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terça-feira, julho 23, 2013

Jabor segue avançando

Rodrigo Constantino

Arnaldo Jabor tem tido a coragem de mudar, de rejeitar seu passado comunista, de reconhecer as tolices de sua juventude, e de abraçar bandeiras cada vez mais capitalistas. É verdade que ainda faz isso com certa timidez, e mantém o ranço antiamericano latente. Mas o progresso é inegável. Em sua coluna de hoje isso ficou mais evidente ainda. Nela, ele diz:

Na tradição do “ideologismo” brasileiro entranhado nas mentes, a ideia de complexidade é vista como “frescura” — macho mesmo seria simplista, radical, totalizante. Mas, no mundo atual, a inovação está justamente no parcial, no pensamento indutivo, em descobrir o Mal entranhado em aparências de Bem.

A ideia de uma solução “geral”, total para o crescimento da economia brasileira é a herança dos velhos tempos da esquerda centralizadora. Para haver progresso, há que esquecer “planos” ou algo assim; temos de abandonar a ideia de uma política central, como nos planos quinquenais da URSS ou nos “saltos para a frente” da China de Mao. Somente uma política econômica indutiva, descentrada e pragmática com mudanças possíveis, pode ir formando um tecido de parcialidades que acabem por mudar o conjunto. É isso que os jovens propõem.

A chave é: “ações indutivas”, conceito que é a fobia do pensamento filosófico de tradição europeia, continental. Bom mesmo sempre foi um doce silogismo aristotélico, com premissas e conclusão. Ou então uma boa causa universal que abranja tudo, o todo, o uno, do qual se deduz o particular. É uma herança da religião e do mito. Já o pensamento pragmático tem uma tradição mais anglo-saxônica (Hume, Locke, J.S. Mill), principalmente Francis Bacon e depois William James. Não é por acaso que o pensamento pragmático nas ciências e na filosofia acelerou muito mais o progresso, saído de dentro do ventre da revolução comercial e conceitual inglesa. Esta, sim, foi a nascente do moderno pensamento filosófico e político. Suas ideias regeram o ritmo do capitalismo e dominaram o mundo.

Tenho ressalvas em relação ao Pragmatismo enquanto filosofia, mas admiro a visão de gradualismo por tentativa e erro do progresso institucional presente no pensamento de David Hume, citado pelo autor. Este, assim como Vico, iria influenciar as ideias de um gigante do liberalismo moderno: Hayek. Esta linha de pensamento rejeita as utopias, as certezas absolutas que vão solucionar todos os males da sociedade, as respostas prontas, definitivas.

Popper iria resumir a ideia em seu conceito de a Grande Sociedade Aberta. Algo em construção, eliminando erros mais do que apresentando fórmulas perfeitas. Esse intercâmbio com o mundo nos beneficia. Jabor finalmente parece ter entendido isso, ainda que não consiga deixar de dar uma espetada no "mercado", ou na "globalização". Ele diz:

A chamada globalização da economia é um bonde carregado de problemas? Sim. Pode nos jogar num vazio de excluídos? Pode. Mas teve a vantagem de nos botar em contato com um pensamento mais livre. Isso foi a maior novidade: abandonar o simplismo totalizante e paranoico da tradição do marxismo vulgar que nossa esquerda adotou. A globalização rompeu as paredes da “taba” imaginária em que vivíamos. Eu tinha um orientador comunista que dizia que tudo era culpa do “imperialismo americano”. Nós éramos vira-latas tupiniquins à mercê do temível mundo externo. Hoje sabemos que a causa de nossa miséria somos nós mesmos.

O apagamento de fronteiras culturais com o mundo nos tirou de um sonho de futuro e nos colocou mais no presente.

A esquerda costuma ser fechada, protecionista, rejeitar a liberdade presente nessas trocas voluntárias entre indivíduos do mundo inteiro. Ela gosta de olhar para fora em busca de culpados por nossos problemas. Mas os culpados somos nós mesmos! E a mudança começa por aqui, justamente se abrindo mais e mais para o mundo, para absorver as boas ideias. Jabor conclui em tom mais otimista do que seu padrão recente:

Melhoramos muito com a ideia do “possível”, em vez da bravata das utopias. E isso não é covardia ou omissão; é sabedoria e prudência.

