quarta-feira, dezembro 17, 2008

Ética no Lixo



Rodrigo Constantino

Acabei de voltar dos Estados Unidos, e logo vejo na capa de O GLOBO o escândalo do roubo de bens doados para as vítimas da catástrofe em Santa Catarina. O contraste é gritante demais! É o que separa uma civilização da barbárie. Não que os Estados Unidos sejam perfeitos, o que claramente não é o caso. Mas o abismo que nos separa da nação que os "pais fundadores" ajudaram a criar parece quase intransponível algumas vezes. O aspecto cultural faz toda a diferença. As instituições são fundamentais, mas já são reflexo da cultura, da mentalidade do povo. Infelizmente, a cultura nacional é aquela da malandragem. Nos Estados Unidos, ainda predomina a cultura da confiança.

Cito dois casos rápidos para ilustrar a coisa. No primeiro dia no parque de diversões Epcot Center, após muitos anos sem visitar a Disney, deixei o carrinho de criança solto, com várias coisas dentro, para ir numa atração. Na volta, estava um pouco tenso para verificar se o carrinho estaria lá, e o principal, com tudo dentro. Só mesmo um brasileiro para ter esse receio. Claro que tudo estava exatamente como eu havia deixado. Dali em diante, a tranqüilidade era total em deixar o carrinho com várias coisas dentro, incluindo compras. Ninguém mexe. Ninguém pega nada. Alguém consegue imaginar algo semelhante no Brasil?

O segundo caso que menciono é o café da manhã no hotel. No primeiro dia, recebi três comandas, uma para cada membro da família. No segundo dia, a mesma coisa. Quando recebi apenas duas comandas no terceiro dia, estranhei e comentei com a garçonete. Eu pensava que a quantidade de comandas tinha que ser a mesma da quantidade de pessoas, para apresentação no final e controle do restaurante. Nada disso! Ela me explicou que as comandas servem apenas para marcar o que foi consumido, e que se eu achasse uma suficiente para a família toda, não tinha problema algum pegar apenas uma. Mas ora bolas, o que impede alguém de pegar duas comandas, consumir tudo marcando numa delas, e no final apresentar a outra vazia ou praticamente vazia? Nada, além da ética individual. O restaurante confia na honestidade dos clientes. Isso só parece viável num ambiente que estimula a ética individual. Ao que me parece, o simples ato de especular sobre o risco da malandragem já é resultado do convívio numa cultura podre, onde a moral foi jogada no lixo.

Nem vou citar outros casos, ou focar na qualidade das ruas, na possibilidade de dirigir à noite com os vidros abertos parando nos sinais de trânsito, etc. A idéia era apenas destacar, através de exemplos simples do cotidiano, a diferença que faz viver numa sociedade de confiança, e em outra onde a malandragem reina. Recomendo a leitura do livro "A Sociedade de Confiança", do francês Alain Peyrefitte. E abaixo segue meu artigo sobre os caminhos preocupantes da ética no país, escrito em 2006. Ou mudamos a mentalidade do povo, a cultura nacional, ou estaremos fadados a viver na mediocridade total, com casos como esse do desvio de doações se repetindo com mais freqüência ainda.

A Ética no Lixo

Rodrigo Constantino

“Não se queixe da neve no telhado da casa do seu vizinho, quando a soleira da sua porta não está limpa.” (Confúcio)

Não temos o direito de exigir uma determinada conduta ética dos nossos vizinhos quando nós mesmos a ignoramos por completo. Dizem que o exemplo correto vale por mil palavras na educação dos filhos. Creio estarem certos. A ética da malandragem, o “faça o que eu digo e não o que eu faço”, abre os portões do caos. Se queremos viver em uma sociedade organizada e de confiança – e temos todos os interesses individualistas para desejar isso – devemos abandonar urgentemente essa postura imoral de cobrar dos outros o que não respeitamos individualmente.

A popular “lei de Gérson”, de tentar tirar vantagem ilícita em cima de todos o tempo todo, cria um ambiente totalmente hostil ao desenvolvimento da sociedade. A relevância do império da lei e da confiança mútua não pode ser subestimada para o sucesso de uma nação. Saber que o próximo irá respeitar as regras isonômicas, e que quando não o fizer será punido, é um ótimo estímulo ao bom andamento das trocas voluntárias entre os cidadãos. Por outro lado, quando impera a lei da selva, quando cada um tenta apenas tirar proveito da inocência alheia ou se organizar para defender seus interesses, por mais injustos e nefastos que sejam, temos um convite irresistível ao atraso. Nenhuma civilização progride decentemente desta forma.

