domingo, setembro 30, 2007

O Coletivismo de Rousseau


Rodrigo Constantino

“As piores dificuldades dos dias presentes, sou levado por vezes a pensar, surgem cada vez menos da falta de visões e mais das visões embusteiras.” (Irving Babbitt)

O professor de literatura francesa em Harvard, Irving Babbitt, foi um dos principais líderes do movimento intelectual denominado Novo Humanismo, que combateu as escolas de opinião marxista, instrumentalista e naturalista. De forma simplificada, esse humanismo acredita que o homem é um ser distinto, regido por leis peculiares à sua natureza, leis essas diferentes das válidas para as coisas. Os inimigos da verdadeira natureza humana, segundo essa linha de pensamento, seriam os sentimentalistas, que colocam o homem sujeito às forças dos impulsos e das paixões, os materialistas pragmáticos, que tratam os homens como meros macacos depurados, e os coletivistas, que reduzem a personalidade humana à mediocridade coletiva. Babbitt rejeita todas as filosofias deterministas da História, tanto aquelas que reduzem o homem a um fantoche de Deus, quanto as que fazem dele uma marionete da natureza. Os livros de Babbitt foram direcionados contra esses grupos, incluindo Democracia & Liderança, publicado em 1924. Um foco especial é o pensamento de Rousseau, que será também o tema tratado aqui.

O que mais distingue Rousseau na história do pensamento, para Babbitt, é que ele deu as respostas erradas para as questões corretas. Rousseau foi, de longe, o teórico principal da democracia radical. Para Babbitt, os líderes genuínos sempre existirão, e “a democracia se torna uma ameaça para a civilização quando busca livrar-se dessa verdade”. A noção de que as maiorias numéricas, supostamente refletindo a “vontade geral”, podem substituir as lideranças é “apenas um conceito pernicioso”. Babbitt resgata Confúcio para reforçar a importância das lideranças, para o bem ou para o mal: “A virtude do líder é como o vento; a do povo, como o capim; isso porque é da natureza do capim inclinar-se ao sabor do vento”. Rousseau irá falar às massas, não através da razão, mas pelas emoções. Segundo ele mesmo, o estado de natureza não é um estado de razão. Ao contrário, o homem que pensa é um “animal depravado”. O homem sujeito apenas aos instintos naturais seria “o mais virtuoso e o que oferece a menor resistência aos impulsos simples da natureza”. Para Rousseau, tanto a guerra como a razão resultam da sofisticação social.

Rousseau ataca duramente os ricos, comparando-os aos “lobos vorazes que, tendo uma vez provado a carne humana, recusam qualquer outro tipo de alimento, e, depois da prova, desejam apenas devorar homens”. A invenção da propriedade privada seria, para Rousseau, o primeiro e decisivo passo para esse pecado, sendo fonte das maldades sociais. O mito da bondade natural não se sustenta sob o escrutínio mais breve dos fatos, mas lisonjeia os que estão na parte mais baixa da hierarquia social. O evangelho rousseauniano tem como efeito inevitável, segundo Babbitt, “fazer orgulhoso o homem pobre e, ao mesmo tempo, fazer com que ele se sinta vítima de uma conspiração”. Ouve-se, através das palavras de Rousseau, “a voz do plebeu irado e invejoso que, em nome do amor, está fomentando o ódio e a luta de classes”. Em Emile há quase uma confissão: “O que era mais difícil de ser destruído dentro de mim era uma misantropia orgulhosa, uma certa acrimônia contra os ricos e os felizes do mundo, como se eles estivessem nessa situação à minha custa, como se sua alegada felicidade tivesse sido usurpada de mim”.

A visão idílica de Rousseau, condenando a civilização e pregando a idéia do “bom selvagem”, iria conquistar inúmeros adeptos, sempre através das emoções – normalmente a inveja ao sucesso alheio. A prática dessa visão de mundo resultou em Robespierre. Enquanto Locke influencia a Revolução Americana, Rousseau deixa como herança a sangrenta Revolução Francesa, seguida do Grande Terror. Nas palavras de Babbitt, “quando o real se recusa a dar lugar ao ideal, é fácil persuadir os simplórios de que o fracasso não se deve ao ideal em si, mas a alguma trama”. Isso fica mais claro quando vemos tantos socialistas até hoje culpando os revolucionários em questão pelo contundente fracasso soviético, em vez de enxergar os pilares podres na própria ideologia. Experiência atrás de experiência comprova o que a razão já deixa claro, mas nada disso é suficiente para despertar o eterno sonhador. Cuba, Camboja, Coréia do Norte, China, União Soviética, nada é culpa do socialismo em si, mas dos homens que ali tomaram o poder.

Há um enorme desejo de acreditar, o que se aproxima da loucura. Babbitt escreve: “Em alguns meios é tido como certo que quase qualquer opinião se justifica se for defendida com veemência suficiente. Não se pode deixar de pensar que, talvez, os melhores exemplos de sinceridade dessa espécie estejam nos hospícios; e que grande parte da sinceridade de Rousseau, sua convicção, por exemplo, de que era vítima de uma conspiração universal, cai nesse tipo”. E acrescenta: “O valor da sinceridade só pode ser estimado com referência à questão prévia da verdade e do erro”. Muitos seguidores de Rousseau mostram-se igualmente convictos. São os “sinceramente enganados”, aqueles que desejam tanto acreditar num ideal, que ignoram qualquer fato contraditório para salvar a crença.

O contrato social de Rousseau pode ser reduzido a uma só cláusula: “A completa alienação de todos os seus direitos por parte dos abrangidos pelo contrato em prol da comunidade inteira”. O indivíduo não tem nenhuma garantia contra o abuso do poder ilimitado da comunidade. O “povo soberano” não tem responsabilidade perante ninguém. Ele é Deus! Na prática, a vontade geral significa uma maioria numérica num momento determinado qualquer. Se o indivíduo vai contra essa vontade, a maioria simplesmente a impõe a ele, “forçando-o a ser livre”. Foi com esse engenhoso artifício que Rousseau se livrou do problema que atormenta diversos pensadores políticos: “como salvaguardar a liberdade do indivíduo ou das minorias contra uma maioria despótica e triunfante”. Na democracia radical de Rousseau, a verdade é que a vontade individual não vale nada. Os indivíduos, como tal, não têm direitos protegidos da tirania da maioria. Incitando a inveja dessa maioria, Rousseau se mostra um revolucionário no pior sentido possível. Nas palavras de Madame de Staël, ele não inventou nada, mas incendiou tudo. E, infelizmente, as chamas desse incêndio continuam queimando até hoje a liberdade individual.

quinta-feira, setembro 27, 2007

A Libertação do Homem


Rodrigo Constantino

"A vida não examinada não vale a pena ser vivida." (Sócrates)

Um dos grandes filósofos ingleses que enriqueceram o debate de idéias no século XX foi Michael Oakeshott, que demonstrou interesse por diversos assuntos, como política, história, educação e religião. Sua obra sobre filosofia política, On Human Conduct, parte da premissa de que a ação humana é um exercício de inteligência em atividades de escolha, mostrando semelhança em vários aspectos com a obra-prima de Mises, Human Action. Aqui o foco será seu texto sobre a educação liberal, A Place of Learning, onde ele mostra que o homem é aquilo que aprende ser, através da própria reflexão num ambiente favorável ao aprendizado.

A mente é a atividade inteligente pela qual o homem pode compreender e explicar processos, é a autora não apenas do mundo inteligível onde os homens vivem, mas também de sua relação autoconsciente com este mundo. O homem é livre para buscar este autoconhecimento, sendo responsável por seus pensamentos e ações. A possibilidade de ser inteligente abre espaço para a possibilidade de ser estúpido, e talvez isso afaste tantos dessa busca pelo conhecimento, levando-os à crença de algum determinismo qualquer como fuga. Mas os homens não podem alegar que suas palavras são colocadas em sua boca por algum deus ou que não passam de descargas elétricas do seu cérebro: elas têm significados pelos quais cada um é responsável por julgar se faz ou não sentido. A simples tentativa de fuga expõe sua impossibilidade, já que somente a mente pode se arrepender por ter que pensar. A liberdade de pensamento exige a responsabilidade pelo que se pensa.

Para Oakeshott, o que distingue um ser humano, o que constitui um ser humano são seus pensamentos, crenças, dúvidas, sua compreensão da própria ignorância, seus desejos, preferências, escolhas, sentimentos, emoções e propósitos, assim como a expressão deles através de suas ações. A condição necessária para tudo isso é que o homem deve aprender tais coisas. Ele diz: "O preço da atividade inteligente que constitui o ser humano é aprender". E este aprendizado necessário é algo que cada um de nós deve e só pode fazer por conta própria. O aprender humano é bem diferente do processo natural de adaptação de organismos como reação ao meio-ambiente e às circunstâncias. Não é um aprender passivo, mas um compromisso autoconsciente. Não é uma reação induzida pela pressão externa, mas uma tarefa auto-imposta inspirada pela noção da própria ignorância e de quanto há para aprender. É um desejo pela compreensão. Para um ser humano, então, aprender é um compromisso por toda a vida, e o mundo onde ele habita é o local de aprendizado.

