quarta-feira, março 28, 2007

A Escolha pela Pobreza



Rodrigo Constantino

“O problema com o catolicismo brasileiro é que entende de menos o Mercado e reverencia demais o Estado; seu desamor aos ricos excede seu amor aos pobres; gosta de distribuir riquezas, mas não se esforça por facilitar a criação delas. (Roberto Campos)

Da mesma fonte – a Bíblia – existem pessoas que chegam à defesa do capitalismo e pessoas que chegam à defesa do socialismo. Não vem ao caso discutir aqui qual dos dois lados está certo, até porque podemos encontrar várias passagens bíblicas que suportam ambos os opostos. Tanto é verdade que já existiram papas bem socialistas, como Paulo VI, e outros mais adeptos do livre mercado, como seu sucessor João Paulo II. O foco em questão é o fato de que a instituição católica, especialmente a brasileira, representa um grande entrave ao capitalismo liberal. A CNBB, por exemplo, assume posturas políticas claramente de esquerda, defendendo o retrocesso da nação. Alguns conservadores católicos podem afirmar que se trata de uns poucos bispos esquerdistas infiltrados na Igreja, mas desconfio que seja algo bem mais estrutural.

Roberto Campos, que estudou teologia e foi uma das mentes mais lúcidas que o país já teve, chegou a escrever:

“Há várias maneiras de prejudicar os pobres. Elas têm sido diligentemente utilizadas por pessoas e instituições, com intenções perigosamente boas. Comecemos pela Igreja Católica. Sua opção pelos pobres tem sido uma opção pela pobreza. De um lado, favorece a proliferação dos pobres, opondo-se a técnicas ‘artificiais’ de controle de natalidade, que são as únicas realmente eficazes, pois a abstenção sexual nas épocas férteis não é esporte fácil nos trópicos. De outro, contribui para a criação de uma mentalidade anticapitalista, pela suspicácia em relação ao lucro empresarial.”

Michael Novak, em seu livro The Universal Hunger for Liberty, tenta argumentar em prol da suposta união indissociável entre o catolicismo e o capitalismo de livre mercado. Mas ele mesmo reconhece que um grande obstáculo para o desenvolvimento econômico dos mais necessitados é justamente o fato de que muitas organizações católicas parecem acreditar mais em “redistribuição” e “caridade” que no estímulo às empresas, ao crescimento econômico através dos pequenos negócios. Para Novak, o espírito católico expressa melhor que o protestante a criatividade e os aspectos benéficos humanitários das sociedades liberais. Na prática, não parece ser esse o caso. Não vamos esquecer que países predominantemente católicos, como Espanha, Portugal e Irlanda, apenas muito recentemente têm migrado para mais perto do capitalismo liberal, sendo que o maior país católico do mundo, o Brasil, está muito longe disso ainda. Enquanto isso, os Estados Unidos, bem mais liberais, têm mais da metade do povo formada por protestantes, e apenas 24% de católicos, segundo pesquisa em 2002. A teoria de Novak parece mais fruto de um wishful thinking que de observação empírica.

O autor lembra ainda que no começo deste século, para a surpresa de todos, a Igreja Católica Romana é a religião que mais cresce no mundo, tendo hoje algo como um bilhão de fiéis. Só que ele mesmo cita que tal crescimento se dá basicamente na África, América Latina e Ásia, nas regiões mais pobres. Ou seja, os dados parecem confirmar a frase de Sebastien Faure, quando disse que “as religiões são como pirilampos: só brilham na escuridão”. Dá até para suspeitar que a ICAR acordou para este fato e por isso resolveu “produzir” um santo brasileiro, finalmente. Mas seria teoria conspiratória demais. O homem das pílulas “milagrosas” de papel – também conhecidas como placebos – deve merecer mesmo este imponente título...

Alguns podem achar que implico desnecessariamente com a Igreja Católica. Não é nada disso. Acho que fé é algo da esfera pessoal, e não tenho nada com a escolha dos outros nesse sentido. Até, claro, o limite dessa escolha não impactar a minha vida particular. E eis onde reside todo o problema. No passado, qualquer um que defendia a liberdade tinha obrigação de condenar a Inquisição. Hoje, os métodos mudaram, mas a Igreja ainda exerce influência na vida dos “hereges”. O próprio Papa, após considerar o segundo casamento uma “praga social”, exortou os políticos católicos a votarem de acordo com os mandamentos da sua fé. A CNBB, aqui no Brasil, vive se metendo em assuntos políticos. Se a Igreja, grande latifundiária que é, quiser doar suas terras para os “movimentos sociais”, não tenho nada com isso. Mas quando defende o uso do meu dinheiro, através do governo, para financiar criminosos como os do MST, aí a coisa muda totalmente. Dar esmolas com o bolso dos outros é fácil. E imoral também.

Fora isso, somente o fato de existirem mais de 100 milhões de católicos no país que podem acabar seguindo a mentalidade predominante na elite da hierarquia católica já justificaria minha tentativa de oferecer um contraponto. Essa gente toda vota, afinal de contas. Logo, do mesmo jeito que busco combater com idéias a Igreja Universal e seu poder político crescente, faço o mesmo com a Igreja Católica. Quando esta incita seus fiéis a nunca usar a “pecaminosa” camisinha, por exemplo, me sinto no dever de ir contra, pois a elevada taxa de natalidade das camadas mais pobres gera profundo impacto na economia do país, sem falar do risco do HIV. Quando a CNBB faz acalorados discursos defendendo medidas claramente socialistas, me sinto na obrigação de condená-las, em defesa da liberdade.

Em resumo, não ligo muito para a fé religiosa que cada um resolve adotar. Como o time de futebol, isso é algo bem pessoal. O problema começa quando as instituições religiosas criam obstáculos e mais obstáculos para o progresso do país e a liberdade individual. E parece ser justamente esse o caso da Igreja Católica, especialmente a brasileira. Ela fez uma evidente escolha. E foi pela pobreza.

segunda-feira, março 26, 2007

Teoria e Prática


Rodrigo Constantino

“No revolution, no matter how justified, and no movement, no matter how popular, has ever succeeded without a political philosophy to guide it, to set its direction and goal.” (Ayn Rand)

Uma reação comum que vejo quando os pilares do liberalismo são apresentados é a aquiescência com toda a teoria, mas a discordância com a prática. Essas pessoas alegam que a teoria liberal faz muito sentido e é justa, mas que não seria possível colocá-la em prática, ainda mais em um país pobre e repleto de ignorantes como o nosso. Pretendo explicar a seguir porque considero esta postura errada e perigosa.