Não fazer com o próximo aquilo que você não gostaria que fizessem contigo é um aforismo bastante razoável, de claro apelo individualista, mas que gera um bom resultado para o coletivo. Infelizmente, esta máxima tem sido bastante ignorada em nosso país, desde os pequenos atos até as decisões que alteram o rumo da nação. Quem realmente respeita o próximo e evita trafegar pelo acostamento durante o engarrafamento? Com receio de ser o “único otário”, a grande maioria acaba aderindo à tentação, prejudicando o resultado geral e todos aqueles que respeitam as regras. Da mesma forma, quantos se dão ao trabalho de recolher as fezes do cão na calçada? Esses exemplos – e existem muitos outros – são simples, do cotidiano, mas denotam o abandono de um código de ética decente.

Transportando isso para os temas maiores, como a política, vemos um quadro mais preocupante ainda. Eleitores simplesmente parecem ignorar as manchas éticas na trajetória dos candidatos, escolhendo-os somente por puro imediatismo, com critérios totalmente imorais. Se o candidato me garante um cargo público, entrega uma esmola estatal qualquer, discursa com afinidade à minha ideologia, protege meu sindicato ou oferece algum privilégio ao meu grupo de interesse, recebe meu voto. Nada mais prejudicial ao bom funcionamento da democracia a longo prazo. Eleger corruptos para defender um interesse imediato é garantia de perpetuar a miséria em nosso país.

Dito isso, me espanta o fato do atual presidente contar com ampla vantagem nas pesquisas de intenção de votos para as próximas eleições. Afinal, trata-se de um governo atolado em infinitos casos de corrupção, com fortes evidências ou mesmo provas. O próprio Ministério Público já deflagrou o esquema de quadrilha montado pelos principais membros do governo e aliados do presidente, que confiava e ainda confia fielmente neles. São escândalos atrás de escândalos, um mais grave que o outro. Os envolvidos não poderiam ser mais próximos do presidente, que foi o maior beneficiado do esquema. Nem mesmo seu filho escapou ileso.

A bandeira da ética, sempre utilizada pelo PT, está completamente esgarçada pelas traças do poder. E não obstante tudo isso, Lula será reeleito, ao que tudo indica. Qual a mensagem que o cidadão brasileiro está mandando? O crime compensa? Tanto faz roubar, contanto que pela minha causa? Se a reeleição de fato se concretizar, parece que esse é o recado do povo. A ética será jogada no lixo. Quando isso ocorre, normalmente o futuro da nação vai para o lixo também. Pobres daqueles cidadãos honestos, que não compactuam com o crime nem são complacentes com os corruptos. Pagarão o preço da irresponsabilidade e da falta de ética da maioria do povo.

13 comentários:

Francisco disse...

Constantino, isso é a mais pura verdade. A distância entre o Brasil e os outros países em relação ao trato com a coisa pública, é impressionante. Estive no Canadá e na Espanha, recentemente, e me impressionei com a diferença em relação ao Rio de Janeiro. Sem contar que todos os controles que existem para evitar fraudes, acabam por multiplica-las.

Jeová disse...

Quando minha mãe foi para os EUA, perdeu sua câmera fotográfica. Dei um procurada nos achados e perdidos e lá estava ela.
Agora vamos falar da barbárie:

Estudei em um dos melhores colégios particulares de Fortaleza e tive garrafas térmicas, lancheiras e camisas roubadas, dentre outras coisas. Em minha universidade, UNIFOR, que é particular, os alunos que entram na biblioteca são obrigados a deixar pastas e mochilas em armários e, se entram com algum caderno ou livro, recebem um documento comprovando que eles entraram com o objeto. Eles tem motivo? No acaso específico, não posso afirmar que sim, mas duvido muito que eles tenham feito isso sem motivo. Além disso, há outras medidas: os professores sempre tem que trazer o apagador e os pincéis porque, se deixados na sala vazia, eles são roubados. Além disso, um professor meu teve seu celular furtado de cima de sua mesa por um aluno. Obviamente, há exceções: uma colega um dia chegou para mim e me entregou a lapiseira que eu havia perdido e não sabia. O problema é que isso é raro.