Uma grande parte da conduta humana é direcionada à exploração de recursos no planeta para a satisfação de desejos e necessidades. Esse aprendizado é individual, sempre. Não é uma abstração chamada "Homem" que pode realizar a cura de uma doença, por exemplo, mas algum médico individual que aprendeu com alguns professores a tarefa em questão. Oakeshott afirma que não há algo como "aprendizado social" ou "compreensão coletiva". São indivíduos que aprendem. Oakeshott reconhece a importância deste tipo de aprendizado, mas está muito mais preocupado com outro tipo, qual seja, as aventuras no autoconhecimento humano. A isso ele chama de "educação liberal", pois está liberada da distração dos negócios que buscam a satisfação das demandas imediatas. Sua compreensão da liberdade decorre da visão de que o homem não está condenado à "dança macabra das necessidades e satisfações". A vida não se resume a "obter e gastar". Não estamos presos intelectualmente ao aqui e agora.

Eis onde entra o fundamental papel da cultura, segundo Oakeshott. O autoconhecimento humano seria inseparável do aprendizado na participação daquilo chamado "cultura", ou seja, uma continuação de sentimentos, percepções, idéias, compromissos, atitudes etc. Não faz sentido, para o filósofo, falar em homem "culturalmente condicionado", já que o homem é sua cultura, e aquilo que ele é ele teve que aprender a ser. O aprendizado liberal é aprender a responder aos convites das grandes aventuras intelectuais nas quais os seres humanos expuseram suas várias compreensões do mundo e de si mesmos. A cultura não seria, então, uma miscelânea de crenças, percepções e idéias, mas pode ser reconhecida como uma variedade distinta de línguas de compreensão. Oakeshott faz uma analogia com vozes, como se cada componente cultural desses fosse uma expressão diferente de uma compreensão de mundo, um idioma diferente, e a cultura seria a união dessas vozes, como numa conversação.

Existem constantes ameaças a esta educação liberal. Uma delas vem da "socialização" do aprendizado. Trata-se de uma doutrina que, porque o aqui e agora está cada vez mais uniforme do que já foi, defende que a educação deve reconhecer e promover essa uniformidade. Para Oakeshott, esta á uma das mais insidiosas de todas as corrupções, pois ataca o cerne do aprendizado liberal. O mundo moderno estaria repleto de acontecimentos, mas não muitas experiências memoráveis. Seria um fluxo contínuo de trivialidades sedutoras que não invocam reflexão, mas participação instantânea. As pessoas pulam de uma conformidade da moda para outra, de um guru do momento para o próximo. Há a repetição de slogans e "pontos de vista" embalados de forma profética, mas sem embasamento. Os ouvidos estão cheios de sons na Babel atual, convidando às reações instintivas.

É importante lembrar que Oakeshott escreveu esse artigo em 1975, época em que as universidades estavam vivendo uma grande transformação neste sentido de busca pelo interesse imediato, pela necessidade da profissão, mesmo em sua London School of Economics, na qual era professor. Mas o alerta continua válido, talvez mais que nunca. Essas circunstâncias são hostis à educação liberal, aquela que desamarra o indivíduo das necessidades urgentes do aqui e agora, levando-o a escutar a conversa na qual os seres humanos desde sempre buscam se compreender enquanto humanos. A busca pelo conhecimento prático é crucial para reduzir o desconforto dos homens na natureza. Os ganhos materiais advindos do avanço no conhecimento humano são fantásticos, e devem ser comemorados, sem dúvida. O progresso da medicina, por exemplo, permitiu que a expectativa de vida dobrasse em poucos séculos. Mas não podemos deixar de lado a questão essencial: qual vida?

Os seres humanos não são máquinas que processam alimentos com o único objetivo de sobreviver e procriar. Somos capazes de muito mais que isso. Oakeshott tentou nos lembrar justamente disso, combatendo o materialismo excessivo da modernidade. A libertação do homem vem através desta busca pelo autoconhecimento. Sem isso, somos apenas símios repetindo gestos de forma automática. Oakeshott reforça, então, a lição socrática exposta na epígrafe. Devemos sempre examinar qual vida desejamos viver.

segunda-feira, setembro 24, 2007

O Legado de Milton


Rodrigo Constantino

“A verdadeira liberdade ocorre quando os homens, nascidos livres, precisando dirigir-se ao público, podem falar livremente.” (Eurípides)

John Milton nasceu em 1608 e foi um dos maiores poetas renascentistas da Inglaterra, tendo dedicado sua vida à defesa das liberdades civis, políticas e religiosas. Tornou-se um dos principais propagandistas do regime republicano durante os conturbados anos que seguiram a execução do rei Carlos I, em 1649. Os acontecimentos que levaram a este ato, o ato em si e suas conseqüências iriam dominar seus escritos políticos. Sua defesa radical justificando o regicídio no texto A Tenência de Reis e Magistrados foi um marco na época. Em Defesa do Povo Inglês, Milton faz ataques violentos aos defensores do rei assassinado, assim como apresenta mais argumentos para defender a República perante a Europa. Sua obra mais celebrada pelos liberais é Areopagitica, um discurso condenando a censura na imprensa.

Logo no começo de A Tenência de Reis e Magistrados, John Milton deixa claro seu apreço pela idéia de direito natural, quando afirma que “só os homens de bem podem amar vigorosamente a liberdade; os demais amam, não a liberdade, mas a licença”. Para ele, o homem já nasce livre. Ninguém deve sua liberdade à licença de algum governante. Sua idéia acerca da formação do Estado antecipa John Locke, quando ele diz que os homens ”concordaram por aliança comum em obrigar-se uns aos outros contra a agressão recíproca, e a se defender em conjunto de qualquer um que perturbasse ou se opusesse a tal acordo”. Por isso teriam surgido as vilas, cidadãs e repúblicas. Pelo fato de a boa-fé de cada um não ser suficiente para garantir a paz e a liberdade, os homens teriam “julgado necessário dispor de alguma autoridade que pudesse refrear pela força e pela punição toda violação da paz e do direito comum”. Mas ninguém iria confiar no poder arbitrário dos governantes. Para tanto, criam-se as leis, que devem inclusive “confinar e limitar a autoridade dos que eles escolheram para governá-los”. As fraquezas e os erros pessoais seriam, tanto quanto possível, protegidos pelo governo das leis, igualmente válidas para todos, sem exceção.

Essas leis, todo o direito, brotam da fonte da justiça, e não o contrário, ou seja, não é uma lei que determina se algo é justo ou não. Existem leis ilegítimas, que ferem esses direitos naturais. Essa visão teria influência nos “pais fundadores”, como se pode notar pela citação de Thomas Jefferson: “Se uma lei é injusta, um homem está não apenas certo em desobedecê-la, ele é obrigado a fazê-lo”. Quem discorda, deveria questionar se um guarda estaria sendo justo ao seguir as leis nazistas num campo de concentração!

Nem mesmo o rei escaparia dessa igualdade perante a justiça e as leis. Para Milton, “considerar os reis responsáveis unicamente perante Deus constitui subversão de toda a lei e de todo governo”, lembrando que muitos na época defendiam a idéia de direito divino aos reis. A autoridade do rei, para Milton, advinha do próprio povo, e isso garantia ao povo o direito de rejeitá-lo quantas vezes quisesse. Ele condenava a analogia entre rei e pai, afirmando que são coisas bem diferentes, pois pai é quem nos criou, enquanto o rei não nos criou, mas ao contrário, foi criado por nós. “O povo não existe por causa do rei, mas o rei existe por causa do povo”, ele sintetiza. Milton afirma que “o poder real nada mais é senão um pacto ou estipulação mútua entre o rei e o povo”. E se uma das partes não honrar o pacto, no caso o rei tornar-se um tirano, o acordo não é mais válido. Neste caso, o republicano Milton defendia um julgamento honesto e aberto, “para ensinar os monarcas fora-da-lei e todos os que tanto os adoram que a única e verdadeira majestade soberana e suprema sobre a Terra não é um homem mortal nem sua vontade imperiosa, mas a justiça”. Em resumo, “a justiça infligida ao tirano nada mais é senão a defesa necessária de toda uma república”.

John Milton, que era um cristão protestante, defendia a liberdade religiosa também, e não deixa de mandar um duro recado aos clérigos: “Não perturbem os negócios civis, que se encontram em mãos mais hábeis e capazes de administrá-los; estudem mais e dediquem-se ao ofício de bons pastores”. Para ele, a magistratura e a Igreja confundiam os deveres uma da outra. Por este motivo, entre outros, John Milton não suportava o papismo de modo algum. Em sua opinião, não se tratava de uma religião, mas de “uma tirania clerical disfarçada de religião, adornada de todos os emolumentos do poder civil que ela tomou para si contrariamente ao ensinamento do próprio Cristo”.