Em primeiro lugar, uma teoria racional deve ser praticável. Se a teoria estiver em confronto direto com a realidade, ela não é válida. Logo, não deveria existir esta dicotomia entre teoria e prática. O poeta Fernando Pessoa explicou bem isso: “Toda teoria deve ser feita para poder ser posta em prática, e toda a prática deve obedecer a uma teoria; só os espíritos superficiais desligam a teoria da prática, não olhando que a teoria não é senão uma teoria da prática, e a prática não é senão a prática de uma teoria”. O poeta conclui: “Na vida superior a teoria e a prática completam-se; foram feitas uma para a outra”. Acredito que Stephen Case capturou bem a essência disso quando disse que “no final, uma visão sem a habilidade para executá-la é provavelmente uma alucinação”.

Portanto, uma teoria sólida deve, necessariamente, estar de acordo com a realidade, ser factível, executável. Isso não quer dizer que deva ser fácil colocá-la em prática. De forma alguma. Mas se estamos diante de uma boa teoria, de uma teoria verdadeira, então ela deve ser também praticável. O grande erro das teorias socialistas foi justamente este. Elas partiam de premissas falsas, de um conceito de homem que não existe de verdade, e assim jamais poderiam se concretizar de fato. A teoria criara Utopus, mas a realidade o jogou num Gulag. A idéia altruísta de que todos iriam acordar dispostos ao sacrifício dos próprios interesses pelo bem geral não encontra respaldo na natureza humana, levando à necessidade do uso de coerção, escravidão e terror para tentar criar o “novo homem”. Muitos conservadores cometem o mesmo erro, e defendem o capitalismo apenas como um meio mais eficiente e prático para o mesmo fim altruísta e coletivista. O capitalismo seria apenas o melhor servo para o tal “bem-geral”, ainda que isso signifique o sacrifício de indivíduos, tratados como simples meios. Não há como não falhar assim, partindo de uma teoria furada.

O pragmatismo virou uma espécie de religião, como se não fosse preciso uma teoria por trás das escolhas racionais dos homens. Segundo Ayn Rand, “uma maioria sem uma ideologia é uma massa indefesa, a ser tomada por qualquer um”. Ser prático não significa ignorar teorias. Pelo contrário, deveria ser justamente buscar incessantemente uma teoria que seja verdadeira e moralmente correta. Os Estados Unidos não foram criados na base do puro pragmatismo, tampouco do desejo aleatório da maioria, mas sim de sólidas teorias liberais, pegando desde Aristóteles até os “pais fundadores”, e passando por John Locke no caminho. A defesa da liberdade individual era o principal pilar sustentando a Revolução Americana. Uma maioria pode formar um exército poderoso, mas para onde este exército aponta seus canhões depende da teoria por trás dos seus membros. “Se um homem não sabe a que porto se dirige, nenhum vento lhe será favorável”, ensinou Sêneca. Os soviéticos resolveram apontar contra a propriedade privada e o individualismo, e acabaram no completo caos e na total miséria. Os americanos apontaram na direção do liberalismo, e prosperaram. A teoria que deu o norte desses povos fez toda a diferença do mundo.

Essa mensagem deveria ser mais bem absorvida por todos aqueles bem intencionados e insatisfeitos com os rumos do país, mas que menosprezam o campo das idéias e teorias, pedindo ações práticas. Concordo que ações imediatas são fundamentais, ainda mais pelo estado caótico em que a nação se encontra. Mas não se muda a direção do país sem alterar a mentalidade do povo. “Não há nada mais forte que uma idéia cuja hora chegou”, disse Victor Hugo. O Brasil precisa de reformas estruturais, de novas instituições, de menos burocracia e impostos. Mas nada disso será possível sem uma mudança da mentalidade do povo. É fantasia esperar que um político apareça por milagre e faça tudo isso, quando a mentalidade predominante no povo é anticapitalista, e todos esperam que o Estado resolva todos os problemas. Para a prática ser outra, a teoria precisa mudar.

Tem uma frase de Jan van de Snepscheut que considero muito espirituosa: “Na teoria, não existe diferença entre teoria e prática; mas na prática, existe”. Pode ser que sim. Mas a verdade é que não deveria existir esta diferença. Enquanto ela persistir, precisamos ou mudar a prática para ajustá-la à teoria correta, ou questionar as premissas da teoria adotada. E o fato é que no Brasil a prática sempre esteve bem distante da teoria liberal. Esta, que em diferentes graus foi testada com bastante sucesso mundo afora, nunca deu o ar de sua graça por aqui. O Brasil oscila entre o patrimonialismo, o mercantilismo e a social-democracia. Mas jamais abraçou realmente a teoria mais sólida e justa de todas: o liberalismo.

sexta-feira, março 16, 2007

A Liberdade Individual



Rodrigo Constantino

“Quem deixa que o mundo, ou uma porção deste, escolha seu plano de vida não tem necessidade senão da faculdade de imitação dos símios.” (John Stuart Mill)

O “povo” que exerce o poder nem sempre é o mesmo povo sobre quem o poder é exercido, e o “autogoverno” de que se fala não é o poder de cada um por si mesmo, mas o de cada um por todos os outros. Por conseqüência, o povo pode desejar oprimir uma parte de sua totalidade e contra isso não são necessários menores precauções do que contra qualquer outro abuso de poder. Agora nas especulações políticas geralmente se inclui a “tirania da maioria” como um dos males contra os quais a sociedade exige proteção. Não basta, portanto, a proteção contra a tirania do magistrado; é necessária também a proteção contra a tirania da opinião e do sentimento dominantes, contra a tendência da sociedade a impor, por meios outros que não os das penalidades civis, as próprias idéias e práticas, como regras de conduta aos que delas dissentem.

O efeito do costume, no sentido de prevenir qualquer receio relativamente às regras de conduta que os homens impõem uns aos outros, é tanto mais completo por se tratar de um assunto para o qual geralmente não se considera necessário fornecer razões, seja por parte de uma pessoa para outras, seja por parte de cada um, para si mesmo. As pessoas estão acostumadas a acreditar, e foram encorajadas nessa crença por alguns que aspiram a ser reputados filósofos, que seus sentimentos, em questões dessa natureza, valem mais que as razões, tornando-as desnecessárias. Ninguém, com efeito, admite a si mesmo que seu padrão de julgamento seja seu próprio gosto. Porém, uma opinião a respeito de conduta que não esteja apoiada em razões pode tão-só ter importância como preferência pessoal.