PS: Já ouvi falar que o Brasil é o único país em que consta na carteira de motorista dos que necessitam de óculos que eles devem usar óculos e que só aqui existe o tal do "reconhecimento de firma". Procede?

Daniel Presser disse...

Constantino, não acredito que você caiu nessa.
Sou de Blumenau, e estou acompanhando o engodo todo. Amigos meus me comentaram que se eu quisesse, poderia ir nos centros de distribuição pegar o que quisesse por que a quantidade de doações ultrapassou em muito a capacidade do Estado de distribuir isso. É melhor dar a qualquer um do que dar a ninguém.

É claro que isso foi distribuído pro resto do país como "roubo". Mas os supostos ladrões eram os voluntários trabalhando na distribuição das doações.

Agora, por causa da dimensão que isso tomou, o Estado está gastando uma grana fodida com segurança e logística, pra evitar que pessoas levem pra casa coisas que nem de longe valem o que está sendo gasto para evitar que essas pessoas levem isso pra casa.

Enfim, não compre tudo que sai na mídia. Você melhor que ninguém deveria saber disso.


PS: já perdi dois celulares e uma carteira na Oktoberfest que tem aqui em Blumenau. Recuperei tudo sem maiores problemas.

MRabello disse...

Fala sério né Daniel,

quer dizer que então o Brasil não precisa mais de doações em qualquer outra parte?!? Não acredito que vc tenha falado tamanha asneira... O fato das doações terem sido volumosas em nada implica que qualquer um possa fazer um self serve com o que foi doado!
"Mas os supostos ladrões eram os voluntários trabalhando na distribuição das doações." Quer dizer simplesmente que os voluntários são ladrões! Simples assim!

É cada uma que a gente escuta...

Daniel Presser disse...

Mateus, você não entendeu. As doações ultrapassaram a capacidade do Estado distribuir. Estavam DIZENDO PARA AS PESSOAS QUE QUEM QUISESSE PEGAR, PODIA PEGAR, por que eles não teriam condições de distribuir tudo - afinal, distribuir isso custa caro.

Aí veio o jornal e disse que aquilo era roubo. E agora estão gastando uma fortuna pra evitar o suposto roubo, além de estarem dificultando o acesso aos donativos.

Chamar um cara que tá doando o seu trabalho de ladrão por que pegou algo que corre o sério risco de ser jogado fora é foda... Moralismo tacanho pra caramba.

Antunes disse...

O tema levantado pelo Rodrigo é muito pessoal e, mesmo, ideológico, da maneira como foi conduzido. Seus leitores devem ser inteligentes e sacar isso! O brasileiro é menos ético que o norte americano? Eu não sei e nem o Rodrigo sabe. Seus leitores devem ,também, sacar isso! Achismos e exemplos simplistas, como eu perdi isso e recuperei aquilo, não dizem absolutamente nada sobre a ética de um povo. Quem já visitou o Epcot Center, ou outros parques nos EUA, sabe que a quantidade de brasileiros no local é enorme e se ninguém pegou os pertences do Rodrigo isso foi graças a uma grande porcentagem de brasileiros honestos que estavam no parque. Além do mais o Epcot Center tem um público muito particular que deve ser levado em consideração, idade dos frequentadores, classe social, ... Não estou escrevendo tudo isso para o Rodrigo, pois eu sei que ela já sabe disso, mas sim para os leitores mais desatentos. Fico preocupado quando leio comentários tão partidários como os que li, duros e sem reflexão. Ou seja, o Daniel não deve ser colocado em um paredão. Ele colocou um ponto de vista bastante inteligente, se para estocar, manter e redistribuir um determinado produto é mais caro que o valor do produto e se esse produto não tem demanda, definitivamente, o melhor é se desfazer rapidamente desse produto. Não acompanhei o caso do “desvio” das doações, mas, se foi como o Daniel colocou, o governo ou a entidade que administrou os bens doados acertou em distribuí-los.

Jeová disse...