Em Areopagítica, seu discurso pela liberdade de imprensa ao Parlamento, Milton iria apresentar argumentos liberais contra a censura prévia. Publicada em 1644, a obra-prima do poeta seria escrita no contexto de batalha parlamentar, já que o líder da Assembléia, Herbert Palmer, havia exigido que um livro de Milton em defesa do direito de divórcio fosse queimado. Para Milton, a censura sempre esteve associada à tirania, e mais recentemente seria fruto do reacionarismo católico do Concílio de Trento e da Inquisição. Ele foi direto ao afirmar que o “projeto de censura surgiu sub-repticiamente da Inquisição”.

Milton defendia que cada um pudesse julgar por conta própria o que é bom ou ruim. “Todo homem maduro pode e deve exercer seu próprio critério”, ele escreveu. Ele diz ainda: “O conhecimento não pode corromper, nem, por conseguinte, os livros, se a vontade e a consciência não se corromperem”. Para ele, todas as opiniões são de grande serviço e ajuda na obtenção da verdade. Os homens não devem, portanto, ser tratados como idiotas que necessitam da tutela de alguém. Desconfiar das pessoas comuns, censurando sua leitura, “corresponde a passar-lhes um atestado de ignomínia”, considerando que elas seriam tão debilitadas que “não seriam capazes de engolir o que quer que fosse a não ser pelo tubo de um censor”. Para Milton, ao contrário, cada um tem a razão, e isso significa a liberdade de escolher. O desejo de aprender necessita da discussão, da troca de opiniões. A censura, então, “obstrui e retarda a importação da nossa mais rica mercadoria, a verdade”.
Quanta diferença para a postura típica dos autoritários, como fica evidente na seguinte declaração de Trotsky: "Os jornais são armas. Eis porque é necessário proibir a circulação de jornais burgueses. É uma medida de legítima defesa!". Seu colega revolucionário, Lênin, foi na mesma linha: "Por que deveríamos aceitar a liberdade de expressão e de imprensa? Por que deveria um governo, que está fazendo o que acredita estar certo, permitir que o critiquem? Ele não aceitaria a oposição de armas letais. Mas idéias são muito mais fatais que armas". Fica evidente o abismo existente entre esta visão de mundo, que pariu a União Soviética, e aquela de Milton, que influenciou a criação dos Estados Unidos, como se pode verificar pela afirmação de Thomas Jefferson: "Uma vez que a base de nosso governo é a opinião do povo, nosso primeiro objetivo deveria ser mantê-la intacta. E, se coubesse a mim decidir se precisamos de um governo sem imprensa ou de uma imprensa sem governo, eu não hesitaria um momento em escolher a segunda situação".

Além disso, seu argumento mostra como a censura, na prática, seria ineficaz ou mesmo prejudicial ao seu intento original. Os censores, afinal, são humanos que erram também. Ele questiona como confiar nos censores, já que não são detentores da graça da infalibilidade e da incorruptibilidade. A censura não consegue levar ao resultado para o qual foi concebida. Ele diz: “Aqueles que imaginam suprimir o pecado suprimindo a matéria do pecado são observadores medíocres da natureza humana”. A reforma dos costumes imposta não surte o efeito desejado, como Milton demonstra através dos exemplos da Itália e Espanha “depois que o rigor da Inquisição se abateu sobre os livros”. É impossível tornar as pessoas virtuosas pela coerção externa, e a censura impede que se exerça a faculdade do juízo e da escolha.

Uma das frases mais famosas de John Milton saiu justamente de Areopagítica, e é citada aqui para concluir o resumo do seu legado: “Dai-me liberdade para saber, para falar e para discutir livremente, de acordo com a consciência, acima de todas as liberdades”.

sábado, setembro 22, 2007

A Cooperação Compulsória


Rodrigo Constantino

“Um argumento fatal para a teoria comunista é sugerido pelo fato de que o desejo por propriedade é um dos elementos de nossa natureza.” (Herbert Spencer)

Herbert Spencer foi um defensor radical do laissez-faire numa época aonde o coletivismo vinha crescendo rapidamente. Ele se opunha à centralização do governo, regulação econômica, militarismo e vários outros tipos de invasão à liberdade individual. Alguns preferiram tachá-lo de “darwinista social” em vez de rebater com argumentos suas idéias, que em muitos aspectos foram proféticas. Alguns excelentes textos foram reunidos na obra The Man Versus the State, que foi originalmente lançada em 1884. Não deixa de ser curioso que a mais famosa obra de George Orwell, tratando da concentração de poder no Estado e conseguinte perda de liberdade dos indivíduos, tenha sido chamada de 1984, um século a mais da data do livro de Spencer. O caminho da servidão já estava mapeado pelo filósofo inglês.

Para Spencer, a justiça deve ser construída a partir dos direitos naturais de todo indivíduo, e não através da busca direta pelo “bem comum”. Os governos devem ser confinados ao princípio de igualdade perante as leis, afastando assim a tentativa de regular a vida de toda a nação. A difusão do poder é fundamental como garantia do bem-estar geral. Como todo individualista, Spencer combateu todo tipo de coletivismo. A sociedade deve respeitar as vidas das partes, em vez das partes serem subservientes ao todo. “A sociedade existe para o benefício de seus membros, não seus membros para o benefício da sociedade”. Para tanto, a sociedade deve ser organizada com base da cooperação voluntária, não com base na cooperação compulsória. Em resumo, era o princípio do individualismo contra a defesa do coletivismo em diferentes formas, seja comunismo, socialismo, nazismo ou fascismo.

Na tentativa de resgatar os valores antigos dos liberais, já que muitos que se diziam liberais vinham defendendo a concentração de poder no Estado, Spencer lembra que os verdadeiros liberais, em termos de políticas práticas, deveriam usar o método de rejeição. Ou seja, os liberais não devem lutar para criar novas leis, mas sim para rejeitar as antigas. Quanto menos lei houver, maior a chance de preservar a liberdade. O aumento da liberdade formalmente legalizada seria seguido por uma queda na liberdade de fato. O excesso de leis e regulamentações por parte do governo coloca em risco a liberdade do indivíduo. Para esses liberais legítimos, segundo Spencer, cada cidadão tem direitos que são invioláveis, seja pelo Estado ou por qualquer outra agência. Esses direitos são axiomáticos, auto-evidentes, tais como os presentes na Declaração de Independência americana. Muitos passaram a ignorar que o liberalismo antigo defendia o indivíduo contra a coerção estatal.

No texto The New Toryism, Spencer tenta explicar a confusão feita por muitos “liberais” que esqueceram essas raízes do verdadeiro liberalismo. O ganho popular como conseqüência das medidas liberais fora tão expressivo, que muitos passaram a ver esse ganho não como resultado indireto do abandono das restrições anteriores, mas como o fim em si a ser diretamente obtido. E ao procurar obter diretamente tal ganho, defenderam métodos que eram intrinsecamente opostos aos originalmente usados. Ou seja, o ganho popular é um subproduto da liberdade individual, mas quando tentam impor esse ganho através do governo, acabam matando essa liberdade e, por tabela, o próprio ganho. O cidadão acaba perdendo a liberdade para o uso de seus próprios recursos, pois o governo cria uma legislação compulsória que toma dele estes recursos e depois diz como eles serão gastos.

A questão essencial para Spencer é se as vidas dos cidadãos sofrem mais ou menos interferência, não a natureza da agência que interfere. Spencer estaria assim antecipando aquilo que Hayek defenderia depois, alegando que não é a fonte, mas a limitação de poder que evita que ele seja arbitrário. Spencer pergunta: “Se os homens usam sua liberdade de tal forma que desistem de sua liberdade, estão eles, portanto, menos escravos?”. A pergunta seguinte se mostraria bastante atual: “Se o povo através de um plebiscito eleger um homem déspota acima dele, ele continua livre porque o despotismo foi feito por ele mesmo?”. A autoridade de um corpo, mesmo que fruto da escolha popular, não deve ser considerada menos ilimitada do que a autoridade de um monarca. Uma maioria pode ser igualmente déspota, aniquilando a liberdade individual. O liberalismo defende a prática da limitação de poder, restringindo seu uso. Deve-se distinguir a coerção negativa, que impede alguém de invadir a liberdade alheia, da positiva, que impõe certo comportamento.

O texto mais profético é The Coming Slavery, onde as ditaduras socialistas são previstas como resultado inexorável das idéias socialistas. “Todo socialismo envolve escravidão”, afirma de forma direta Spencer, corroborado pelas experiências da União Soviética, China, Cuba, Coréia do Norte, Camboja etc. A idéia utópica de que todo o sofrimento social pode ser removido, e que é dever de alguém fazê-lo, é falsa e perigosa. Separar a dor dos erros seria lutar contra a natureza das coisas, e resultaria em mais dor ainda. Para Spencer, a simpatia pelas pessoas não necessariamente implica na aprovação de ajuda gratuita. Os benefícios podem resultar não da multiplicação de planos artificiais para mitigar o sofrimento, mas da sua diminuição. O tema é também atual, já que muitos pregam o assistencialismo através do governo como panacéia para os males que assolam a sociedade, enquanto, na prática, essas ações acabam gerando mais miséria e dor.