O único propósito de se exercer legitimamente o poder sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, é evitar dano aos demais. Seu próprio bem, físico ou moral, não é garantia suficiente. Não pode ser legitimamente compelido a fazer ou a deixar de fazer por ser melhor para ele, porque o fará feliz, porque, na opinião dos outros, fazê-lo seria sábio ou mesmo acertado. Essas são boas razões para o advertir, contestar, persuadir, instar, mas não para o compelir ou castigar quando procede de outra forma. A única parte da conduta de cada um, pela qual é responsável perante a sociedade, é a que diz respeito a outros. Na parte que diz respeito apenas a si mesmo, sua independência é, de direito, absoluta. Sobre si mesmo, sobre seu corpo e mente, o indivíduo é soberano. Cada um é o guardião adequado de sua própria saúde, seja física, mental ou espiritual. A humanidade ganha mais tolerando que cada um viva conforme o que lhe parece bom do que compelindo cada um a viver conforme pareça bom ao restante.

A religião, o mais poderoso dos elementos que compõem o sentimento moral, quase sempre tem sido governada ou pela ambição de uma hierarquia que busca controlar todo departamento da conduta humana, ou pelo espírito do Puritanismo. E alguns dos reformadores modernos que se opuseram fortemente às religiões do passado não ficaram de modo algum atrás das igrejas ou seitas na reivindicação do direito de dominação espiritual. A disposição dos homens, seja como governantes ou como concidadãos, a impor sobre outros suas próprias opiniões e inclinações como regra de conduta encontra tão enérgico apoio por parte de alguns dos melhores e piores sentimentos inerentes à natureza humana, que talvez só seja possível restringi-la pela falta de poder.

Se todos os homens menos um partilhassem a mesma opinião, e apenas uma única pessoa fosse de opinião contrária, a humanidade não teria mais legitimidade em silenciar esta única pessoa do que ela, se poder tivesse, em silenciar a humanidade. Se a opinião é correta, privam-nos da oportunidade de trocar o erro pela verdade; se errada, perdem, o que importa em benefício quase tão grande, a percepção mais clara da verdade, produzida por sua colisão com o erro. Todo silêncio que se impõe à discussão equivale à presunção de infalibilidade. Há uma enorme diferença entre presumir uma opinião como verdadeira porque, apesar de todas as oportunidades para contestá-la, ela não foi refutada, e pressupor sua verdade com o propósito de não permitir sua refutação.

O único modo pelo qual é possível a um ser humano tentar aproximar-se de um conhecimento completo acerca de um assunto é ouvindo o que podem dizer sobre isso pessoas de grande variedade de opiniões, e estudando todos os aspectos em que o podem considerar os espíritos de todas as naturezas. O hábito constante de corrigir e completar a própria opinião cotejando-a com a de outros, longe de gerar dúvidas e hesitações ao pô-la em prática, constitui o único fundamento estável para que nela se tenha justa confiança. A verdade de uma opinião faz parte de sua utilidade. Se quiséssemos saber se é ou não desejável crer numa proposição, seria possível excluir a consideração sobre ser ou não verdadeira? Na opinião, não dos maus, mas dos melhores, nenhuma crença contrária à verdade pode ser realmente útil.

A história está repleta de exemplos de verdades silenciadas pela perseguição. A perseguição sempre triunfou, salvo quando os heréticos formavam um partido demasiado forte para que os perseguissem efetivamente. É um exemplo de sentimentalidade ociosa supor que a verdade, meramente por ser verdade, possua o poder inerente, negado ao erro, de prevalecer contra o calabouço e o cadafalso. A real vantagem da verdade consiste em que, quando uma opinião é verdadeira, pode-se extingui-la uma, duas ou inúmeras vezes, mas ao longo dos anos se encontrarão pessoas que tornem a descobri-la, até que uma de suas reaparições ocorra numa época em que, graças a condições favoráveis, escapa à perseguição, avançando de modo tal que resista a todas as tentativas subseqüentes de suprimi-la.

Quem é capaz de calcular tudo o que o mundo perde na multidão de intelectos promissores combinados aos caracteres tímidos, os quais não ousam seguir nenhuma cadeia de pensamento atrevida, vigorosa e independente, sob pena de alcançarem algo que lhes permita identificar como irreligiosos e imorais? Ninguém pode ser um grande pensador se não reconhece que, como pensador, seu primeiro dever consiste em seguir seu intelecto em todas as conclusões a que o possa conduzir. Onde houver uma convenção tácita de que não se devem contestar os princípios, onde se considerar encerrada a discussão acerca das grandes questões que podem ocupar a humanidade, não podemos esperar encontrar essa escala geralmente alta de atividade mental que tornou tão notáveis certos períodos da história.

O exíguo reconhecimento que a moralidade moderna dispensa à idéia de obrigação para com o público deriva das fontes gregas e romanas, não das cristãs; do mesmo modo como, na moralidade da vida privada, tudo quanto existe de magnanimidade, generosidade, dignidade pessoal, até senso de honra, deriva da parte de nossa educação puramente humana, não da religiosa, e jamais poderia originar-se de um padrão ético no qual o único valor, confessadamente reconhecido, é o da obediência. O sistema cristão não constitui exceção à regra segundo a qual num estado imperfeito do espírito humano os interesses da verdade exigem uma diversidade de opiniões. Uma grande parte dos mais nobres e valorosos ensinamentos morais foi obra não apenas dos homens que não conheciam, mas também dos que conheciam e rejeitavam a fé cristã. O mal a temer não é o conflito violento entre partes da verdade, mas a supressão silenciosa de parte dela. Se fosse necessário escolher, haveria muito mais necessidade de reprovar ataques ofensivos à infidelidade religiosa do que à própria religião.

Os trechos acima foram copiados, ipsis litteris, do livro A Liberdade, de John Stuart Mill. Estou tão de acordo com suas idéias, e reconheço minha incapacidade de melhor expressa-las, que optei por transcrevê-las aqui, tendo o trabalho apenas de selecionar as melhores passagens, em minha opinião. Deixo a conclusão com o próprio autor também:

“As pessoas de gênio, é verdade, são e provavelmente sempre serão uma pequena minoria; no entanto, para tê-las é necessário conservar o solo em que crescem. O gênio só pode respirar livremente numa atmosfera de liberdade”.

