
O espectador é
levado a morrer de pena daquele que iniciava certamente uma “carreira” no crime
(ele já planejava o próximo assalto quando foi preso), ainda que com arma de
brinquedo, pois ele o fazia por uma boa causa, qual seja, ajudar seus dois
irmãos menores, órfãos de pai e filhos de uma prostituta ausente.
O assalto, por esta
ótica, passa a ser justificado, e o assaltado sente-se culpado, pois tem um
carro, uma propriedade e pode gozar de sua aposentadoria precoce e forçada com
uma viagem para Kilimanjaro. O líder sindical passa a se ver como o burguês
patrão que ele sempre combateu em vida, e isso lhe é insuportável.
Não dá para não
nutrir alguma simpatia pela postura do personagem principal, e esse é o golpe
de mestre do cineasta. Justamente por isso me sinto na necessidade de escrever
sobre o filme, expondo minhas reflexões. O sindicalista acredita em tudo aquilo
que eu condeno e abomino, mas me é impossível não respeitá-lo, se não por sua
inteligência, ao menos por sua integridade e bondade.
Logo no começo
do filme, com o sorteio dos que serão demitidos, ele demonstra esta integridade
colocando o próprio nome na lista, o que poderia ser evitado por ele ser líder
do sindicato. Trata-se de alguém que acredita naqueles valores e princípios, e
não de um oportunista que usa o sindicato como trampolim para privilégios (a
enorme maioria dos casos reais, sejamos sinceros).
Seu amigo de
infância e co-cunhado, além de colega de trabalho, tenta alertá-lo de que ele
não precisava participar do sorteio. É o mesmo que está com ele no momento do
assalto, e que deseja a prisão perpétua para o criminoso. O mesmo que deu de
presente ao amigo uma revista que fora sua (do amigo) primeira revista na
infância, supostamente encontrada em um sebo com seu nome na contracapa. No
fundo, ironia das ironias, ela havia sido roubada pelo próprio quando criança.
O mais rígido no julgamento do “pobre” assaltante era o mais flexível nos
valores e princípios. Haja hipocrisia.
O casal
principal era feliz à sua maneira, com sua vida simples, com sua família. Após
o assalto, ambos redescobrem este sentido verdadeiro de suas vidas, e decidem,
cada um em segredo no começo, ajudar os dois irmãos mais novos do assaltante,
preso por denúncia do marido. Estragando parte do final para quem ainda não viu
o filme, eles resolvem abrigar as crianças em casa, apesar da revolta de seus
filhos.
Foi a maneira
que encontraram de “fazer a coisa certa”, ainda que isso não resolva os
problemas do mundo e não apague a responsabilidade do assaltante. Era o que
eles podiam fazer. Era o possível, estender a mão para ajudar aquelas crianças
inocentes, tentar salvá-los do mesmo destino triste do irmão mais velho. Era
sua contribuição para uma sociedade melhor. No auge da crise, é possível dar o
melhor de si, e fazer a coisa certa, ser um exemplo aos demais, preservar o
caráter e a bondade.
E por que ao
mesmo tempo o filme me incomodou tanto? Porque a esquerda não pode e não deve
monopolizar tais virtudes! O ato solidário, o prazer nas coisas simples e na
família, a empatia com o próximo, tudo isso são coisas que independem da
propriedade, do carro, da conta bancária, da vida no burgo ou no campo.
Se as religiões
serviram para incutir este senso de caridade nas pessoas no passado, o
socialismo tentou se apropriar desta bandeira com sua seita laica no século 20.
Eu esperava que, após 100 milhões de mortos e outros tantos milhões miseráveis
ou escravizados, a esquerda teria mais receio de pregar seu modelo de “solidariedade”.
Sim, podemos até
admitir que o caos social e o enorme desemprego são fatores que estimulam o
crime de jovens desesperados. Sim, também podemos aceitar que alguns “burgueses” simplesmente não
ligam para o entorno, e que o individualismo exacerbado pode ser perigoso para
o tecido social. Mas com o diagnóstico totalmente errado das causas que levaram
a esta situação, a receita só pode ser fracassada.
Não é o
capitalismo, o patrão burguês ou a globalização que jogaram os trabalhadores no
desemprego. Muito pelo contrário: são as tentativas de impedir seu
funcionamento que costumam produzir mais miséria e desemprego. O assaltante, já
preso, discorda do assaltado quando este diz que não tinha o que ser feito além
do sorteio. Era possível fazer mais greves, eventualmente incendiar a fábrica,
tudo menos um acordo de “merda”. Esta
mentalidade é a maior responsável pelas desgraças vividas pelos trabalhadores
europeus hoje!
Os pobres não
são pobres porque os ricos são ricos, e acreditar nisso é alimentar uma das
mais perigosas falácias que existem. Esse é o grande “crime” desse instigante
filme. O personagem principal pode ter sua casa simples, seu carro velho na
garagem, e fazer sua viagem para Kilimanjaro sem tanta culpa. Não é por isso que
o jovem estava desempregado, tampouco isso justifica ele ser alvo de um crime. O
que não diminui o valor de sua integridade e de sua bondade, apesar do arcabouço
teórico totalmente errado.
É possível,
portanto, unir as duas coisas: integridade moral e bondade, com inteligência e
conhecimento para reconhecer qual o melhor modelo que efetivamente ajuda os mais pobres e melhora a vida em sociedade.
Este não pode ser um modelo que dependa somente do altruísmo de pessoas
bondosas como o personagem principal do filme. O cineasta deveria ter mais fé
no poder da “mão invisível” dos mercados, sem precisar, com isso, abandonar
totalmente sua esperança na humanidade. Doses de realismo não fazem mal a
ninguém.
5 comentários:
Frances as minhas filhas não falam. Mas espanhol está acessível. Por tanto nunca deixei entrar livros infantís espanhois em casa. É tudo no estilo 'coitadinho'... Desde 11 anos passaram a estudar nos EUA. Escolas particulares. É outra literatura. É uma mentalidade mais positiva, de fazer, de construir... São também mais duros com os adolescentes. Nada de coitadinho. Tem que aprender andar com suas proprias pernas...
Este filme mostra bem, o altruísmo não é o problema. O problema é querer obrigar o altruísmo e condenar todas as ações que buscam beneficiar a si, sem prejudicar ninguém. Isto nunca funcionou em toda a história. Esta mentalidade da esquerda "pessoa X é rica porque pessoa Y é pobre", como você mesmo disse é ridícula.
Se o capitalismo é exploração, miséria, etc; por que a Coreia do Sul é tão mais desenvolvida que a Coreia do Norte?
Ambos eram miseráveis a umas décadas e justamente a parte mais "explorada" é a que se mais desenvolve. Segundo o doingbusiness.org, a Coreia do Sul é o 8º melhor país para se fazer negócio.
O Socialismo em vários países da África, o estado de bem estar social Europeu, Cuba, Coreia do Norte, etc; ideologias coletivistas fracassaram em todos eles. Só esta demorando mais na Europa, porque eles possuem mais riquezas.
Como diz a sabedoria popular:
o inferno está assoalhado de bens intencionados!
Isso é como o mito do bom selvagem, não tem nada a ver com a real ou com o que é um socialista de verdade, é só um produto da imaginação, uma historinha enfeitada que sai da cabeça de um esquerdinha lunático
"Como diz a sabedoria popular:
o inferno está assoalhado de bens intencionados!"
Não, não está...e isso que o povo falha em enxergar, esquerda não tem boa intenção, lá no fundo não...
Postar um comentário