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sexta-feira, abril 27, 2012

Catolicismo e Liberdade

Rodrigo Constantino

"A moralidade humana, até mesmo a mais elevada e substancial, não é de modo algum dependente da religião, ou necessariamente vinculada a ela." (Humboldt)

Para a ala fundamentalista da direita religiosa que pensa que somente o catolicismo pode enfrentar a revolução esquerdista no campo da moral, vamos aos dados. Pelas últimas pesquisas disponíveis no CIA World Fact Book, a quantidade de gente que se dizia sem religião alguma (ateus ou agnósticos) era: Reino Unido (23%); Nova Zelândia (32%); Holanda (42%); Austrália (19%); Canadá (16%); Brasil (7%); Argentina, Venezuela e Bolívia praticamente inexistente (quase todos se dizem católicos nesses países, ainda que muitos não-praticantes). Já a quantidade de católicos nos países ricos citados é significativamente menor do que aquela nos países latino-americanos acima.

Pergunto: de onde é que veio esta idéia maluca de que o catolicismo é um bom obstáculo ao esquerdismo revolucionário? Pelo que consta, Reino Unido, Holanda, Austrália, Nova Zelândia e Canadá são países bem mais prósperos e LIVRES do que Venezuela, Brasil, Argentina e Bolívia. Na Holanda, há ampla tolerância às liberdades individuais, o consumo de maconha é liberado, a eutanásia alivia a dor e o sofrimento de 3 mil pessoas por ano (e há mais demanda), e o aborto é legalizado (como ocorre em vários países desenvolvidos). Mas, segundo esta direita radical, isso tudo é parte da agenda de tomada de poder da esquerda. Quem se diz liberal e defende a legalização das drogas ou do aborto, por exemplo, não passa de um inocente útil dos marxistas, segundo esses "conservadores" medievais. Eles se colocam, em suma, como os únicos capazes de enfrentar o PT, pela via religiosa e moral. Nada mais falso. 

Ora bolas, se é justamente nos países com maior presença católica e sem tais liberdades que a esquerda tem deitado e rolado, como acusar os liberais de massa de manobra dos marxistas? Como fica claro, quando os fatos contradizem a teoria dogmática, pior para os fatos!

Enquanto isso, eu pretendo seguir meu combate em defesa das liberdades individuais em um estado laico, sem ser intimidado pela patrulha tanto dos petralhas como dos conservadores fanáticos. 

terça-feira, março 13, 2012

Do crucifixo público

Mensagem que postei no blog do Reinaldo Azevedo:

Prezado Reinaldo, apenas para aumentar o coro dos ateus com algum bom senso e conhecimento histórico, afirmo que estou deste mesmo lado seu e do Diogo Mainardi nesta batalha. Sou ateu sim, graças a Deus! Mas nem por isso vou cuspir na tradição cristã, indissociável da cultura ocidental. Esse ataque aos crucifixos em locais públicos é uma bobagem de ateu militante (ou seja, crente de uma nova seita) na melhor das hipóteses, ou uma deliberada e perigosa campanha esquerdista contra certos valores nobres aos liberais e conservadores de boa estirpe, na mais provável das hipóteses. Continue a boa luta! Abraços, Rodrigo Constantino.

quinta-feira, fevereiro 23, 2012

Sinais

Rodrigo Constantino

(O texto abaixo é o primeiro conto que o autor deste blog resolveu escrever, navegando por mares até então desconhecidos. Não se sabe se outros virão após esta estréia)

Ricardo abriu os olhos de repente. Ver ou não ver o relógio, eis a questão! Tomado por um intenso receio, ele já sabia não ter mais alternativa. Esticou a mão em meio à escuridão e puxou o relógio, colocando-o bem em frente aos seus olhos arregalados. 3:00. Não era 2:59, tampouco 3:01, mas sim 3:00, com uma precisão suíça. Tudo o que ele não desejava, ou achava que não desejava.

Subitamente, um forte calafrio tomou conta de seu corpo, da ponta dos pés até o último fio de cabelo. Estava suando frio. Ele não podia acreditar no que via. Em nítido desespero, cutucou com a delicadeza de um ogro sua mulher, Alissa, que dormia profundamente. Com brados apavorados, disse em sua voz rouca e trêmula:

- Acorda, Alissa! Acorda! Veja! São três em ponto! O que isso quer dizer? Será Ele? Caramba! Uma vida inteira de crenças puramente racionais colocada abaixo em um segundo! Não pode ser. Meu Deus!

- Calma, Ricardo! Você é muito bobo... fica calmo! Isso não é nada. Acontece. É pura coincidência. Seu relógio biológico foi programado para te despertar nesta hora. Deixa eu dormir que amanhã tenho que acordar cedo para trabalhar.