Em Defesa da Liberdade


Rodrigo Constantino

"The argument from intimidation is a confession of intellectual impotence." (Ayn Rand)

Muitos conservadores religiosos, que antes elogiavam meus artigos, estão agora criticando minha "cruzada" contra as religiões e pedindo que eu volte a falar apenas de economia. Voltar? Gostaria de saber destes quando foi que eu falei apenas de economia. Será que esqueceram dos meus artigos condenando o fanatismo islâmico ou os ataques injustos a Israel na questão com a Palestina? Isso não me parece algo sobre economia. Será que fingem não ter visto meus artigos defendendo a liberdade de expressão quando o jornal que publicou desenhos injuriosos de Maomé foi duramente condenado? Será que não lembram de um artigo condenando o uso da religião para fins políticos pelo populista Garotinho? Será que é um tema apenas econômico condenar o coletivismo e a inveja presentes na seita socialista? Será que meus artigos contra o relativismo moral podem ser incluídos no rol de assuntos sobre economia? Será que um artigo criticando a visão romântica de "bom selvagem" de Rousseau pode ser classificado como assunto de economia?

Basta uma rápida visita ao meu blog para ficar claro que jamais falei apenas de economia. Defendo algo muito maior que a liberdade econômica. Defendo a liberdade individual, que envolve não apenas a liberdade econômica, mas também a liberdade de expressão, de opinião e de conduta, limitada apenas pela liberdade dos outros. O liberalismo é muito mais amplo que impostos baixos e pouca burocracia. Na verdade, esta postura dos conservadores deixa claro que não são defensores do liberalismo, não lutam de verdade pelas liberdades individuais. Pedem liberdade estritamente econômica, pois não ligam muito para a economia, já que falam com desprezo sobre os assuntos materiais. Mas naquilo que é do verdadeiro interesse dos conservadores, as questões de comportamento, eles defendem o autoritarismo estatal, o coletivismo. São um espelho dos socialistas, que defendem o autoritarismo estatal e o coletivismo naquilo que os interessa, que é o material. Raros são os que defendem a liberdade no sentido mais amplo, tanto econômica como na conduta da vida. Esses são os liberais verdadeiros, espremidos entre coletivistas autoritários de ambos os lados.

Autores liberais que influenciaram minhas idéias, tais como Humboldt, John Stuart Mill, Mises, Hayek, Ayn Rand e Milton Friedman, nunca limitaram seus escritos ao restrito tema da liberdade econômica. A liberdade econômica é fundamental, pois sem ela, não existe liberdade individual. Mas ela não é, nem de perto, suficiente. Os indivíduos devem ser livres para viver de acordo com o que defendem, contanto que não invadam a liberdade alheia. Ora, quando a religião invade essa esfera, é uma ameaça para a liberdade, e deve ser combatida. Quando um país proíbe o consumo de carne de porco porque uma maioria considera isso repulsivo por motivos religiosos, a minoria que não liga para tal religião tem sua liberdade tolhida injustamente. Quando um indivíduo não pode fazer um desenho ironizando a figura que quiser, porque agride a fé dos outros, sua liberdade foi solapada. Quando um Papa chama de "praga social" um segundo casamento, e exige que políticos católicos votem matérias de acordo com a doutrina da Igreja, o assunto não é mais apenas do interesse dos fiéis seguidores. Quando a Inquisição manda para a estaca um ateu apenas por ser ateu, isso não é diferente do ato de mandar para a câmara de gás um judeu no regime nazista. Quando a religião sai da esfera individual e passa para medidas concretas que afetam a liberdade dos outros que não compartilham das crenças desta religião, a liberdade individual está sendo ameaçada.

A liberdade de alguém não querer ver seu ídolo sendo criticado não é da mesma natureza que a liberdade de alguém poder criticar quem quiser, assim como a liberdade de alguém que quer roubar uma bolsa não é da mesma natureza que a liberdade de alguém que não deseja ter sua bolsa roubada. Como disse Mill em A Liberdade, "a única razão de se exercer o poder legitimamente sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada contra sua vontade é prevenir danos a outros". O que eu simplesmente não gosto não é motivo suficiente para coerção. O mesmo vale para a maioria. Como o próprio Mill diz ainda, "a humanidade ganha mais tolerando que cada um viva conforme o que lhe parece bom, do que compelindo cada um a viver conforme pareça bom ao restante". Fanáticos religiosos são totalmente incapazes de compreender isso, e desejam impor aos demais a sua regra de conduta, que certamente é a correta, pois foi "revelada". Tal fanatismo religioso é incompatível com a liberdade individual.

Como fica claro, não participo de cruzada anti-religiosa alguma, tampouco tenho como alvo específico a Igreja Católica. Não luto contra alguma coisa, mas sim por alguma coisa, e esta coisa é a liberdade individual. Logo, tudo que representar obstáculo a este fim será condenado. Seja a ideologia socialista, a doutrinação religiosa que invade a liberdade dos não religiosos, a pressão do "politicamente correto" que limita a liberdade de expressão dos indivíduos ou a própria ditadura da maioria, que ignora a liberdade das minorias de viverem de forma diferente, irei continuar condenando tudo aquilo que prejudica a liberdade dos indivíduos. Os conservadores não gostam disso. Aceitam que todo o restante seja criticado com argumentos e lógica, e até aplaudiam meus artigos nessa linha. Mas quando o alvo passa a ser sua própria religião, as emoções os dominam e a reação é totalmente passional, como um torcedor fanático que admirava muitas coisas no outro mas passa a detestá-lo quando descobre que ele torce para o time adversário. Passam a tentar me intimidar na base de agressões chulas e ironias bobas, tal como faziam justamente os socialistas quando estes eram o alvo do ataque. Querem me calar de qualquer maneira.

Trata-se, como diz Ayn Rand na epígrafe, de uma clara confissão de impotência intelectual, já que não possuem argumentos sólidos para rebater as críticas às suas crenças. Agindo como um rebanho bovino, não há muita distinção entre esses conservadores e seus inimigos socialistas. E aos que pedem para concentrar a munição em um lado apenas, lembro que o inimigo do meu inimigo não é meu amigo. Considero tanto conservadores fanáticos como socialistas igualmente perigosos para a liberdade individual. E minha luta é em defesa da liberdade.

quinta-feira, março 15, 2007

A Praga Social


Rodrigo Constantino

"Que os cristãos, cujos reformadores pereceram na masmorra ou na fogueira como apóstatas ou blasfemos - os cristãos, cuja religião exala em cada linha a caridade, liberdade e compaixão... que eles, depois de conquistar o poder de que eram vítimas, exerçam-no exatamente da mesma maneira, é demasiado monstruoso." (John Stuart Mill)