A seqüência da perda da liberdade descrita por Spencer faz bastante sentido, e foi comprovada pela experiência. Toda organização tem a tendência de se espalhar e crescer, e não seria diferente com o governo. As medidas estatais que regulam a vida dos indivíduos vão aumentando, portanto. Com o fracasso delas, um maior número de medidas passa a ser pregado, e elas vão ficando cada vez mais autoritárias. Os novos males criados pela extensão estatal pedem mais intervenção ainda. Cada intervenção adicional reforça a premissa de que é o dever do Estado lidar com estes males e assegurar todos os benefícios. O aumento de poder da organização administrativa é seguido pela queda de poder do resto da sociedade, cada vez mais incapaz de resistir. A multiplicação de carreiras públicas pela burocracia em expansão seduz membros das classes reguladas, que passam a desenvolver maior tolerância a esta intervenção. O público em geral, levado a encarar os benefícios recebidos pelas agências públicas como gratuitos, acaba pedindo mais e mais. Quanto mais numerosos forem os instrumentos públicos, mais os cidadãos passam a crer que tudo deve ser feito pelo Estado, e nada por eles próprios. As agências do governo passam a ser vistas como as únicas vias disponíveis. Os governantes que representam o povo acabam votando em leis que cedem mais poder ao governo por necessidade, já que seu partido precisa de votos na próxima eleição. Os jornalistas, dependentes da opinião pública, diariamente a reforçam, enquanto opiniões contrárias são cada vez mais desencorajadas. O resultado é a crescente escravidão.

Aquilo que fundamentalmente define a escravidão, segundo Spencer, é o trabalho sob coerção para satisfazer os desejos alheios. Não importa se seu mestre é uma única pessoa ou a sociedade toda. No socialismo, cada membro da comunidade seria escravo da comunidade como um todo. O resultado final sempre será o retorno do despotismo. A idéia de que é possível organizar a sociedade dessa forma coletivista sem a concentração de poder em poucos é uma ilusão. Os que tentam separar o “socialismo real” dos ideais socialistas não querem enxergar que não existe alquimia política capaz de obter uma conduta perfeita com base nos instintos naturais do homem. Toda experiência socialista será uma cooperação compulsória, ou seja, escravidão. Foi contra esse despotismo que Herbert Spencer lutou. Infelizmente, poucos estudam suas idéias atualmente. Muitos preferem repetir os dogmas marxistas, ainda que Marx tenha sido um falso profeta. Seus seguidores estão aguardando o fim do capitalismo até hoje. Deveriam, em vez de sonhar com isso, buscar a compreensão de que somente a cooperação voluntária é justa. Deveriam ler mais os defensores do liberalismo antigo. No final das contas, entenderiam que o mundo está dividido entre os defensores do individualismo e do coletivismo, ou seja, da cooperação voluntária ou compulsória. De um lado, a liberdade individual. Do outro, a escravidão.

quarta-feira, setembro 19, 2007

A Viabilidade do Padrão Ouro


Rodrigo Constantino

“O que uma economia em recessão precisa mais que dinheiro é tempo e liberdade.” (Llewellyn Rockwell Jr.)

Um dos maiores seguidores atuais da Escola Austríaca é Llewellyn Rockwell Jr., que foi inclusive o fundador do Mises Institute. Alguns de seus discursos e artigos foram compilados no livro Speaking of Liberty, onde um bom resumo das idéias dos economistas austríacos pode ser encontrado. Na primeira parte do livro, que foca na economia, o ataque do autor ao Federal Reserve – o banco central americano – é algo recorrente. Para Llewellyn, assim como para vários outros libertários que seguem as teorias austríacas, o banco central deveria simplesmente ser extinto. Trata-se de uma postura radical, sem dúvida. Mas como não é desprovida de sentido, creio que devamos analisar alguns aspectos da idéia.

Em primeiro lugar, Llewellyn, tal como Mises, deposita enorme importância no poder das idéias. São estas que podem levar a profundas mudanças no curso dos eventos, para o bem ou para o mal. A liberdade precisa de indivíduos corajosos que estão dispostos a manifestar “verdades inconvenientes”, apesar dos consensos. Llewellyn entende que a defesa do padrão ouro atualmente não encontra eco em lugar algum. Mas, como ele diz, não há caminho melhor para garantir que um tema estará sempre fora da pauta do que deixar de falar sobre ele. Por isso ele insiste que é fundamental continuar batendo nesta tecla, de forma que algum dia, se o sistema monetário atual colapsar e forem buscar alguma alternativa de forma desesperada, se encontre fundamentos na defesa do padrão ouro.

Os governos não gostam do padrão ouro porque ele retira o poder discricionário do Fed, criando vários limites na habilidade do banco central de inflacionar a oferta de moeda. A experiência mostra que somente a constituição não restringe o governo neste sentido. A tentação é grande demais. Seria possível um faminto ficar num banquete sem comer nada, mas não seria provável. Não deixa de ser curioso que Alan Greenspan, que presidiu o Fed por 18 anos, tenha escrito justamente nessa linha em 1966, em um livro de Ayn Rand. Ele chegou a afirmar que “o ouro e a liberdade econômica são inseparáveis”, e acrescentou que “sob o padrão ouro, um sistema de operação bancária livre trabalha como o protetor da estabilidade e do crescimento equilibrado da economia”.

Greenspan entendia que o welfare state representava um perigo à liberdade: “O padrão ouro é incompatível com o déficit crônico nos gastos governamentais”. Ele foi além: “Os defensores do welfare state foram rápidos em reconhecer que se desejassem reter o poder político, a magnitude da taxação teria que ser limitada e tiveram que recorrer aos programas de déficit maciço, isto é, tiveram que tomar dinheiro emprestado, emitindo títulos do governo, para financiar despesas em uma grande escala”. O déficit do governo sob um padrão ouro é severamente limitado. A lei de oferta e demanda não pode ser cunhada. Greenspan conclui: “Na ausência do padrão ouro, não há nenhuma maneira de proteger a poupança do confisco através da inflação”. Se houvesse, o governo teria que tornar sua posse ilegal. Não por outro motivo o governo americano proibiu a posse de ouro em 1933.

Analisando a origem do Fed, pode-se ter uma idéia melhor dos seus propósitos. Llewellyn afirma que o banco central foi criado para atender as demandas tanto do governo como da indústria de bancos, especialmente os impérios financeiros de Morgan e Rockefeller. O governo precisava de meios de financiamento independentes da taxação, e os bancos queriam um veículo de formação de cartéis, ou seja, buscavam meios de evitar que a pressão competitiva entre bancos limitasse suas capacidades de expandir crédito. Em outras palavras, os bancos queriam uma moeda mais elástica. Greenspan novamente corrobora com esta visão: “Se os bancos pudessem continuar a emprestar indefinidamente o dinheiro - reivindicou-se - nunca mais precisariam ocorrer quedas drásticas nos negócios; e o Federal Reserve System foi, portanto, criado em 1913”. E para o ex-presidente do Fed, escrevendo em 1966, ainda distante da poderosa posição, a causa da crise de 1929 pode ser encontrada no próprio Fed: “O crédito adicional que o Fed injetou na economia se espalhou para o mercado financeiro - provocando um crescimento especulativo fantástico. Em 1929 os desequilíbrios especulativos tinham-se tornado tão exagerados que a tentativa de enxugar as reservas adicionais precipitou uma aguda retração e a conseqüente desmoralização da confiança dos empresários. Em conseqüência, a economia americana desmoronou”.

Os bancos centrais não existiam antes, quando os ciclos econômicos não eram tão notados. A Teoria Austríaca para os ciclos da economia atesta que é crucial entender os períodos de expansão econômica para entender as causas das depressões. Para gerar um boom nos negócios, o banco central artificialmente reduz as taxas de juros, criando a ilusão de aumento de poupança. As empresas investem em projetos que não têm demanda real. Sem os bancos centrais, sem dúvida muitos empresários iriam errar suas estimativas, mas alguns erros seriam eliminados por outros acertos. Um erro generalizado é possível somente quando o governo cria incentivos para tanto. A fim de evitar uma ressaca necessária em alguns setores com investimentos ruins, o banco central injeta liquidez na economia, postergando, mas também agravando o problema. Seria como um bêbado injetar mais álcool para evitar sua ressaca. No final do dia, ele provavelmente terá uma cirrose.