Mas a adrenalina já tinha consumido cada milímetro do corpo de Ricardo, totalmente retesado. Antes de ir dormir, na noite anterior, ele ainda tinha dito para Alissa, com ar jocoso:

- E se eu acordar às três horas em ponto? Isso vai ser claramente um sinal, um aviso.

Alissa bem que tinha alertado, com um toque de clarividência, que se isso acontecesse mesmo, tudo que ela queria era ser deixada em paz, dormindo. Mas isso já era pedir demais. Naquele momento, Ricardo soube a definição de medo, de uma forma que palavras não podem explicar.

Também, pudera: tudo conspirou contra o pobre coitado naquela noite! Parecia que os deuses tinham apenas sua existência em mente. Ele queria ler um livro leve, algum conto de humor de Tchékhov, algo que o fizesse relaxar para dormir melhor. Mas na minúscula travessia do escritório ao quarto, ele deparou com sua mulher e um filme instigante. Tratava-se de “O Exorcismo de Emily Rose”. Tinha que ser justo naquela noite! Com isso ele não contava.

De forma quase automática, sentou-se ao lado de Alissa e começou a acompanhar com interesse o filme. Ali, possivelmente, ele já sabia ter cometido um erro. Ou não seria um erro? Mas o fato é que não desgrudou mais os olhos da tela. E uma das partes que mais lhe chamou a atenção foi justamente quando o padre explicou o significado bíblico daquele horário, três horas da madrugada, que a sua advogada havia acordado ao som da gravação de uma suposta possessão de Emily. Era nada menos que a hora dos demônios, o inverso das três horas da tarde, um horário divino, quando Jesus teria sido morto. Neste horário, 3:00, os gatos costumam miar pois vêem os espíritos malignos.

Em qualquer outro dia, em qualquer outra hora, isso tudo teria sido motivo de piada para Ricardo. Ele sabia melhor! Já tinha lido Hume sobre as origens naturais das religiões, sabia com Popper que buscamos sempre confirmar nossas teorias em vez de refutá-las, conhecia com Nietzsche as motivações humanas, demasiado humanas por trás dos misticismos. Ou não sabia? Era justamente esta dúvida, novidade trazida bruscamente pela curiosa rede de coincidências daquela noite, que tanto o assustara. Pois tinha um detalhe extra: era noite de fortes ventos uivantes, prenúncio da tempestade que se aproximava. As portas de sua casa batiam como se uma mão invisível quisesse deliberadamente zombar de seu pavor. O assobio do vento forte remetia diretamente aos filmes de terror de sua infância. E justo naquela madrugada! Era acaso demais até para um ateu racional feito Ricardo!

Naquela madrugada, Ricardo foi salvo pelo Valium de sua mulher. A medicina poderia, uma vez mais, conter os arroubos místicos do ser humano. Mas a semente da dúvida já havia sido plantada na mente cética de Ricardo. Suas certezas davam lugar à angústia. E se aquilo foi um aviso? E se foi uma mensagem? Afinal, a racionalização serve justamente para encaixar os fatos em nossas teorias, mas nada pode mudar a imagem que os olhos remelentos de Ricardo captaram naquela madrugada: 3:00. Se ao menos fosse 2:59! Por que não 3:01? Mas não! Tinha que ser exatamente 3:00. Que baita relógio biológico esse, sendo que Ricardo sequer sabia que horas tinha se deitado para dormir. Um legítimo Hublot natural, só se for!

Desde então, quando Ricardo acorda no meio da madrugada, sente-se tentado a olhar o relógio, talvez em busca de um novo “sinal”, talvez para se convencer de que coincidências, por maiores que sejam, de fato existem. Mas na maioria das vezes, ele prefere simplesmente ignorar o relógio e tentar retomar o sono, pensando em outra coisa qualquer – quando isso é possível. Vai que ele olhe aquele maldito 3:00 novamente! Para que produzir “prova” contra si mesmo? Para que desafiar os demônios que hibernam em um canto esquecido de sua mente? Quem procura, acha! Afinal, já diz o famoso ditado: “No creo en las brujas, pero que las hay las hay”. Ainda que seja uma bruxa criada das profundezas de uma mente perturbada. Quem poderia realmente dizer?

O fato é que um ano depois desta fatídica noite, Ricardo vai dormir novamente com esta história na cabeça. Ele havia conversado sobre religião durante o dia, defendendo seu ateísmo publicamente e ridicularizando o poder das orações. Nada como o tempo para apagar aquelas lembranças do medo, do verdadeiro pavor que sentira naquela madrugada, desafiado pelo Desconhecido em suas mais sólidas crenças. Antes de dormir, ele pensa no horário mágico, e questiona qual seria sua reação se acordasse uma vez mais às três horas em ponto. Sorri e vai para a cama, razoavelmente relaxado.