Intitula-se Sacramentum Caritatis a primeira exortação apostólica do Papa Bento XVI. O documento foi redigido a partir do debate que se desenvolveu no Vaticano em 2005 durante o Sínodo dos Bispos sobre a Eucaristia. O ponto que merece maior destaque, em minha opinião, é aquele que condena o segundo casamento, tamanho o absurdo disso. Parece que a Igreja Católica Romana resolveu parar mesmo no tempo, e se os fiéis fossem realmente julgar quantos dogmas ignoram, restariam poucos seguidores de fato. O uso da camisinha, a pílula anticoncepcional, a masturbação, o homossexualismo e agora até mesmo um segundo casamento, tudo isso condenado pela Igreja. Quantos católicos verdadeiros, que seriam totalmente aprovados pelo crivo do Vaticano, restam no mundo? Mas vamos ao trecho completo no qual o Papa ataca o segundo casamento:

"Se a Eucaristia exprime a irreversibilidade do amor de Deus em Cristo pela sua Igreja, compreende-se por que motivo a mesma implique, relativamente ao sacramento do Matrimônio, aquela indissolubilidade a que todo o amor verdadeiro não pode deixar de anelar. Por isso, é mais que justificada a atenção pastoral que o Sínodo reservou às dolorosas situações em que se encontram não poucos fiéis que, depois de ter celebrado o sacramento do Matrimônio, se divorciaram e contraíram novas núpcias. Trata-se dum problema pastoral espinhoso e complexo, uma verdadeira praga do ambiente social contemporâneo que vai progressivamente corroendo os próprios ambientes católicos."

O amor tem que ser indissolúvel para ser verdadeiro. Para o inferno com a poesia que prega o amor eterno enquanto dure! A chama jamais pode se apagar. Se um homem ama uma mulher e vice-versa, a ponto de resolverem casar, jamais podem mudar de idéia, arrepender-se e optar pelo divórcio. Isso seria prova de que não havia amor na época do casamento. O matrimônio torna ambos um único ser, indissolúvel. E a fidelidade a tal sacramento deve estar acima de tudo, inclusive da própria felicidade dos dois envolvidos. Não importa se os sentimentos mudarem, se o amor se esvair, se o que era belo virar motivo de sofrimento ou se uma nova pessoa despertar um novo amor ainda mais forte. Tudo isso deve ser esquecido em nome da fidelidade ao sacramento. Sofra, mas permaneça um fiel. Afinal, o sofrimento não é enaltecido como nobre pelos cristãos? Não é a cruz o símbolo preferido deles? Apenas egoístas colocam a própria felicidade acima disso. E tem mais:

"Enfim, caso não seja reconhecida a nulidade do vínculo matrimonial e se verifiquem condições objetivas que tornam realmente irreversível a convivência, a Igreja encoraja estes fiéis a esforçarem-se por viver a sua relação segundo as exigências da lei de Deus, como amigos, como irmão e irmã; deste modo poderão novamente abeirar-se da mesa eucarística, com os cuidados previstos por uma comprovada prática eclesial. Para que tal caminho se torne possível e dê frutos, deve ser apoiado pela ajuda dos pastores e por adequadas iniciativas eclesiais, evitando, em todo o caso, de abençoar estas relações para que não surjam entre os fiéis confusões acerca do valor do matrimonio."

Ou seja: se não tiver mais jeito, o novo casal pode até conviver junto, contanto que como simples amigos, como irmão e irmã. Sexo nem pensar. Caramba! Se fosse para isso, por que diabos iriam casar? O discurso é tão absurdo que choca até alguns cristãos. Nisso que dá proibir o padre de se casar ou manter relações amorosas com mulheres. Fica falando sobre o que não entende. Como o Papa pode ter a pretensão de aconselhar sobre o relacionamento amoroso entre homens e mulheres se nem mesmo pode experimentar tal sentimento? Acho que o Vaticano deveria dar menos importância para os católicos que descobrem a felicidade somente num segundo casamento, já que errar ou mudar fazem parte da vida, e focar mais nos crescentes escândalos de pedofilia dentro da própria Igreja. Reprimir totalmente instintos tão naturais como o sexo pode fazer a paixão retornar com uma força incontrolável. O fato de vários padres abusarem sexualmente de garotos parece infinitamente mais preocupante que o segundo casamento feliz de homens e mulheres adultos.

Eis o que considero a verdadeira praga social, em vez de casar pela segunda vez: a mentalidade medieval de alguns crentes, que condenam todos os avanços conquistados pelas mulheres recentemente; o desejo de alguns de retornar aos tempos da Inquisição, onde "hereges" seriam levados para a estaca; a postura quase criminosa de condenar o uso da camisinha no mundo moderno, com enormes riscos de contração de doenças sexualmente transmissíveis; a crescente pedofilia dentro da Igreja; a doutrinação de ignorantes desesperados por algum consolo; o fanatismo religioso, que ofusca a razão humana; a venda de caridade com o esforço alheio enquanto a Igreja nada em ricas terras e muito ouro; e por fim, toda a hipocrisia presente no mundo.

quarta-feira, março 14, 2007

Filhos de Gandhi



Rodrigo Constantino

“O jeito mais fácil de terminar uma guerra é perdê-la.” (George Orwell)

Basta mencionar o nome Gandhi para que automaticamente muitos se lembrem do pacifismo como um meio para um fim nobre, que é a paz. “Olho por olho e o mundo acabará cego”, eis o resumo da doutrina gandhiana. Em muitos aspectos, essa doutrina remete aos ensinamentos de Cristo, que teria dito no famoso Sermão da Montanha: “Ouviste o que foi dito: olho por olho e dente por dente; Eu, porém, te digo que não resistas ao mau; mas se alguém te bater na tua face direita, oferece-lhe também a outra”. Em resumo, jogar fora a lex talionis e responder à violência com amor. O próprio Gandhi afirmara que “Cristo é a maior fonte de força espiritual que o homem até hoje conheceu”. E para ele, “a força de um homem e de um povo está na não-violência”.

Tudo isso parece, sem dúvida, muito bonito e nobre. Normalmente, aquele que propaga tais ideais adquire um ar de nobreza, de boa alma imbuída das mais belas virtudes. Quem poderia ser contrário à paz? Ocorre que a paz é uma finalidade, e existem diferentes meios para alcançá-la. Nem sempre o meio pacífico será o melhor. Muitas vezes será necessário, no mundo real, combater violência com violência, ou pelo menos com a ameaça de seu uso. Seria preciso combinar com o inimigo antes a estratégia de paz e amor. Afinal, para o pacifista retribuir chumbo com rosas, é crucial que ele esteja vivo acima de tudo. Mortos não costumam reagir a estímulo algum.

