terça-feira, agosto 07, 2012

As neves do Kilimanjaro


Rodrigo Constantino

Fui ver, após recomendação de um amigo, o filme “As Neves do Kilimanjaro”, inspirado no conto “Os Pobres”, de Victor Hugo. O francês Robert Guédiguian tenta resgatar nele sua fé no ser humano, na capacidade de bondade e redenção em seres culpados que somos.

O filme conta a história de um líder sindical que perde o emprego em um sorteio no sindicato, depois sofre um assalto e passa a refletir sobre sua vida, sentindo-se culpado por ter se “aburguesado” demais. O cineasta se considera de extrema-esquerda, e é crítico desta esquerda burguesa que chegou ao poder em vários países.

O filme é bom, e retrata a realidade cada vez mais complicada dos europeus em crise, onde faltam empregos, especialmente para os mais jovens. O “ranço” de esquerda fica evidente quando o assaltante, que era um colega de trabalho do assaltado e que também foi demitido no sorteio, transforma-se em vítima na história.

O espectador é levado a morrer de pena daquele que iniciava certamente uma “carreira” no crime (ele já planejava o próximo assalto quando foi preso), ainda que com arma de brinquedo, pois ele o fazia por uma boa causa, qual seja, ajudar seus dois irmãos menores, órfãos de pai e filhos de uma prostituta ausente.

O assalto, por esta ótica, passa a ser justificado, e o assaltado sente-se culpado, pois tem um carro, uma propriedade e pode gozar de sua aposentadoria precoce e forçada com uma viagem para Kilimanjaro. O líder sindical passa a se ver como o burguês patrão que ele sempre combateu em vida, e isso lhe é insuportável.

Não dá para não nutrir alguma simpatia pela postura do personagem principal, e esse é o golpe de mestre do cineasta. Justamente por isso me sinto na necessidade de escrever sobre o filme, expondo minhas reflexões. O sindicalista acredita em tudo aquilo que eu condeno e abomino, mas me é impossível não respeitá-lo, se não por sua inteligência, ao menos por sua integridade e bondade.

Logo no começo do filme, com o sorteio dos que serão demitidos, ele demonstra esta integridade colocando o próprio nome na lista, o que poderia ser evitado por ele ser líder do sindicato. Trata-se de alguém que acredita naqueles valores e princípios, e não de um oportunista que usa o sindicato como trampolim para privilégios (a enorme maioria dos casos reais, sejamos sinceros).

Seu amigo de infância e co-cunhado, além de colega de trabalho, tenta alertá-lo de que ele não precisava participar do sorteio. É o mesmo que está com ele no momento do assalto, e que deseja a prisão perpétua para o criminoso. O mesmo que deu de presente ao amigo uma revista que fora sua (do amigo) primeira revista na infância, supostamente encontrada em um sebo com seu nome na contracapa. No fundo, ironia das ironias, ela havia sido roubada pelo próprio quando criança. O mais rígido no julgamento do “pobre” assaltante era o mais flexível nos valores e princípios. Haja hipocrisia.

O casal principal era feliz à sua maneira, com sua vida simples, com sua família. Após o assalto, ambos redescobrem este sentido verdadeiro de suas vidas, e decidem, cada um em segredo no começo, ajudar os dois irmãos mais novos do assaltante, preso por denúncia do marido. Estragando parte do final para quem ainda não viu o filme, eles resolvem abrigar as crianças em casa, apesar da revolta de seus filhos.

Foi a maneira que encontraram de “fazer a coisa certa”, ainda que isso não resolva os problemas do mundo e não apague a responsabilidade do assaltante. Era o que eles podiam fazer. Era o possível, estender a mão para ajudar aquelas crianças inocentes, tentar salvá-los do mesmo destino triste do irmão mais velho. Era sua contribuição para uma sociedade melhor. No auge da crise, é possível dar o melhor de si, e fazer a coisa certa, ser um exemplo aos demais, preservar o caráter e a bondade.

E por que ao mesmo tempo o filme me incomodou tanto? Porque a esquerda não pode e não deve monopolizar tais virtudes! O ato solidário, o prazer nas coisas simples e na família, a empatia com o próximo, tudo isso são coisas que independem da propriedade, do carro, da conta bancária, da vida no burgo ou no campo.