Com isto em mente, Llewellyn compara o Fed com o governo de Admirável Mundo Novo, o excelente livro de ficção de Aldous Huxley. No livro, o governo oferece uma droga chamada soma para todos os cidadãos, tirando-os da realidade dura e fazendo com que se sintam em êxtase apesar dos problemas à volta. A atuação do Fed no sentido de estimular a economia artificialmente e evitar ajustes necessários teria o mesmo princípio, segundo Llewellyn. É preciso lembrar algo óbvio, porém muitas vezes ignorado: o governo não é um deus, assim como os homens que ocupam os poderosos cargos estatais não são impecáveis ou infalíveis. Ainda que falhas no funcionamento do mercado livre possam ser apontadas, resta ao governo o ônus da prova de que pode assumir as rédeas de forma mais eficiente. Historicamente, as evidências mostram o contrário. Os poderosos do Fed não são “sábios clarividentes”. *

Inflação significa perda de poder de compra da moeda. Mudanças relativas nos preços ocorrerão sempre num livre mercado, através de mudanças na oferta e demanda do produto. A tendência natural no capitalismo será inclusive a queda nos preços, pelos ganhos de produtividade. Os preços de produtos de tecnologia demonstram bem essa tendência. Mas quando todos os preços sistematicamente sobem a causa só pode estar na expansão monetária. O estoque de moeda aumentando leva a um valor seu menor, ou seja, inflação. E existe apenas uma força capaz de criar este cenário: o banco central. A perda de valor da moeda, é importante lembrar, beneficia os devedores à custa dos credores. E não existe devedor maior do que o governo federal.

Por fim, não se pode ignorar o moral hazard como resultado da atuação do banco central. Quando o governo salva instituições financeiras com problemas, ele age como pais permissivos, que encorajam o comportamento errado eliminando a ameaça de punição. Para os austríacos, portanto, não deveria existir emprestador de última instância, ou seja, o pagador de imposto, forçando assim a disciplina dos bancos, sem garantia de ajuda para as instituições sem liquidez. Os seguidores mais próximos da linha de Rothbard defenderiam um retorno total ao padrão ouro, assim como a abolição do banco central. Já os seguidores de Hayek pregariam um sistema competitivo de moedas privadas, onde o próprio consumidor pode selecionar qual deseja utilizar. Seja qual for a escolha, o importante é ter em mente os perigos existentes na concentração de poder arbitrário nas mãos de poucos homens, que podem, com uma canetada, causar extremo sofrimento através da inflação.

* O ex-governador do Federal Reserve, Laurence Meyer, escreveu o livro A Term at the Fed, onde fala de sua experiência nos anos que passou no banco central americano. Algumas passagens são elucidativas. Meyer diz que logo descobriu que o Fed não sabe precisamente onde a economia está ou onde ele quer que a economia vá. Em certa ocasião, após o primeiro aumento na taxa de juros depois de dois anos, Meyer foi honesto ao afirmar que “a verdade é que nenhum de nós do FOMC sabia o que aconteceria em seguida”. O FOMC é o todo-poderoso comitê que decide a taxa de juros básica da economia, assim como nosso COPOM. Tal decisão exerce profundo impacto na economia, e acaba ficando sob a tutela de alguns poucos homens. O próprio Meyer chamava a equipe de “o templo”, em parte pela obscuridade do processo decisório. É evidente que o mercado acaba tendo muita influência nas decisões do Fed. William Poole, do Fed, reconhece isso e mantém a humildade, afirmando que na maioria dos casos nada deve ser feito pelo banco central em momentos de instabilidade financeira, respeitando-se os próprios mecanismos de auto-ajuste do mercado. Mas nem sempre – ou quase nunca – isso ocorre. Seria, então, o caso de questionarmos até onde pouco mais de uma dezena de indivíduos falíveis deveriam concentrar o poder sobre o destino econômico de toda uma nação.

segunda-feira, setembro 17, 2007

O Poder Corrompe


Rodrigo Constantino

“A liberdade não é um meio para um fim político mais elevado; ela é em si mesma o mais elevado fim político.” (Lord Acton)

Muitos conhecem o famoso ditado “o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente”, mas poucos conhecem mais sobre as idéias de seu autor, o historiador católico e liberal John E. E. Dalberg Acton, ou simplesmente Lord Acton. No livro The History of Freedom foram reunidos vários de seus escritos, e sua análise sobre a liberdade na antiguidade, logo no começo da obra, tem inestimável valor. Importantes lições podem ser extraídas através da experiência dos povos antigos, tais como os judeus, atenienses e romanos. O que Lord Acton faz é justamente filtrar essas preciosas lições.

Para Acton, em todos os tempos o progresso da liberdade enfrentou seus inimigos naturais, pela ignorância e superstição, pela sede de conquista, pelo desejo de poder etc. Lord Acton conclui que em todos os tempos os amigos sinceros da liberdade foram raros, e que seus triunfos foram devidos a minorias, que teriam obtido sucesso se associando a aliados cujos objetivos freqüentemente diferiram dos seus próprios. Mas Acton reconhece que tais associações são sempre perigosas, e algumas vezes desastrosas para a própria liberdade. Ainda assim, o historiador entende que os interesses hostis à liberdade causaram menos ferimentos a ela do que as falsas idéias. As instituições que tentam preservar a liberdade acabam dependendo das idéias que as produzem e do espírito que as preserva. Por isso a preocupação com os pensamentos dos homens é crucial. A causa da liberdade, segundo Acton, deve mais a Cícero e Sêneca, por exemplo, do que às leis de Licurgo.

Por liberdade, Lord Acton entendia a garantia de que todo homem deve ser protegido ao fazer aquilo que ele acredita ser seu dever contra a influência da autoridade e maiorias, costumes e opinião. Portanto, o teste mais certeiro pelo qual podemos julgar se um país é realmente livre seria a quantidade de segurança desfrutada pelas minorias. Como um dos primeiros exemplos usados para ilustrar o que tinha em mente, Acton usou a história do “povo escolhido”. O governo dos israelitas era uma Federação, unida sem uma autoridade política, por acordo voluntário. O princípio de autogoverno estava bastante presente em cada grupo e, pelo que afirma Acton, não havia privilégios nem desigualdade perante a lei. Lord Acton respeita o fato de que uma constituição cresce de suas raízes, por um processo de desenvolvimento, e não por uma mudança essencial. Essas características estariam presentes nas origens do povo judeu, segundo Acton.

Um segundo caso mencionado por Acton é o de Atenas, na Grécia Antiga. Acton cita mais especificamente Sólon, o “mais sábio de Atenas”, assim como um “gênio político da antiguidade”. As reformas introduzidas por Sólon foram fundamentais para a ampliação da liberdade na região. As classes mais pobres eram excluídas, e Sólon as deu voz política ao garantir a eleição de magistrados. Isso introduziu a idéia de que o homem deve ter direito a uma voz ao selecionar aqueles aos quais irá confiar seu futuro e sua vida. O governo pelo consentimento acima do governo compulsório. Era admitido o elemento de democracia no Estado. O único recurso conhecido contra as desordens políticas era a concentração de poder, e Sólon escolheu o caminho contrário, da descentralização. Na essência da democracia estaria obedecer nenhum mestre além da lei. A liberdade individual tinha em Sólon um grande amigo.*

A democracia, porém, não pode ser vista jamais como simples ditadura da maioria. Para Lord Acton, se é ruim ser oprimido pela minoria, é ainda pior ser oprimido pela maioria. Afinal, existe uma reserva latente de poder nas massas a qual, caso seja despertada, a minoria raramente consegue resistir. A lição que se pode tirar das experiências passadas a este respeito é que o governo da classe mais numerosa e poderosa representa um mal da mesma natureza que uma monarquia. Pelos mesmos motivos, portanto, exige instituições que servem para proteger o governo dele mesmo, na tentativa de permitir o reino permanente da lei contra revoluções arbitrárias de opinião. Lord Acton considerava que o perigoso não era alguma classe específica ser inadequada para governar, pois para ele todas as classes eram inadequadas.

O poder deve ser descentralizado, e por esse motivo Acton defendia o Federalismo. Se a distribuição de poder entre as várias partes do Estado é o meio mais eficiente de restringir uma monarquia, a distribuição de poder entre vários Estados é o melhor caminho na democracia. Multiplicando os centros de governo ele promove a difusão do conhecimento político e a manutenção da opinião independente. Afinal de contas, o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente!