A tal “mão invisível” do mercado pode nos dar bananas, claro, mas “mercado” pode ser um termômetro dos perigos de gestões voluntaristas como temos hoje no Brasil e pode questionar certezas burras e relativizar um poder público que tende para o autoritarismo. Mudar o país tem de ser por dentro, e não uma intervenção mágica ou ditatorial.

A democracia brasileira, se for mantida, vai expelindo os micróbios que a atacam.

Por isso, neste artigo-cabeça há esperança e otimismo. Muitas novidades que nos parecem detestáveis podem estar trazendo novos conceitos operadores que ajudarão a modernizar o país.

terça-feira, julho 16, 2013

A insustentável herança maldita

Rodrigo Constantino

Gosto quando Arnaldo Jabor faz um mergulho em seu passado de comunista, pois ele vai no cerne da questão, expor os motivadores emocionais que o levaram a esta utopia assassina. Como, infelizmente, ainda convivemos com comunistas em pleno século 21, muitos no poder, esses relatos se fazem importantes para sanar o país dessa praga de uma vez por todas.

No artigo de hoje, Jabor mete o dedo na ferida: 

O que aconteceu com esse governo foi mais um equívoco na história das trapalhadas que a esquerda leninista comete sempre, agora dentro do PT. O fracasso é o grande orgulho dos revolucionários masoquistas. Pelo fracasso constrói-se uma espécie de 'martírio enobrecedor', já que socialismo hoje é impossível. Erraram com tanta obviedade (no mensalão por exemplo ou no escândalo dos 'aloprados'), com tanto desprezo pelas evidências de perigo, tanta subestimação do inimigo, que a única explicação é o desejo de serem flagrados. Sem contar o sentimento de superioridade que se arrogaram sobre nós, os 'alienados burgueses neoliberais'.

Conheço a turminha que está no poder hoje, desde os idos de 1963, e adivinhava o que estava por vir. Conheci muitos, de perto.

Nos meus 20 anos, era impossível não ser 'de esquerda'. Nós queríamos ser como os homens heroicos que conquistaram Cuba, os longos cabelos de Camilo Cienfuegos, o charuto do Guevara, a 'pachanga' dançada na chuva linda do dia em que entraram em Havana, exaustos, barbados, com fuzis na mão e embriagados de vitória.

A genialidade de Marx me fascinava. Um companheiro me disse uma vez: "Marx estudou economia, história e filosofia e, um dia, sentou na mesa e escreveu um programa racional para reorganizar a humanidade". Era a invencível beleza da Razão, o poder das ideias 'justas', que me estimulava a largar qualquer profissão 'burguesa'. Meu avô dizia: "Cuidado, Arnaldinho, os comunistas se acham médiuns, aquilo parece tenda espírita...". Eu não liguei e fui para os 'aparelhos', as reuniões de 'base' e, para meu desespero, me decepcionei.

Essa passagem é de fundamental relevância, pois mostra como essas pessoas buscam monopolizar as virtudes, de forma maniqueísta, o que os livra de ter que debater meios:

É um ridículo silogismo: "Eu sou a favor do bem, logo não posso errar e, logo, não preciso estudar nem pesquisar".

Jabor conclui:

Quando comecei a criticar o PT e o Lula, 'petralhas' me acusaram de ser de direita, udenista contra operários. Não era nada disso; era o pavor, o medo de que a velha incompetência administrativa e política do 'janguismo' se repetisse no Brasil, que tinha sido saneado pelo governo de FHC. Não deu outra. O retrocesso foi terrível porque estava tudo pronto para a modernização do País; mas o avião foi detido na hora da decolagem. Hoje, vemos mais uma 'revolução' fracassada; não uma revolução com armas ou com o povo, mas uma revolução feita de malas pretas, de dinheiro subtraído de estatais, da desmoralização das instituições republicanas. Hoje, vemos o final dessa epopeia burra, vemos que a estratégia de Dirceu e seus comparsas era a tomada do poder pelo apodrecimento das instituições burguesas, uma espécie de 'gramscianismo pela corrupção' ou talvez um 'stalinismo de resultados'.