George Orwell foi, enquanto jornalista, bastante realista. Em um artigo de 1948, chamado A Defesa da Liberdade, expressou sua opinião resumida sobre os métodos políticos de Gandhi, tendo como base o livro Gandhi e Stalin, de Louis Fischer: “Gandhi jamais lidou com um poder totalitarista. Lidava com um despotismo antiquado e um tanto vacilante, que o tratava de um modo razoavelmente cavalheiresco e lhe permitia a cada passo invocar a opinião pública mundial”. Ele continua: “É difícil reconhecer como sua estratégia de greve de fome e desobediência civil poderia ser aplicada em um país onde os oponentes políticos simplesmente desaparecem e o público nada ouve além do que lhe permite o governo”. Ou seja: se Gandhi obteve algum sucesso com seu pacifismo romântico, isso se deveu ao fato de ser a Inglaterra do outro lado. Fosse um Stalin, por exemplo, e Gandhi seria apenas mais um mártir, um cadáver perdido numa pilha incontável. Não é preciso ficar na especulação: Dalai Lama adotou uma postura similar e isso nunca impediu que o povo tibetano fosse dizimado pelos chineses.

Um ano após o artigo de Orwell, Pablo Picasso estaria criando uma litografia para o cartaz do Congresso Mundial da Paz em Paris, que eternizou a pomba como símbolo dos pacifistas. Paradoxalmente, o evento era financiado pelos assassinos de Moscou. Picasso foi simpático ao comunismo, e chegou a ser agraciado com o Prêmio Lênin da Paz. Desconheço contradição maior que utilizar Lênin e paz na mesma expressão. Os comunistas sempre fizeram muita propaganda pela paz, enquanto na prática foram sempre sua maior inimiga. Tentavam monopolizar os fins para não terem que debater os meios, e desta maneira, todos que não compartilhavam dos seus slogans românticos eram belicosos ou assassinos em potencial. Foi assim que os comunistas franceses exortaram os soldados a abandonar seus postos poucas semanas antes de Hitler invadir a França. Oferecer a outra face para alguém como Hitler é o caminho certo para a destruição.

Ainda hoje nota-se que muitos seguem os passos de Gandhi, sempre reagindo com discursos lindos quando a escalada da violência é brutal. Basta dar carinho que os psicopatas assassinos poderão virar bons samaritanos. A impunidade permanece e o convite ao crime fica irresistível para os delinqüentes. Assim, os filhos de Gandhi saem às ruas com suas camisetas brancas na cruzada pela paz, já que cruzadas costumam valer mais pelo sentimento de bem-estar que incutem nos seguidores que pelos resultados práticos concretos. Os criminosos agradecem. Olho por olho, e a humanidade acabará cega. Olho por rosas, e somente uma parte da humanidade acabará cega: a parte boa.

segunda-feira, março 12, 2007

O Poeta e as Drogas


Rodrigo Constantino

"A humanidade ganha mais tolerando que cada um viva conforme o que lhe parece bom, do que compelindo cada um a viver conforme pareça bom ao restante." (John Stuart Mill)

Um lado menos conhecido do poeta Fernando Pessoa é seu legado sobre economia e política, que Gustavo Franco ajudou a resgatar no livro A Economia em Pessoa, que organizou. O livro conta com artigos da época em que Pessoa escrevia para a Revista de Comércio e Contabilidade. Durante a leitura, fica claro que o poeta não era um leigo no assunto, e seus argumentos permanecem atuais e importantes para a defesa de coisas como a globalização, a privatização e o livre comércio. Em um dos artigos, intitulado As Algemas, Pessoa condena vários tipos de legislação restritiva, incluindo o tipo que pretende beneficiar o consumidor individual, proibindo a venda de determinados artigos – desde a cocaína às bebidas alcoólicas – por o seu uso ou abuso serem nocivos ao indivíduo. Fernando Pessoa era totalmente contra isso, e usa a Lei Seca como estudo de casos.

Em primeiro lugar, o poeta considera deprimente e ignóbil a circunstância de se "prescrever a um adulto, a um homem, o que há de beber e o que não há de beber". Compara tal atitude com a de colocar um colete-de-força num cão. Alerta que, indo por esse caminho, "não há lugar certo onde logicamente se deva parar", já que "se o Estado nos indica o que havemos de beber, por que não decretar o que havemos de comer, de vestir, de fazer"? Vai mais além, questionando por que o Estado não haveria de prescrever onde devemos morar ou com quem devemos dar-nos. Afinal, "todas essas coisas têm importância para a nossa saúde física e moral; e se o Estado se dispõe a ser médico, tutor e ama para uma delas, por que razão se não disporá a sê-lo para todas"? Ele lembra ainda que o Estado não é uma entidade abstrata, mas "se manifesta através de ministros, burocratas e fiscais – homens, ao que parece, e nossos semelhantes, e incompetentes portanto, do ponto de vista moral, senão de todos os pontos de vista, para exercer sobre nós qualquer vigilância ou tutela em que sintamos uma autoridade plausível". Como John Stuart Mill defendeu em A Liberdade, "o indivíduo não presta conta de suas ações perante a sociedade, na medida em que estas dizem respeito unicamente a ele, e a ninguém mais".

Passando ao exemplo empírico, Pessoa demonstra o completo fracasso da Lei Seca americana. De cara, temos a conseqüência do acréscimo da corrupção dos funcionários do Estado, além dos privilégios dos ricos sobre os pobres, já que estes não podem pagar os subornos que aqueles podem. Como outra conseqüência, estabeleceu-se dentro do Estado um segundo Estado, de contrabandistas, uma organização coordenada e disciplinada, destinada à técnica variada da violação da lei. "Ficou definitivamente criado e organizado o comércio ilegal de bebidas alcoólicas", ele afirma. Logo, tem-se a substituição do comércio honesto e normal por um desonesto e anormal, com o agravante deste se tornar um segundo Estado anti-social, dentro do próprio Estado. Por fim, Pessoa lembra que quem tem dinheiro continua a beber o que quiser, enquanto que quem tem pouco dinheiro mas é alcoólico, bebe da mesma maneira mas gasta mais, saindo prejudicado financeiramente. E há ainda os casos "tragicamente numerosos, dos alcoólicos que, não podendo por qualquer razão obter bebidas alcoólicas normais, passaram a ingerir espantosos sucedâneos – loções de cabelo, por exemplo – com resultados pouco moralizadores para a própria saúde". Surgiram ainda várias drogas não-alcoólicas, só que mais prejudiciais que o álcool, que sendo livremente vendidas, arruinam a saúde, mas dentro da lei.