* O economista Sérgio Werlang trata da importância do legado de Sólon em seu livro A Descoberta da Liberdade. Em 594 a.C., com um grande conflito de interesses em Atenas, os cidadãos chamaram Sólon para arbitrar a questão. A escravidão por dívida, uma herança da influência mesopotâmica, era o cerne do problema. Sólon tomou seis medidas que foram muito importantes no que tange os direitos individuais. Ele, em primeiro lugar, perdoou as dívidas e aboliu a possibilidade da escravidão servir como garantia real. Depois, permitiu que todo cidadão ingressasse em juízo, caso se sentisse prejudicado. Deu também o direito a recorrer de uma decisão numa instância superior. Introduziu um sistema de votações por meio do qual poderiam ter acesso aos principais cargos públicos os cidadãos que tinham posses, mas não pertenciam a famílias aristocráticas. Estabeleceu um conselho de 400 integrantes, que foi posteriormente aumentado para 500. Permitiu, por fim, legar bens em testamento. Plutarco, sobre essa última medida, afirmou que Sólon “fez a propriedade de qualquer homem verdadeiramente dele”.

sexta-feira, setembro 14, 2007

O Trabalho na Dinamarca


Rodrigo Constantino

Em reportagem no jornal Valor de hoje (14/09/2007), com o título Dinamarca é exemplo de flexibilidade trabalhista, consta trechos muito interessantes de alguns sindicalistas dinamarqueses. O presidente da central sindical da Dinamarca, Hans Jensen, afirma: "O trabalho deve ser feito onde pode ser realizado de modo mais barato, respeitando-se as condições sociais". E o sindicalista prossegue: "Não nos opomos a que empregos migrem para outros países".

O desemprego vem caindo na Dinamarca após reformas claramente liberais. Conforme expresso na matéria, "o país flexibilizou normas trabalhistas, reduzindo garantias no emprego, para tornar o mercado de trabalho mais dinâmico, capaz de gerar empregos necessários". Hans Peter Slente, diretor de mercados da Dansk Industri (DI), a confederação das indústrias dinamarquesa, garante que "na Dinamarca, demitir é fácil e barato". O país não tem leis que regulam a jornada de trabalho, os salários nem as demissões. Tudo é definido na negociação coletiva. Foi aprovada ainda uma reforma que elevou a idade mínima de aposentadoria para 65 anos. Os sindicatos apoiaram as reformas. A última greve geral ocorreu em 1998, há quase 10 anos. Segundo Slente, os dinamarqueses são mais positivos que os demais países europeus em relação à globalização. "A globalização pode ser positiva em todo o mundo", afirma Jensen, da central sindical.

Não deixa de ser triste ler essas coisas e lembrar que muitos esquerdistas brasileiros usam o modelo escandinavo como exemplo de sucesso do socialismo. Como fica claro para qualquer um que realmente estuda os casos econômicos desses países, eles são ricos a despeito do tamanho do governo, não por causa dele. Há uma liberdade econômica na Escandinávia que faria qualquer esquerdista brasileiro bradar contra o "neoliberalismo", caso tivessem conhecimento de fato da realidade local. A esquerda brasileira consegue tachar até o PSDB de "ultra-liberal", e alguns já "acusam" o PT do mesmo "pecado". No entanto, todas as reformas necessárias para aproximar o modelo brasileiro do escandinavo são claramente liberais. Perto do Brasil, a Dinamarca é "ultra-liberal".

Marcelo, um oficial do reino da Dinamarca na mais famosa peça de Shakespeare, afirma que "há algo de podre no Estado da Dinamarca". De fato, o país poderia estar numa situação muito melhor com menos impostos, por exemplo. Mas se a Dinamarca tem algo podre, o Brasil já está em estado de putrefação!

quinta-feira, setembro 13, 2007

O Vigia Inútil



Rodrigo Constantino
Para o Instituto Liberal

O governo decide proibir a Mattel de importar qualquer brinquedo para o país. A medida ocorreu alguns dias após o recall que a própria empresa fez de alguns brinquedos específicos que apresentaram problemas. A Inmetro fará uma fiscalização nos produtos da empresa, o que supostamente já teria sido feito. Vale ressaltar que não houve ocorrência de nenhum caso de acidente no Brasil relacionado aos problemas apresentados pelos brinquedos da empresa. O diretor da Mattel no Brasil, Alejandro Rivas, considerou a ação do governo "desproporcional e nefasta". A empresa, que importa todos os seus produtos vendidos aqui, fica proibida de trazer novos brinquedos justamente na véspera do Dia das Crianças, uma das datas com maior volume de vendas.

De forma resumida, temos o seguinte: uma empresa, preocupada com sua imagem perante os consumidores, um dos mais valiosos ativos no livre e competitivo mercado, faz voluntariamente um anúncio de alguns problemas ocorridos em certos brinquedos, por precaução; o governo, que através da Inmetro tem o mandato de fiscalizar produtos com problemas, ignorara por completo qualquer risco associado aos brinquedos, tendo que partir da própria empresa o alerta aos consumidores; após deixar transparecer a inutilidade de um vigia desses, que dorme no ponto, o governo resolve penalizar a própria empresa, vetando a importação de todos os seus produtos. Como o próprio diretor da Mattel comparou, a medida é "equivalente a fechar a Volkswagem por causa de um recall em um cinto de segurança". O vigia incompetente resolve mostrar toda a sua força coercitiva depois que o próprio culpado lhe comunica o erro! Assim fica parecendo até lobby de concorrentes nacionais usando o governo para prejudicar os consumidores...

A fiscalização do governo nesses casos gera um moral hazard, pois o consumidor acaba relaxando, contando que o governo já filtra o joio do trigo. Sem isso, o consumidor tende a ficar mais alerta, tendo que assumir a responsabilidade pelo que consome. Caveat Emptor! Sem falar dos incentivos, pois a própria empresa tem interesse em manter uma boa imagem para os consumidores, já que seu lucro futuro depende disso. Tanto que foi a Mattel mesmo quem alertou para os possíveis problemas. Já o governo não tem os incentivos adequados. Os burocratas receberão exatamente o mesmo salário independente da eficiência de sua fiscalização. E exposta sua incompetência, ainda parte para uma ação radical, que prejudica ainda mais os consumidores, além de tirar o estímulo de novos alertas por parte das empresas, que ficarão receosas de uma punição severa. Desta forma, quem precisa de um vigia inútil desses?

terça-feira, setembro 11, 2007

O Paradoxo de Stalin


Rodrigo Constantino

“Por pior que seja aos olhos dos outros, nenhum homem consegue suportar uma imagem horrível e repugnante de si mesmo por muito tempo.” (Eduardo Giannetti)

Ao revisar para a publicação a sua biografia oficial, o ditador Stalin ordenou que fosse incluída uma frase mencionando que ele jamais deixou que seu trabalho fosse prejudicado pela mais leve sombra de vaidade, presunção ou idolatria. Negar dessa forma tão grotesca a vaidade é justamente confessá-la abertamente, aos brados! A questão que fica é se o ditador soviético pretendia enganar de forma deliberada seu público ou se mentia para si mesmo. Normalmente, o hipócrita é mais calculista, medindo os efeitos de seus atos e colocando-se no lugar da vítima, para não errar o alvo. Um absurdo tão flagrante desses parece mais ser um caso de enorme auto-engano mesmo. Mas nunca se sabe!

O auto-engano é uma estratégia útil para a sobrevivência e procriação das espécies. Temos inúmeros casos entre os diferentes seres vivos, desde vírus, passando por plantas, animais e finalmente o homem. Evidentemente que não faz muito sentido falar em auto-engano para animais sem consciência, pois se trata apenas de um mecanismo automático do seu instinto de sobrevivência. Mas a analogia não deixa de ser útil, quando sabemos que uma cobra-coral falsa age como a verdadeira, ainda que sem seu veneno, intimidando os possíveis predadores. Como diz Eduardo Giannetti, em seu livro Auto-Engano: “O enganador auto-enganado, convencido sinceramente do seu próprio engano, é uma máquina de enganar mais habilidosa e competente em sua arte do que o enganador frio e calculista”. O enganador embarca em suas próprias mentiras, e passa a acreditar nelas com toda a inocência e boa-fé do mundo. Assim fica mais fácil convencer os demais.

A fé dogmática na ideologia é uma arma poderosa para o auto-engano, permitindo as maiores atrocidades em nome da causa. O fervor religioso sempre trouxe consigo tal perigo, especialmente na seita socialista. Os corruptos não se vêem como tais, pois roubam “em nome da causa”, ainda que os benefícios concretos sejam bem individuais. Os assassinos são perdoados pois “os fins justificam os meios”. Entre seus líderes e seguidores, resta apenas identificar os hipócritas oportunistas e a legião de inocentes úteis, ludibriada pela fé, ou seja, os sinceramente errados. “O auto-engano coletivo em grande escala é a resultante trágica e grotesca de uma multidão de auto-enganos sincronizados entre si no plano individual”, afirma Giannetti. Os exemplos oferecidos pelo autor são a Inquisição ibérica, o nazismo e o comunismo. A cura está no pensamento independente, rigoroso com a lógica e a veracidade dos fatos. Como coloca o autor, “abrir-se à dúvida radical – à possibilidade de que estejamos seriamente enganados sobre nós mesmos e sobre as crenças, paixões e valores que nos governam – é abrir-se à oportunidade de rever e avançar”. Ou seja, “é ousar saber quem se é para poder repensar a vida e tornar-se quem se pode ser”. O princípio socrático de autoconhecimento seria parte indispensável da melhor vida ao nosso alcance.