O perigo é que os intelectuais catequizados ainda pensam: "O PT desmoralizado ainda é um mal menor que o inimigo principal - os tucanos neoliberais".

Como escreveu minha filha Juliana Jabor, mestra em antropologia, "ajudado por intelectuais fiéis, Lula poderá se apropriar da situação com seu carisma inabalável, para ocupar a 'função paterna' que está vaga desde o fim do seu governo. Pode ser eleito de novo e a multidão se transformará, aí sim, em 'massa'. O 'movimento' perderá o seu caráter de produção de subjetividades e se transformará numa massa guiada por um líder populista".

Eis o grande risco dessas manifestações nas ruas: prepararem o terreno para o retorno do "messias" salvador da Pátria, do líder das massas. Há boatos fortes de que sua saúde não permitiria. Tampouco se sabe o quanto a impopularidade de Dilma pegaria nele. Mas há o risco. E todo cuidado é pouco...

segunda-feira, julho 01, 2013

Imagina se fosse com Bush...

Rodrigo Constantino

A crise gerada pelo vazamento de informações sigilosas de espionagem do governo americano se internacionalizou. O Ministério das Relações Exteriores da Alemanha convocou o embaixador norte-americano no país, Philip Murphy, para pedir esclarecimentos sobre alegações de que a Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês) dos EUA espionou instituições da União Europeia.

Abro aqui um parêntese: não vejo Edward Snowden, o ex-técnico da CIA responsável pelos vazamentos, como um herói libertário, ao contrário de muitos colegas. Claro que há efeitos positivos no que ele fez, mas nem por isso seus atos são defensáveis, já que, para liberais como eu, os fins nobres não justificam quaisquer meios. Isso sem falar que não costumo ter muita simpatia por "heróis da liberdade" cujo alvo prioritário é sempre o governo americano, e que depois ainda buscam refúgio nas piores ditaduras mundo afora. Fecho o parêntese.

O que eu queria falar aqui pode ser resumido em uma perguntinha básica: alguém consegue imaginar qual seria a reação em geral caso essas denúncias todas ocorressem durante o governo Bush? O governo americano usando os drones de forma compulsiva e sem controle ou transparência, a Associated Press sendo monitorada pelo governo, a Receita Federal (IRS) investigando opositores políticos com mais afinco, e espionagem envolvendo até a Europa? Sério, qual seria a reação das pessoas, da grande imprensa?

Posso imaginar Michael Moore com sua corpulenta presença diária na imprensa, alegando que vive sob a pior ditadura do mundo. Noam Chomsky diria que nem Hitler chegou tão longe. A CNN não falaria de outra coisa. Sean Penn viajaria até Cuba para abraçar Fidel Castro e apontar como deveria ser um regime verdadeiramente livre. Oliver Stone diria que a América tinha que ter perdido a Guerra Fria para o mundo poder viver com liberdade sob a União Soviética. 

E não só por lá. Aqui, Arnaldo Jabor daria ataques histéricos semanalmente em suas colunas de jornal, e faria acusações terríveis na televisão. Todos ficariam chocados e não falariam de outra coisa: o governo americano sob Bush com esse histórico seria visto como a mais cruel e nefasta ditadura que o mundo já viu! Ninguém pode duvidar disso...

O fato de não ser nada parecida a reação quando é Obama no poder diz muito sobre a esquerda. Mostra como ela parte de um duplo padrão de julgamento, como ela apela para um salvo-conduto quando quem abusa do poder é "um dos seus". Sim, há críticas aqui e acolá, sem dúvida. Até porque Obama não pode mais ser reeleito, e a esquerda já prepara o terreno para outro - ou outra - messias, que virá "salvar a Pátria" e quiçá a humanidade. 

A esquerda monopoliza os fins nobres, as virtudes, e quando alguém se mostra autoritário, corrupto, vendido ou incompetente, então ela ou fecha os olhos, ou pior!, diz que o governante em questão "aderiu à direita". A esquerda precisa permanecer pura. É uma tática pérfida, nojenta, asquerosa, mas que infelizmente ainda engana muitos inocentes úteis.