"Achismos e exemplos simplistas, como eu perdi isso e recuperei aquilo, não dizem absolutamente nada sobre a ética de um povo. Quem já visitou o Epcot Center, ou outros parques nos EUA, sabe que a quantidade de brasileiros no local é enorme e se ninguém pegou os pertences do Rodrigo isso foi graças a uma grande porcentagem de brasileiros honestos que estavam no parque. Além do mais o Epcot Center tem um público muito particular que deve ser levado em consideração, idade dos frequentadores, classe social"

Não dizem nada? Podem até não dizer tudo, mas certamente dizem alguma coisa. Não servem de prova que os americanos são mais honestos que os brasileiros, mas servem de indício ulterior para algo que já está mais do que provado e que não merece nada além de umas poucas linhas sobre cenas que foram vistas em um lugar e jamais seriam em outro.

Eu já tive vários objetos de pouco valor que foram FURTADOS no Brasil. Foram deixados em um lugar e nunca mais foram vistos. Minha mãe PERDEU sua câmera nos EUA e esta foi encontrada. PERDEU.

A probabilidade de isso acontecer no Brasil é mínima. A probabilidade de que a probabilidade nos EUA seja igual e que minha mãe tenha tido sorte é menor ainda. E o fato de vários brasileiros freqüentarem o lugar não quer dizer nada sobre eles, pois é compreensível que eles tenham ficado com medo de agir como agiriam se estivessem em seu habitat natural.

O brasileiro é tratado como um ladrão em potencial - e merece.

O Escriba disse...

O ser humano é o mesmo em qualquer lugar. Se os norte-americanos, ingleses, alemães ou qualquer povo que seja é mais honesto que o brasileiro é simplesmente porque a chance de sofrer a sanção é muito maior lá do que aqui. Tire a polícia de circulação em qualquer lugar do mundo e a coisa logo descamba para a barbárie. Vide o caso de Nova Orleáns quando da passagem do Katrina.

André Barros Leal disse...

A PERGUNTA QUE NÃO QUER CALAR

Frente à tragédia que está ocorrendo em Santa Catarina, vocês viram algum "movimento social" se apresentar para realizar trabalhos voluntários? Uma caravana do MST? Um grupo do movimento dos assentados de barragens? Uma equipe dos padrecos que insuflam os índios? A turma dos quilombolas? A UNE e o pessoal da sua "caravana da saúde"? Onde estão os ditos "movimentos sociais", tão solidários consigo mesmos?

Antunes disse...

Realmente Rogério, na passagem do Katrina, cerca de 200 mil dólares foram desviados por voluntários norte americanos à serviço da Cruz Vermelha. Fato comprovado pelo FBI. Já o caso de Sta Catarina, pelo que eu li, está sob investigação, há um dito por não dito pela autorização da distrivuição dos bens doados.

Jeová disse...

"O ser humano é o mesmo em qualquer lugar. Se os norte-americanos, ingleses, alemães ou qualquer povo que seja é mais honesto que o brasileiro é simplesmente porque a chance de sofrer a sanção é muito maior lá do que aqui. Tire a polícia de circulação em qualquer lugar do mundo e a coisa logo descamba para a barbárie. Vide o caso de Nova Orleáns quando da passagem do Katrina."

Errado! Cultura importa - e muito! Obviamente que a chance de sofrer sanção e sua dureza desestimulam os crimes, mas nem todo mundo sairia por aí cometendo crimes se não houvesse sanção e, em certos locais, há uma proporção maior de pessoas de tal tipo.

Unknown disse...

Na semana passada observei esse fato quando uma mulher de meia-idade, pedindo "licença para ver alguma coisa", se postou na minha frente em fila de um caixa de loja. Sorte a dela que eu estava com a minha mulher, porque eu a impediria,se necessário com a força. Mas, para evitar uma discussão com a minha mulher, fiz o que a MAIORIA do povo faz: fiquei quieto. Aqui, Constantino, é um país com um povo atrasado, sem escolaridade e que cultua vagabundos que estão na política e cultiva hábitos horríveis; Há muito estou convencido que nosso país JAMAIS será desenvolvido e que deveríamos voltar a ter um regime militar duro.
Aproveito para lhe agradecer pelos excelentes artigos e para lhe desejar - e 'a sua família - um 2009 com muita paz, saúde e sucesso. Abraços.
Marcos

Adriel disse...

Demoraste até para ter a 1a decepção com o Brasil. Eu normalmente tenho minha 1a assim que sou assaltado pela receita federal no aeroporto após buscar as malas.