Na madrugada, sua cadela de estimação, que sempre dorme no quarto do casal, começa a andar de um lado para o outro, fazendo um barulho irritante com suas patinhas sobre o piso de madeira, extremamente agitada. Ricardo acorda, abre os olhos e pensa se olha ou não a maldita hora. Afinal, seu suposto relógio biológico não pode controlar também as vontades de sua cachorrinha, pode? Olhar ou não olhar a hora, eis a questão! Há escolha? Ricardo tateia com a mão sua cabeceira, acha seu telefone, e clica no botão para ver o horário digital e luminoso. Lá estava estampado, bem diante de seus olhos incrédulos: 3:00.

segunda-feira, fevereiro 06, 2012

Senhorita Christina

LUIZ FELIPE PONDÉ, Folha de SP

Há algumas semanas, eu escrevia sobre "exus" e sua "ciência das mulheres". Muitos leitores estranharam a conversa entre o niilista e uma entidade sobrenatural. Lamento dizer que também já conversei com (supostos) "extraterrestres".
Sempre nutri um interesse específico por almas penadas. Não por acaso, tornei-me, entre outras coisas, um estudioso de religião.
Para alguém como eu, dado a uma sensibilidade monotonamente cética, espanta como há 300 mil anos (desde o Paleolítico), mais ou menos, a humanidade crê em e vive cercada de seres sobrenaturais atormentados que nos atormentam.
As almas que padecem como se fossem vivas me encantam. Uma amiga minha costuma dizer que o mundo do além é pior do que este em que vivemos. Esta forma de crença em espíritos me apetece.
A forma segundo a qual, como apresenta o horroroso filme "Nosso Lar", espíritos desfilam seus modelitos batas hippies à la Roma antiga e suspiram ares de amor por toda a humanidade me entendia profundamente.
Portanto foi a agonia do sobrenatural, o possível desespero sem fim da alma humana nas suas variadas formas, desde o pecado original judaico-cristão até o abismo sem fundo de espíritos condenados às paixões humanas mais baixas e eternas (enfim, o mal na sua forma encarnada) o que me levou ao estudo das religiões, e não qualquer forma de fé em divindades ou ódio ideológico (comum em especialistas em religiões) contra as religiões.
Sou imune à dependência ou necessidade psicológica que caracterizam a maioria dos crentes. Tampouco partilho da falsa virtude intelectual que alimenta o orgulho infantil de muitos ateus.
Parece ter sido algo semelhante que levou o romeno Mircea Eliade (1907-1986) a se tornar um dos maiores historiadores da religião.
Eliade começou sua carreira escrevendo, junto com seu doutorado, sobre mística hindu, ficções de terror, e o título desta coluna tem a ver com uma boa notícia para quem aprecia a obra desse grande intelectual romeno.
A editora Tordesilhas acaba de publicar entre nós, numa edição muito bem-acabada, o romance gótico "Senhorita Christina", de 1936, de Mircea Eliade ("Domnisoara Christina", em romeno).
A edição traz um excelente posfácio analítico assinado por Sorin Alexandrescu (especialista em literatura romena e sobrinho de Mircea Eliade). Para Alexandrescu, Eliade descreve um mundo entre a carne, a morte e o diabo. E seu romance nos leva para esse mundo.
Senhorita Christina, a personagem principal do romance que carrega seu nome, é uma "strigoi".
"Strigoi", em romeno, significa um ser sobrenatural maldito, meio humano, meio monstro, um morto-vivo. O famoso vampiro é uma forma de "strigoi".
A cultura ancestral romena é saturada de narrativas de "strigoi".
O pessimismo na Romênia brota do solo dos Cárpatos e da Transilvânia. Vem junto com o leite materno. Basta lermos outros romenos ilustres da mesma geração de Eliade, como o filósofo Cioran e o dramaturgo Ionesco.
"Strigoi" são sedentos de sangue humano, assim como da vida dos mortais, que são consumidos por esses infelizes atormentados para quem o fardo maior é saber que a morte pode não ser um descanso.
Christina, uma mulher linda, sensual e rica, morta aos 20 anos por um amante, depois de uma vida devassa, atormenta a propriedade onde vivia e que, agora (quase 30 anos após sua morte), é habitada por sua irmã e duas filhas.
Igor, um pintor famoso, apaixonado por uma das sobrinhas da vampira Christina, se hospedará na propriedade. A infeliz vampira se apaixonará por ele e tentará desesperadamente seduzi-lo.
A obra foi considerada por muitos um livro pornográfico, devido às cenas eróticas entre a morta Christina e o pintor Igor.
Ao contrário do que se espera, Christina sofrerá como qualquer mulher apaixonada devorada pelo desejo erótico negado. Suas habilidades monstruosas emudecem diante do amor impossível pelo mortal Igor.
O livro é uma história de amor e desejo como maldição eterna, por isso é uma obra romântica que fala da alma sempre presa entre o corpo e o mal. Sem a esperança da morte, Christina sofrerá.