Observar a reação dessa gente diante dos escândalos do governo Obama é bastante instrutivo. Trata-se de um silêncio constrangedor se comparado ao que seriam os ataques raivosos no caso de um governo Republicano. Um peso, duas medidas. Essa é a marca registrada da esquerda. É lamentável...

terça-feira, março 06, 2012

A Mulher não existe

Arnaldo Jabor - O Estado de S.Paulo

Depois de amanhã é o Dia Internacional da Mulher. E várias amigas já me pedem: "Escreve, escreve sobre nós!..." E muitas me dão pistas, dicas do que dizer. Uma delas, se disse "perua inteligente" e me escreveu: "Antes, as mulheres eram escravas passivas, hoje somos ativas, mas continuamos escravas. Mesmo sendo frígidas, temos de insinuar grandes desempenhos sexuais. Temos de prometer 'funcionamento'. Não é por acaso que eles nos chamam de 'aviões'. É só olhar as revistas masculinas. O que está acontecendo no Brasil é a libertação da 'mulher-objeto'. A publicidade é toda em cima de sexo."

É verdade, penso eu: a bunda é a esperança de milhões de Cinderelas. O corpo tem de dar lucro.

As mulheres querem ser disputadas, consumidas, como um bom eletrodoméstico. Ficam em acrobáticas posições ginecológicas para raspar os pelos pubianos nos salões de beleza e, depois, saem felizes com apenas um canteirinho de cabelos, uns bigodinhos verticais que lembram o Hitler ou bigodinhos nordestinos. A liberdade de mercado produziu o mercado da "liberdade".

Sempre me espanto com o Dia da Mulher. O psicanalista Lacan disse que "A Mulher" não existe, pois não há nenhuma coisa que as unifique. Eu nunca conheci a Mulher. Eu já amei e odiei "mulheres". Então, por que esse título genérico? Existe a mulher de burca, a stripteaser, existe a freira, a bondosa, a malvada, existe Eva e Virgem Maria, existe a histérica, a obsessiva. A "Mulher" é invenção dos machos.

Sempre que chega esse Dia Internacional, nós machistas elogiamos o lado "abstrato" das fêmeas, sua delicadeza, sua capacidade de perdão (sic), sua coragem, em textos de hipocrisia paternalista, como se falássemos de pobres, de crianças ou de vítimas. Claro que na História, as mulheres foram e são oprimidas, estupradas na alma e corpo.

Mas não é como vítimas que devemos lamentá-las ou louvá-las . Sua importância é afirmativa, pois elas estão muito mais próximas que nós da realidade deste mundo aberto, sem futuro ou significado. Elas não caminham em busca de um "sentido" único, de um poder brutal. Não é que sejam "incompreensíveis"; elas são mais complexas, imprevisíveis como a natureza. O homem se crê acima do mistério, mas as mulheres estão dentro. São impalpáveis como a realidade que o homem "pensa" que controla. A mulher pensa por metáforas. O homem por metonímias. Entenderam? Claro que não. Digo melhor, a mulher compõe quadros mentais que se montam em um conjunto simbólico, como a arte. O homem quer princípio, meio e fim.

A mulher não é um enigma. Nós é que somos, disfarçados de sólidos. Os homens são óbvios, fálicos. A mulher não acredita em nosso amor. Quando tem certeza dele, para de nos amar. O homem só vira homem quando é corneado. A mulher não vira nada nunca... Nem nunca é corneada, pois está sempre se sentindo assim... Como no homossexualismo: a lésbica não é veado.

A mulher precisa do homem impalpável. As mulheres têm uma queda pelo canalha (cartas indignadas para a redação). O canalha é mais amado que o bonzinho. Ela sofre com o canalha, mas isso a legitima, pois ela quer que o homem a entenda e o canalha lhe dá um sentido claro com sua viril antipatia. As mulheres não sabem o que querem; o homem acha que sabe. O masculino é certo; o feminino é insolúvel. A mulher é metafísica; homem é engenharia. A mulher deseja o impossível; desejar o impossível é sua grande beleza.

Elas ventam, chovem, sangram, elas têm inverno, verão, TPMs, raiam com a luz da manhã ou brilham à noite, elas derrubam homens com terremotos, elas nos fazem apaixonados porque nelas também buscamos um sentido que não chega jamais. Elas querem ser decifradas por nós, mas nunca acertamos no alvo, pois não há alvo, nem mosca.