Se as religiões serviram para incutir este senso de caridade nas pessoas no passado, o socialismo tentou se apropriar desta bandeira com sua seita laica no século 20. Eu esperava que, após 100 milhões de mortos e outros tantos milhões miseráveis ou escravizados, a esquerda teria mais receio de pregar seu modelo de “solidariedade”.

Sim, podemos até admitir que o caos social e o enorme desemprego são fatores que estimulam o crime de jovens desesperados. Sim, também podemos aceitar que alguns “burgueses” simplesmente não ligam para o entorno, e que o individualismo exacerbado pode ser perigoso para o tecido social. Mas com o diagnóstico totalmente errado das causas que levaram a esta situação, a receita só pode ser fracassada.

Não é o capitalismo, o patrão burguês ou a globalização que jogaram os trabalhadores no desemprego. Muito pelo contrário: são as tentativas de impedir seu funcionamento que costumam produzir mais miséria e desemprego. O assaltante, já preso, discorda do assaltado quando este diz que não tinha o que ser feito além do sorteio. Era possível fazer mais greves, eventualmente incendiar a fábrica, tudo menos um acordo de “merda”. Esta mentalidade é a maior responsável pelas desgraças vividas pelos trabalhadores europeus hoje!

Os pobres não são pobres porque os ricos são ricos, e acreditar nisso é alimentar uma das mais perigosas falácias que existem. Esse é o grande “crime” desse instigante filme. O personagem principal pode ter sua casa simples, seu carro velho na garagem, e fazer sua viagem para Kilimanjaro sem tanta culpa. Não é por isso que o jovem estava desempregado, tampouco isso justifica ele ser alvo de um crime. O que não diminui o valor de sua integridade e de sua bondade, apesar do arcabouço teórico totalmente errado.

É possível, portanto, unir as duas coisas: integridade moral e bondade, com inteligência e conhecimento para reconhecer qual o melhor modelo que efetivamente ajuda os mais pobres e melhora a vida em sociedade. Este não pode ser um modelo que dependa somente do altruísmo de pessoas bondosas como o personagem principal do filme. O cineasta deveria ter mais fé no poder da “mão invisível” dos mercados, sem precisar, com isso, abandonar totalmente sua esperança na humanidade. Doses de realismo não fazem mal a ninguém. 

5 comentários:

samuel disse...

Frances as minhas filhas não falam. Mas espanhol está acessível. Por tanto nunca deixei entrar livros infantís espanhois em casa. É tudo no estilo 'coitadinho'... Desde 11 anos passaram a estudar nos EUA. Escolas particulares. É outra literatura. É uma mentalidade mais positiva, de fazer, de construir... São também mais duros com os adolescentes. Nada de coitadinho. Tem que aprender andar com suas proprias pernas...

Victor disse...

Este filme mostra bem, o altruísmo não é o problema. O problema é querer obrigar o altruísmo e condenar todas as ações que buscam beneficiar a si, sem prejudicar ninguém. Isto nunca funcionou em toda a história. Esta mentalidade da esquerda "pessoa X é rica porque pessoa Y é pobre", como você mesmo disse é ridícula.

Se o capitalismo é exploração, miséria, etc; por que a Coreia do Sul é tão mais desenvolvida que a Coreia do Norte?

Ambos eram miseráveis a umas décadas e justamente a parte mais "explorada" é a que se mais desenvolve. Segundo o doingbusiness.org, a Coreia do Sul é o 8º melhor país para se fazer negócio.

O Socialismo em vários países da África, o estado de bem estar social Europeu, Cuba, Coreia do Norte, etc; ideologias coletivistas fracassaram em todos eles. Só esta demorando mais na Europa, porque eles possuem mais riquezas.

samuel disse...

Como diz a sabedoria popular:
o inferno está assoalhado de bens intencionados!

Anônimo disse...

Isso é como o mito do bom selvagem, não tem nada a ver com a real ou com o que é um socialista de verdade, é só um produto da imaginação, uma historinha enfeitada que sai da cabeça de um esquerdinha lunático

Anônimo disse...

"Como diz a sabedoria popular:
o inferno está assoalhado de bens intencionados!"

Não, não está...e isso que o povo falha em enxergar, esquerda não tem boa intenção, lá no fundo não...