A conclusão de Fernando Pessoa sobre o assunto geral das restrições ao comércio e em particular sobre o paternalismo estatal contra as drogas é que "a legislação restritiva, em todos os seus ramos, resulta, portanto, inútil e nociva".

sábado, março 10, 2007

A Visita de Bush


Rodrigo Constantino

“Os esquerdistas, contumazes idólatras do fracasso, recusam-se a admitir que as riquezas são criadas pela diligência dos indivíduos e não pela clarividência do Estado.” (Roberto Campos)

A visita do presidente americano George W. Bush gerou muitas emoções e diferentes reações. Não vi em lugar algum, entretanto, a análise que me parece a mais correta do ponto de vista econômico. Ninguém parou para perguntar por que decisões estritamente econômicas, sobre o consumo de combustível, precisam dos representantes supremos dos governos dos dois países. Eis o cerne da questão, em minha opinião.

Na verdade, a visita de Bush parece uma decisão basicamente política, cujo tema foi escolhido justamente para colocar em conflito os interesses brasileiros e venezuelanos. Afinal, a Venezuela de Chávez é um grande poço de petróleo, e estimular o combustível alternativo que o Brasil tem para oferecer é um golpe duro para o presidente populista da Venezuela. Tanto que ele rapidamente foi liderar um movimento de oposição à visita, e chegou a falar que era imoral o uso do etanol para combustível. Golpe de mestre americano. Coloca os objetivos dos países em direções opostas, dando um “chega pra lá” nas artimanhas chavistas para a tal união do sul. Se vai surtir efeito são outros quinhentos. Afinal, o presidente Lula sabe ser muito cara-de-pau e usa um discurso diferente para cada platéia. Sabemos como ele e Chávez são camaradas, no fundo. Mas valeu a tentativa, nesse sentido.

Ocorre que do ponto de vista econômico não faz sentido os representantes dos governos ficarem debatendo assuntos que o livre mercado deve resolver. Ora, são os consumidores que, livremente, devem escolher qual combustível querem utilizar. E se as trocas forem voluntárias e os preços livres, estes irão refletir tanto a oferta como a demanda. Assim, se um produto estiver ficando escasso e for muito demandando, isso será automaticamente passado para os preços, que elevados, irão estimular naturalmente a busca por substitutos. No fundo, esta ingerência política nos assuntos econômicos parte da premissa de que os agentes de mercado são incapazes, e precisam da clarividência de governantes. No extremo, a Gosplan, na falida União Soviética, tentava controlar tudo na economia, incluindo o preço de milhares de produtos. Obviamente, não deu certo. Afinal, os preços livres são a maior garantia de que as informações pulverizadas entre os milhões de indivíduos interagindo no mercado estarão disponíveis para quem interessa. Poluir este mecanismo de livre formação de preços, com medidas protecionistas, com subsídios, com todo tipo de intervenção estatal, é pedir por resultados ineficientes. Logo, por este prisma, simplesmente não faz sentido um assunto econômico como o consumo e produção de combustível ficar sendo debatido por dois presidentes. A mão invisível do mercado funciona infinitamente melhor que a pesada mão visível do Estado.

Por fim, a visita de Bush serviu para expor uma vez mais todas as incoerências da nossa esquerda. O antiamericanismo está em níveis patológicos no Brasil. A inveja é o grande motivador na maioria dos casos. O sucesso americano é insuportável para aqueles que não conseguem admirar os bem-sucedidos e usá-los como exemplo a ser seguido. Bush serve como o grande bode expiatório para nossos males, pois é mais fácil colocar a culpa em fatores exógenos, não sendo necessário assim olhar para os defeitos próprios. Sem falar que isso interessa muito aos governantes locais. Assim, vagabundos aparecem aos montes para protestar contra Bush, enquanto estavam hibernando durante todos os escândalos de corrupção do próprio governo Lula. Para protestar contra o “mensalão”, estes “defensores da justiça” sumiram, mas para fazer baderna contra o presidente americano todos aparecem como verdadeiras marionetes. É lamentável que muitos ainda acreditem nas “veias abertas” da América Latina, não se dando conta de que seguem apenas o “manual do perfeito idiota latino-americano”.

sexta-feira, março 09, 2007

A Tautologia dos Crentes



Rodrigo Constantino

"A moralidade humana, até mesmo a mais elevada e substancial, não é de modo algum dependente da religião, ou necessariamente vinculada a ela." (Humboldt)

Finalmente os conservadores estão saindo do armário! Em recente artigo, "Por que não sou liberal", Olavo de Carvalho deixa claro não apenas que não é um liberal, mas também que chega a abominar o Liberalismo, entendido por ele como um verdadeiro "vale tudo" imoral. Para os conservadores religiosos, a moralidade só existe se for através da religião deles, da "revelação" divina. Ou seja, fazem coisas corretas não porque são pessoas corretas ou porque é bom fazer tais coisas, mas apenas porque "deus mandou", segundo a tal revelação. Por isso acham nobre o fato de Abraão ter se disposto a matar seu próprio filho seguindo a suposta vontade divina. Não fosse pela fé, creio que sairiam matando gente por aí. Isso diz muito sobre o caráter dessa turma, que apenas por receio de uma punição divina ou por fé cega nas palavras de um homem não pratica todo tipo de maldade. Não conseguem entender simplesmente que ser bom é bom.

Sequer vem ao caso questionar porque não seguem todos os mandamentos contidos na "revelação", já que ninguém assim o faz. É simplesmente impossível seguir tudo que a Bíblia recomenda. Ou seja, usam algo humano, fora da tal "revelação divina", para filtrar o que deve e o que não deve ser seguido. No meu dicionário, isso se chama hipocrisia. E não vamos esquecer que qualquer um que usa camisinha durante o ato sexual, por exemplo, é imoral pela ótica dos carolas. A Igreja adora incutir culpa no rebanho, fazer todos se sentirem sujos, pois assim serão seguidores mais fiéis, desesperados por redenção. Só me resta citar a excelente frase de Martin Terman: "As pessoas que me dizem que eu vou para o inferno e que elas vão para o céu de certa forma me deixam feliz por não estarmos indo para o mesmo lugar".