Daí o pânico que sentimos diante dessas forças da natureza, com nossas gravatas da cultura, daí o ódio que os primitivos cultivam contra elas, daí os boçais assassinos do Islã apedrejando-as até a morte. As mulheres são sempre várias. Isso não as faz traidoras; nós é que nos achamos "unos". Só os autoconfiantes são traídos. Esta é uma das razões do sucesso das putas. O que buscamos nelas? Os homens pagam para que elas não existam, para que sejam úteis, sem vida interior. Pagamos a prostituta para que nos dê uma trégua, para que não nos confunda, não nos traia. Nós nos deixamos enganar e ela finge que não nos engana. Ela nos despreza, claro, mas muitos preferem essa humilhação consentida, em vez de um amor puro e perigoso. A prostituta só ama o cafetão porque ele a esbofeteia e lhe dá o alívio de se sentir injustiçada.

O único grande mistério talvez seja a divisão entre os sexos. Por mais que queiramos, nunca chegaremos lá. Lá, aonde? Lá na diferença radical onde mora o "outro". Há alguns exploradores: os veados, sapatões, travestis, que mergulham nesse mar e voltam de mãos vazias, pois nunca saberemos quem é aquele ser com útero, seios, vagina, aquele ser maternal, bom, terrível quando contrariado no "ponto G" da alma. Por outro lado, elas nunca saberão o que é um pênis pendurado, um bigodão, a porrada num jogo do Flamengo, um puteiro visitado de porre, nunca saberão do desamparo do macho em sua frágil grossura. Elas jamais saberão como somos. O amor é a tentativa de pular esse abismo. Eu sou hoje o que as mulheres fizeram comigo ou o que eu aprendi com elas, no amor ou no sofrimento. Eu descobri defeitos e qualidades que me formaram, como acidentes que me foram desfigurando. O que aprendi com elas? Não tenho ideia, mas sei que me mudaram. Eram como quebra-cabeças: ao tentar armá-los, eu achava que sabia tudo, mas entrava em novos labirintos. Com elas, loucas, sóbrias, boas e más, descobri que não tenho forma nem lógica e que sempre me faltará uma peça na charada.

terça-feira, setembro 06, 2011

Tenho saudade de mim

Arnaldo Jabor - O Estado de S.Paulo

Estava a ler o texto de Adauto Novaes (nosso filósofo sem torre de marfim) sobre a preguiça - tema de seu seminário/livro atual. Na realidade, são estudos sobre a lentidão, neste mundo cada vez mais veloz. E, aí, tive saudades da calma, do princípio, meio e fim, tive saudade das "geladeiras brancas e dos telefones pretos", das manhãs, tardes e noites, separadas pela luz que se coloria do rosa ao negro e se apagava aos poucos, tive saudade das mortiças casas de família, até da infelicidade de antigamente - de novela de rádio -, de lágrimas furtivas, dos casais com olhos sem luz, depois de casamentos esperançosos com buquês arrojados para um futuro que ia morrendo aos poucos.

Estou com saudades de tudo. De mim, inclusive. "Saudades" ou "saudade"? Tenho saudade (s) de meu velho professor de português, magrinho, irritadiço e doce, Luis Vianna Filho, que me bradava: "O senhor não tem acento circunflexo!", apontando meu nome que meu avô árabe registrara "Jabôr". E continuava: "Jabor é o certo. A única palavra dissílaba da língua terminada em "or" que tem circunflexo é "redôr", para diferenciar de "redor, em volta de", pois redôr é o pobre-diabo que fica puxando o sal nas salinas, com um rodo".

Lembrei-me dos miseráveis "redôres" de Cabo Frio, lembrei de minha juventude quando achei, por acaso, uma velha fotografia de jornal, em preto e branco, da passeata dos Cem Mil em 1968 na Cinelândia. No meio da multidão da foto, vi emocionado um pequeno rosto granulado - eu mesmo, ali, sentado no chão, ouvindo os discursos de Vladimir Palmeira e (talvez) de Dirceu -, bonito, cabelo longo, hippie guerreiro.