Entretanto, Giannetti assume que “a condição humana não comporta demasiado autoconhecimento”. Em outras palavras, há um limite até onde podemos ir, sem perder a faísca das paixões e virar uma máquina fria e calculista. Conforme o “homem subterrâneo” de Dostoievski diz, “há algumas coisas que um homem teme revelar até para si mesmo, e qualquer homem honesto acumula um número bem considerável de tais coisas”.

A busca da objetividade é fundamental, portanto. Segundo Giannetti, “o ideal da objetividade cobra do sujeito do conhecimento uma disciplina que não é apenas técnica e intelectual”. A ética é imprescindível. Ele diz: “A boa conduta da mente no esforço cognitivo requer, entre outras coisas, a honestidade de não se dar como sabido o que se ignora, o respeito à evidência e a disposição de não facilitar as coisas para si mesmo”. Quantos não buscam justamente conforto em vez de fatos incômodos para as crenças preconcebidas?! Darwin chegou a criar sua “regra de ouro” metodológica, para driblar o auto-engano. Ela consistia em registrar prontamente por escrito qualquer fato empírico ou argumento contrário àquilo que ele tendia a acreditar. O auto-engano não é a ignorância simples de não saber e reconhecer que não sabe. Ele é a pretensão ilusória e infundada do autoconhecimento, uma certeza de saber sem saber na verdade. A ignorância é não saber de algo; a estupidez é não admitir esta ignorância. Mas isso não é o mesmo que negar a possibilidade do conhecimento. “Descartar a possibilidade de um conhecimento final e afirmar o caráter hipotético de todo saber não significa, contudo, cair no extremo oposto de que nada é ou pode ser conhecido”, escreve Giannetti.

O fervor religioso é uma das grandes causas do auto-engano em larga escala. Ele, com freqüência, “mobiliza aquilo que um homem tem de melhor e de mais elevado para colocá-lo a serviço do que há de pior e mais abominável”. Um exemplo citado por Giannetti é o caso do imperativo cristão de “amar ao próximo como a si mesmo”. Estender aos outros o amor-próprio é irrealista. Distribuir o amor de forma rigorosamente igualitária significa destruí-lo. Giannetti é direto: “Quem diz que ama o próximo como a si mesmo não pensa no que diz ou está mentindo – alimenta-se e dorme regularmente enquanto tem gente passando fome na esquina”. Mas o auto-engano de que realmente se acredita na máxima religiosa faz o crente se sentir bem, mesmo que não esteja professando uma verdade. Note-se que isso não é o mesmo que hipocrisia, onde o sujeito deliberadamente afirma algo sabendo ser falso. O auto-engano é, por natureza, uma ocorrência passiva, e não resultado de má-fé. Diferente do engano interpessoal, o auto-engano não é consciente ou deliberado.

O envolvimento de emoções fortes e poderosas no processo de formação de crenças é motivo de sobra para que se proceda com máxima cautela. Como bem coloca Giannetti, “o brilho intenso ofusca e é inimigo da luz”. Todos aqueles que divulgam aos ventos como são altruístas, colocando sempre o interesse dos outros acima do próprio e se sentindo o mais justo dos homens, deveriam parar para pensar friamente em sua solidão. Seus atos correspondem ao que a boca diz? Afinal, na maioria dos casos os “altruístas” não passam de egoístas exigindo o sacrifício alheio em benefício próprio. Podem ser apenas mais algumas vítimas do paradoxo de Stalin...

domingo, setembro 09, 2007

A Fábula das Abelhas


Rodrigo Constantino

"Aquilo que de pior existe em cada um, contribuiu alguma coisa para o bem comum." (Bernard Mandeville)

Publicado em 1723, A Fábula das Abelhas, de Bernard Mandeville, causaria uma reação tamanha que vários pensadores importantes comentaram a obra e ainda o fazem. O outro título usado pelo autor foi Vícios Privados, Benefícios Públicos, o que já dá uma idéia melhor do seu conteúdo central. Mandeville defendia que aquilo entendido como vício pelos homens – como a ganância, inveja, vaidade e orgulho – era fundamental para a prosperidade da nação. O desejo humano na busca do auto-interesse teria como conseqüência não intencional um caráter estabilizador para a sociedade. O “bem comum” não seria um produto da retidão das pessoas, de suas virtudes, mas sim dos seus vícios individuais. Mandeville tentou explicar a origem da moral como uma domesticação da mente selvagem. O comportamento dito moral teria surgido das reações de criaturas egoístas às opiniões de outros porque essas opiniões têm conseqüências tangíveis importantes ao seu próprio bem-estar. Para Mandeville, uma das maiores razões de porque tão poucas pessoas se compreendem é porque os escritores estão sempre ensinando como os homens deveriam ser, enquanto poucos se dão ao trabalho de mostrar como eles realmente são.

A Fábula conta, de forma irônica, como os vícios de cada abelha em particular eram vitais para a pujança econômica da colméia como um todo. No entanto, pregando como ideal as virtudes e condenando os vícios, as abelhas acabaram tendo seu pedido atendido, e seu deus colocou um fim nos vícios. Todos eram virtuosos agora. Mas não foi preciso muito tempo para que o desemprego começasse a surgir em larga escala, e a economia da colméia ficasse totalmente estagnada. Mandeville pretende mostrar a importância dos vícios, mas deixa claro que, apesar destes serem inseparáveis das grandes sociedades, e que é impossível a riqueza sobreviver sem eles, os membros particulares da sociedade que são culpados de algum vício devem ser reprovados ou mesmo punidos quando viram crimes. Ou seja: se aceita que os vícios são a força motora do crescimento econômico, mas nem por isso deixa-se de combater seus excessos. O alvo de Mandeville era aparentemente os moralistas que pintavam o homem como anjos. Seu texto pode até ser visto como um reductio ad absurdum desse moralismo, mostrando como seria na prática uma sociedade habitada somente por “santos” que abdicam de seus próprios interesses, de sua ganância.

Um dos grandes pensadores que criticou a obra de Mandeville foi Adam Smith. Em Teoria dos Sentimentos Morais, ele diz: “O Dr. Mandeville considera que tudo o que se faz por senso de conveniência, por respeito ao que é recomendável e louvável, se faz por amor ao louvor e à aprovação, ou, como ele diz, por vaidade. Observa que o homem naturalmente está muito mais interessado em sua própria felicidade do que na de outros, e que é impossível, em seu foro íntimo, preferir realmente a prosperidade destes à sua própria. Quando aparenta preferir a de outros, podemos estar certos de que nos ludibria, e de que está agindo pelos mesmos motivos egoístas e todas as outras vezes. Dentre todas as suas outras paixões egoístas, a vaidade é uma das mais fortes, e sempre fica facilmente lisonjeado e intensamente deliciado com os aplausos dos que o rodeiam”. Mas Adam Smith afirma que o desejo de fazer o que é honroso e nobre, de nos convertermos em objetos apropriados de estima e aprovação, não pode ser chamado de vaidade. O amor à verdadeira glória, segundo Adam Smith, é diferente da paixão da vaidade simples, pois é uma paixão “justa, razoável e eqüitativa, enquanto a outra é injusta, absurda e ridícula”. Ele explica: “O homem que deseja estima por algo realmente estimável nada mais deseja senão aquilo a que com justiça tem direito, e aquilo que não lhe pode ser recusado sem que se cometa alguma espécie de ofensa”. Nesse sentido, até o que finge merecer estima está reconhecendo o que é estimável. A frase de La Rochefoucauld expressa com perfeição isso: “A hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude”.

Adam Smith coloca o dedo no nervo da questão: “É a grande falácia do livro do Dr. Mandeville representar cada paixão como inteiramente viciosa, em qualquer grau de sentido. É assim que trata como vaidade tudo o que guarde alguma referência com o que são ou deveriam ser os sentimentos alheios; e é por meio desse sofisma que estabelece sua conclusão favorita, de que vícios privados são benefícios públicos”. No entanto, após a mordida, o filósofo escocês assopra, afirmando que “por mais destrutivo que esse sistema possa parecer, jamais poderia ter ludibriado tão grande número de pessoas, nem provocado um alarma tão generalizado entre os amigos dos melhores princípios, se não tivesse em alguns aspectos bordejado a verdade”.