segunda-feira, dezembro 26, 2011

Saudades de Deus

LUIZ FELIPE PONDÉ, Folha de SP

Tem coisa mais monótona do que discutir sobre a existência ou não de Deus? Ninguém crê em Deus "por razões lógicas". Isso é papo furado. Ninguém "decide" ter fé.
Tentar provar que Deus existe porque ele seria "uma necessidade da razão" me parece um engodo.
Primeiro porque a razão é risível em suas necessidades, como diria o cético Michel de Montaigne (século 16). A pergunta pela origem de tudo que existe (como numa espécie de aristotelismo aguado) não prova nada. Temos inúmeras necessidades que não são autoevidentes -por exemplo, que o bem deva vencer ao final das coisas.
Muitas vezes o mal vence e pronto. Quase sempre. Por outro lado, é interessante se pensar de onde veio a matéria que explodiu um dia e o lugar onde ela explodiu.
Mas isso nada prova acerca do Deus ocidental. O princípio pode ser uma mecânica estúpida.
Aliás, o chamado "argument from evil" (argumento a partir do mal) do ateísmo é famoso. Autores grandes como Dostoiévski e Kafka, entre outros, já o frequentaram de forma brilhante.
O argumento basicamente é o seguinte: se Deus é bom, por que o mundo é mau? Alguns já chegaram a supor que Deus seria mesmo mau, como o próprio Kafka.
Duas questões são importantes apontar nesse debate, uma com relação aos crentes, outra aos ateus.
Primeiro os crentes. Uma falácia comum por parte dos crentes é supor que seria impossível você ser uma pessoa razoavelmente moral sem alguma forma de religião. A história prova que ateus e crentes dividem o mesmo lote de miséria moral. Pouco importa ser ou não crente.
Pessoalmente, acho que o acaso decide: o temperamento (o acaso de você ter nascido "assim ou assado") é quase sempre o juiz do comportamento humano e não "valores" religiosos ou éticos seculares (não religiosos).
Portanto, a tentativa de afirmar que, se você é ateu você necessariamente não é "bom", é pura falácia. Tampouco penso que uma religião faça falta para todas as pessoas. Muita gente vive sem crise sem acreditar em coisa nenhuma "do outro mundo". Isso não significa que ela seja sempre feliz (tampouco os religiosos o são), a (in)felicidade depende de inúmeros fatores.
E mais: "crer ou não crer" não é algo que você escolhe, "acontece". Grandes teólogos como Santo Agostinho, Lutero e Calvino diziam que a "fé é uma graça" (simplificando a coisa), alguns receberam o dom e outros não (portanto, ela "acontece", como eu dizia acima, não é você quem escolhe ter ou não). Acho essa ideia bem mais elegante do que esse papo furado acerca das necessidades racionais, sociais, morais ou psíquicas da crença.
Quanto aos ateus, acho risível a ideia de que o ateísmo seja uma "conquista" da razão ou de alguma forma de rigor moral ou "coragem cosmológica".
Nada disso, como já disse antes, e repito, até golfinhos conseguem ser ateus em sua maravilhosa vida aquática. Fiquei ateu quando tinha oito anos.
O ateísmo me parece, entre todas as hipóteses sobre o universo, a mais fácil, simples, rápida e quase "fast food theory" (teoria fast food).
Não precisamos nos esforçar muito para perceber que podemos talvez um dia descobrir a causa "natural" do universo, ou acabarmos como espécie antes de descobrir qualquer coisa. E "who cares" se sumirmos um dia?
E mais: é quase evidente que somos uma raça abandonada na face da Terra e a indiferença dos elementos naturais para conosco (sejam eles externos ou internos ao nosso corpo) salta aos olhos.
E mais: a possibilidade de estarmos sozinhos é sempre mais fácil do que acompanhados por um ser maravilhoso, dono do universo e que sabe cada fio do cabelo que você tem na cabeça.
Não há nenhuma evidencia definitiva de que Deus ou que qualquer outra entidade divina exista. O ônus da prova é de quem crê. Além do fato de que os japoneses, caras bem inteligentes, não creem em Jesus na maioria das vezes.
Acho Deus uma hipótese acerca da origem das coisas mais elegante do que a dos golfinhos. Mas, por outro lado, a ideia de que um dia o pó tomou consciência de si mesmo e constatou sua dolorosa solidão cósmica é bela como uma ópera.