Tive uma nostalgia do passado até com a recente "reprise" de José Dirceu na mídia como poderoso chefão dos soviéticos que, aliás, aproveitaram os últimos escândalos para reciclar o lixo bolchevista de "controlar a Imprensa". (Eles não desistem). Fiquei nostálgico porque Dirceu era também uma sobrevivência do passado em minha vida. E tive uma bruta saudade da utopia. Sempre critiquei o Dirceu porque ele, do passado em preto e branco, tinha querido invadir o presente com uma subversão regressista, que poderia nos jogar de volta a um tempo morto. Muito mais do que os milhões desviados do "mensalão", critiquei-o ideologicamente, porque ele liderava uma tendência, viva ainda hoje, de se "tomar o Estado", "desapropriando" o dinheiro público pelo "bem do povo". Dirceu caiu por uma tentativa que mais uma vez falhou, em nossa esquerda de trapalhões, como foi em 63 ou em 68, no Congresso de Ibiúna.

Mas, mesmo assim, fiquei com saudade de mim mesmo. Tenho saudade de mim ali, com o rosto cheio de esperança na passeata, achando que mudava a história e que o mundo era fácil de mexer.

Como eu gostaria de explicar aos jovens de hoje o que era a infalível "certeza" daquela época remota, o que era a delícia de viver sentindo-se no "bom caminho", na "linha justa", salvando o futuro. Hoje, ninguém sabe o que era o sentimento de harmonia, de totalidade, em um mundo fragmentado e frio. Hoje, os meninos vivem em galáxias de informações, quando não há mais lugar para "A Verdade". Os jovens que nascem no grande deserto virtual não sabem que vivíamos num rio que corria para o futuro, em direção a uma felicidade completa, com lógica, com Sentido. Tenho saudade do futuro que hoje se espraia como uma grande enchente suja, sem foz, um deserto sem ponto final. Hoje sabemos que não há mais futuro nem chegada - só caminho.

Tenho saudade do amor da juventude, da minha namorada comunista - nós dois no sofá-cama do "aparelho" clandestino do PCB em Copacabana, o sofá-cama rasgado, com a mola aparecendo, onde nos amávamos antes da reunião da "base" com medo que chegasse o supervisor, um "camarada" com um doce nariz de couve-flor rosado e tristes sapatos pretos com meias brancas, que nos falava, melancólico, do imperialismo norte-americano. Tenho saudades dela, linda, corajosa, no apartamentinho com o cartaz dos girassóis do Van Gogh e uns livros da Academia Soviética, numa prateleira sobre dois tijolos.

Para nós, comunas, até a morte era pequena, como nos ensinava o camarada de nariz rosado: "O marxismo supera a morte, pois uma vez dissolvido no social, o indivíduo perde a ilusão de existir como pessoa. Ele só existe como espécie. E não morre!" E eu, marxista feliz, sonhava com a vida eterna...

Tenho saudade das madrugadas cheias de esperança, as madrugadas políticas, a boemia de esquerda, soldados de uma guerra imaginária. Meu Deus, como eu era importante, como me senti útil quando ajudei um pouco a luta armada, quando levei no meu fusca um casal de feridos sangrando no banco de trás, até um "aparelho", quando o líder da célula pegou o volante e eu fui ao lado, de olhos fechados para não saber onde estávamos - se bem que espreitei pela fresta das pálpebras e vi o casal mancando em direção a um prédio. Tenho saudades dessa trágica solidariedade, mas tremi nesse dia, pois comecei a entender que não havia apenas um deserto à nossa frente, mas uma avalanche de obstáculos imensos e que íamos acordar de um sonho para um pesadelo. Entendi que éramos fracos demais para moldar a realidade e que a vontade não bastava, pois as coisas comandavam os homens e a vida tem um curso próprio e misterioso. Entendi que ser político e lutar pelo futuro exige vagar e respeito pela insânia do mundo e que a tragédia é parte essencial da vida e que tentar saneá-la pode levar-nos a massacres piores. Entendi que luta política se faz com humildade e que só a democracia é revolucionária no Brasil. Fora isso, é o desastre. Mas, tenho saudade da mistura de poesia com revolução que era nossa vida, tenho saudade desse narcisismo onipotente e inocente, tenho saudade da esperança e da ilusão.