Hayek foi um dos grandes pensadores modernos que resgatou a obra de Mandeville. Um dos pontos mais importantes que merece ser destacado é o fato de que ações individuais geram resultados não intencionais. Não é preciso chegar ao ponto de defender vícios como virtudes, pois basta reconhecer que ações voltadas para a própria felicidade podem acarretar em bem-comum. Mas nada impede que esses indivíduos sejam virtuosos, seguindo um parâmetro ético de comportamento. A ética lida com aquilo que pode ser, diferente daquilo que é. Falar em ética é falar em escolha individual. Como diz Eduardo Giannetti, em seu livro Vícios Privados, Benefícios Públicos?, “as regras do jogo e a qualidade dos jogadores são os dois elementos essenciais de qualquer sistema econômico”. Giannetti acredita que é uma “ilusão supor que o auto-interesse dentro da lei é tudo o que o mercado precisa para mostrar do que ele é capaz na criação de riqueza”. Afinal, “nenhum ordenamento moral conseguiria manter-se baseado apenas na imposição, por parte da autoridade estatal, de leis coercitivas sobre um conjunto de indivíduos isolados e recalcitrantes”. O medo não basta. A punição não é suficiente. O caráter da população importa. O capital humano é fundamental. A confiança mútua facilita muito. A ética conta. Como disse Benjamin Disraeli, “quando os homens são puros, as leis são inúteis; quando os homens são corruptos, as leis são quebradas”.

Isso não quer dizer, de forma alguma, que a tentativa de se “corrigir” a natureza humana, imposta de cima para baixo, seja desejável. O século XX já mostrou com os horrores do nazismo e comunismo o que a “engenharia” do caráter faz. David Hume já havia alertado que “todos os planos de governo que pressupõem uma grande reforma na conduta da humanidade são claramente fantasiosos”. Isso não nos impede, entretanto, de buscar enaltecer as virtudes humanas num ambiente de liberdade individual. Para Giannetti, seria a volta do senso comum: “virtudes privadas, benefícios públicos”.

sexta-feira, setembro 07, 2007

Igualdade, Valor e Mérito


Rodrigo Constantino

“Eu não tenho nenhum respeito pela paixão pela igualdade, que me parece meramente uma idealização da inveja.” (Oliver Wendell Holmes, Jr.)

No seu brilhante livro The Constitution of Liberty, Hayek trata da distinção entre valor e mérito naquele que é um dos melhores capítulos da obra. Para Hayek, o único tipo de igualdade que podemos buscar sem destruir a liberdade é aquela perante as regras gerais, perante as leis. A igualdade de resultados é totalmente incompatível com a liberdade. Está na essência dessa demanda por igualdade perante a lei, que pessoas devem ser tratadas da mesma forma ainda que sejam diferentes. Existem, já no nascimento de um bebê, infinitas características que irão contribuir para seu crescimento. Se as diferenças entre os indivíduos não importam, então a liberdade também não é importante. As habilidades, a genética, as paixões e ambições, enfim, várias características serão diferentes caso a caso. A igualdade perante a lei que a liberdade exige levará, portanto, a uma desigualdade material.

A demanda por uma igualdade de resultados costuma partir daqueles que gostariam de impor à sociedade um padrão preconcebido de distribuição. A coerção necessária para realizar essa suposta “justiça” seria fatal para a liberdade da sociedade. O ponto de largada de cada um nunca será igual. A herança genética já é diferente. Em seguida, o ambiente familiar, o tipo de educação dos pais, os círculos de amizade, enfim, inúmeras características terão influência na formação do indivíduo, sendo impossível determinar quanto de cada uma é responsável por suas escolhas. Para Hayek, quando se busca o motivador pelas demandas de igualdade nos resultados, ignorando que as pessoas são diferentes, encontra-se a inveja que o sucesso de alguns provoca nesses não tão bem sucedidos. E a inveja, segundo John Stuart Mill, é “a mais anti-social e maligna de todas as paixões”.

Em um sistema livre, não é possível nem desejável que as recompensas materiais sejam correspondentes àquilo que o homem reconhece como mérito. O mérito em questão está ligado ao aspecto moral da ação e não ao valor alcançado por ela. Se os talentos de um homem são extremamente comuns, dificilmente terá elevado valor financeiro, e não há muito que se possa fazer quanto a isso. O valor que as capacidades de alguém ou seus serviços têm para a sociedade não possui muita relação com aquilo que chamamos de mérito moral. O mérito é um esforço subjetivo, enquanto esse valor financeiro em questão é objetivamente mensurável. Um esforço em produzir algo pode ter bastante mérito, mas ser um fiasco em resultado, enquanto um resultado valoroso pode ser atingido por acidente. Podemos julgar com algum grau de confiança apenas o valor do resultado, não das intenções ou dos esforços. Em resumo, o mesmo prêmio vai para aqueles que produzirem o mesmo resultado, independente do esforço. Quem não concorda deve se questionar se aceitaria pagar mais por uma pizza somente porque o entregador veio andando, e não de moto.

Muitas pessoas, principalmente intelectuais, costumam confundir valor e mérito. No dicionário Michaelis, valor contém inúmeras definições, mas duas em especial nos interessam. Uma diz que valor é o "caráter dos seres pelo qual são mais ou menos desejados ou estimados por uma pessoa ou grupo". Esse conceito não é o do nosso interesse, e justamente por causa dessa definição muitos fazem confusão. O valor que estamos utilizando aqui é a "apreciação feita pelo indivíduo da importância de um bem, com base na utilidade e limitação relativa da riqueza, e levando em conta a possibilidade de sua troca por quantidade maior ou menor de outros bens". Em resumo, é o conceito de valor financeiro. Já mérito estará diretamente atrelado ao esforço do indivíduo.

É curioso notar que são os igualitários que brigam pela igualdade financeira, sendo, portanto, os mais materialistas. Afinal, o valor ligado à estima do caráter não depende da conta bancária. Independente do fato de um jogador de futebol ser mais rico que um médico que salva vidas, pode-se continuar estimando mais o segundo. Há mais que dinheiro na vida. Só não é correto reduzir na marra a diferença entre suas riquezas, ainda mais usando o pretexto da “justiça social”. Foi a própria sociedade que livremente decidiu avaliar o jogador com mais generosidade que o médico, dado as restrições de oferta e demanda. O jogador não tem culpa de ter um talento mais raro e demandado, e usar a coerção estatal para tentar equalizar os ganhos é a garantia da destruição da liberdade. Hayek deixa claro que considera o princípio da justiça distributiva oposto a uma sociedade livre.

Deixo a conclusão com o próprio autor: “Em outras palavras, devemos olhar para os resultados, não para intenções ou motivos, e podemos permitir que aja com base no seu próprio conhecimento apenas se também permitirmos que mantenha aquilo que os demais estão dispostos a pagar-lhe pelos seus serviços, independentemente do que se possa achar sobre a propriedade da remuneração do ponto de vista do mérito moral que o indivíduo possui ou da estima que temos por ele enquanto pessoa”.

quarta-feira, setembro 05, 2007

O PT e as FARC


Rodrigo Constantino

Com o anúncio da morte de "Negro Acácio", que foi sócio de Fernandinho Beira-Mar e era o principal responsável pelo negócio das drogas e compra de armas das FARC, volta à tona a bizarra ligação entre o partido do presidente Lula e este grupo terrorista. As FARC foram estabelecidas em 1964 como um braço militar do Partido Comunista Colombiano. Entre suas atividades encontram-se ataques com bombas, assassinatos, seqüestros, extorsão, assim como ações de guerrilha contra políticos colombianos ou alvos econômicos. O tráfico de armas e drogas são fontes de receita para o grupo também, e estimam que as FARC já seja responsável por cerca de 30% do mercado de distribuição e exportação de cocaína na Colômbia. Entre 1997 e 2004, quase cinco mil pessoas passaram pelos cativeiros mantidos pelas FARC em seus acampamentos. Um dos seqüestros famosos é o da escritora e senadora Ingrid Betancourt, que foi candidata à presidência nas eleições de 2002.

Feita esta breve apresentação do grupo, restam algumas perguntas importantes. Por exemplo: Por que o PT fundou, em 1990, o Foro de São Paulo, que conta com a participação de ditadores, como Fidel Castro, e também das FARC? Por que as reuniões desse Foro acontecem até hoje, com a participação do presidente Lula, legitimando a luta das FARC em seus registros? Um dos mentores dessa aliança nefasta foi Marco Aurélio Garcia, o "top top" que ainda é bastante próximo de Lula. Por que as FARC saudaram a vitória de Lula para presidente, sendo que o próprio preferiu o silêncio ao invés de repudiar tal demonstração de afeto vindo de terroristas? Por que o governo Lula se recusa a reconhecer as FARC pelo que são, ou seja, um grupo terrorista? Por que, durante o governo de Olívio Dutra no Rio Grande do Sul, o representante das FARC, Hernan Rodriguez, foi recebido no Palácio Piratini pelo próprio governador? Fora isso, não podemos esquecer a denúncia de dentro da própria ABIN relatando apoio financeiro de 5 milhões de dólares das FARC para candidatos petistas.

O grande amigo e aliado de Lula, Hugo Chávez, foi chamado como interlocutor entre o governo colombiano e os terroristas das FARC. Todos sabem que Chávez é próximo das FARC. O presidente Lula considera normal ter um aliado político tão próximo assim de traficantes de droga e seqüestradores? Bem que o PT e o presidente Lula podiam esclarecer esses pontos importantes sobre sua ligação com as FARC. Caso contrário, algum "golpista" poderá concluir que quem cala consente...