Outro conservador bastante religioso, Nivaldo Cordeiro, escreveu um artigo em apoio a Olavo, assumindo-se um conservador também. Nele, endossou a postura absurda e falsa do "filósofo", com a seguinte pérola: "Os liberais ateus só são boa gente quando imitam, ainda que sem o saber, e por força da inércia social, os valores dos conservadores, vale dizer, a tradição judaico-cristã". Eis a tautologia dos crentes: todo sujeito bom é, na verdade, um cristão, mesmo que declare abertamente repúdio ao Cristianismo; e todo sujeito mal é, na verdade, um ateu, mesmo que declare abertamente profundo amor pelo Cristianismo. Não dá para refutar esta petição de princípio. Se um indivíduo é bom, pratica atos corretos, mas se diz ateu, ele é cristão inconsciente. E se o delinqüente é um cristão assumido, não passa de um ateu mentiroso. Todos os bons são cristãos e todos os maus são ateus. Eis a mentalidade dos crentes fanáticos, que não conseguem admitir que existem inúmeras pessoas boas no mundo que não dão a mínima para sua religião.

Olavo e Nivaldo acabaram condenando liberais ateus ou agnósticos como Humboldt, Hayek, Mises, Ayn Rand, Milton Friedman e vários outros. Não vamos esquecer que Hayek escreveu um artigo chamado justamente "Por que não sou conservador". No Brasil, até mesmo o ex-embaixador Meira Penna se declara um agnóstico. Pela bizarra lógica dos conservadores religiosos, estas ilustres pessoas foram e são ou imorais ou cristãos ingratos, que não reconhecem que faziam ou fazem coisas boas apenas por mérito do Cristianismo, por pura inércia.

Não importa que o mundo, antes de Cristo, já contava com pessoas boas. O que falar de Publilius Syrus, por exemplo, que cerca de cem anos antes de Cristo já alertava que devemos tratar os outros como esperamos ser tratados? Não importa também que o mundo, muito tempo depois de Cristo, ainda viveu com muitas coisas ruins, inclusive perpetradas pela própria Igreja Católica, como a Inquisição. A escravidão conviveu lado a lado com a Igreja por séculos, e apenas o Iluminismo, tão condenado pelos conservadores, colocou de vez um fim nessa imoralidade. Os "pais fundadores" dos Estados Unidos eram profundos admiradores do Iluminismo, tão combatido por estes que adorariam destruir a razão humana e retornar aos tempos medievais, de preferência lançando todos os "hereges" na fogueira.

Nâo posso finalizar este artigo sem constatar que, pela "lógica" desses conservadores, o Japão simplesmente não existe! Ora, o segundo maior PIB mundial, uma nação próspera, mas com 84% da população formada por xintoístas e budistas, que não parecem nada com os cristãos, não pode ser possível. Isso sem falar da Holanda, país onde 40% da população se declara sem religião alguma, enquanto a renda per capita passa dos US$ 30 mil e a liberdade individual é bastante respeitada. Os conservadores devem preferir o Brasil, o maior país católico do mundo! Ou quem sabe a Venezuela, onde 96% do povo se declara católico romano. Como fica claro, apenas o desejo de acreditar explica esta crença, já que a realidade não a sustenta nem por alguns segundos. Fora o fato de que é engraçado colocar na mesma expressão a herança cristã e a judaica, sendo que uns lutaram contra os outros por séculos, incluindo muita violência e derramamento de sangue. Como ignorar que parte da herança cristã é justamente a perseguição aos judeus?

Liberais verdadeiros entendem que existem pessoas boas e más entre todos os credos, incluindo os que não têm crença alguma em deus. Existem ateus bons e ateus maus, como existem cristãos bons e cristãos maus, budistas bons e maus, muçulmanos bons e maus. Fora isso, nossa herança vem de antes de Cristo. Os gregos deixaram um importante legado, o Egito contribuiu, a Mesopotâmia também, e por aí vai. A humanidade desfruta de um processo de evolução do conhecimento. É piada o conservador usar a Bíblia como fonte única de toda a moral ao mesmo tempo que descarta várias passagens bíblicas alegando o contexto da época em que foi escrita. Cáspita! A sabedoria divina é ou não atemporal, eterna? Dá dó de ver que os crentes sequer notam esta contradição. Usam o "livro sagrado" apenas quando é interessante para a sua causa. Coisa feia.

Enfim, o que posso dizer é que, como liberal verdadeiro, fico muito feliz que os conservadores estejam saindo do armário e declarando seu total desprezo pelo Liberalismo, pela liberdade de escolha individual, e afirmando que todo ateu é ruim. A esquerda, durante muitos anos, confundiu de propósito liberais e conservadores, colocando tudo no mesmo saco. Agora não será mais possível fazer isso. Conservadores não são liberais. Nós, liberais, agradecemos muito este esclarecimento. Já era hora!

quinta-feira, março 08, 2007

A Infalibilidade Papal



Rodrigo Constantino

“Tolerância é a conseqüência necessária da percepção de que somos pessoas falíveis: errar é humano, e estamos o tempo todo cometendo erros.” (Voltaire)

O filósofo Karl Popper considerava que encobrir erros é o maior pecado intelectual. Somos humanos e, portanto, falíveis. O poeta Xenófanes, que escreveu cerca de 500 anos antes de Cristo, já havia capturado esta idéia quando disse: “Verdade segura jamais homem algum conheceu ou conhecerá sobre os deuses e todas as coisas de que falo”. Porém, isso não significa relativismo total, pois podemos obter conhecimento objetivo, como o poeta mesmo deixa claro depois: “Os deuses não revelaram tudo aos mortais desde o início; mas no decorrer do tempo encontramos, procurando, o melhor”. Mas é a possibilidade de estarmos errados que nos faz mais tolerantes com os outros e que nos coloca sempre na busca por mais conhecimento, já que podemos defender algo que se prova errado amanhã. Tal postura é oposta àquela que Epíteto condena quando diz: “É impossível para um homem aprender aquilo que ele acha que já sabe”.

Com isso em mente, a crença na infalibilidade do Papa é algo extremamente perigoso. O Papa não deixa de ser um homem como outro qualquer, e crer que tudo sobre os dogmas religiosos que este homem falível diz é a mais pura e irrefutável – além de inquestionável – verdade, é a postura de quem quer ser doutrinado em vez de pensar por conta própria. Quem aceita sem questionamento o que vem de alguma autoridade qualquer já abdicou da ferramenta epistemológica mais importante que dispomos: a razão. Acredito que um pouco de história sobre esta suposta infalibilidade papal é então de extrema importância. Afinal, até mesmo ferrovias já foram proibidas por um Papa, Gregório XVI, porque este acreditava que elas podiam fazer mal à religião.

Os relatos a seguir foram extraídos do livro A Inquisição, de Michael Baigent e Richard Leigh, que por sua vez utilizaram como principal fonte o livro How the Pope Became Infallible, de August Hasler. Os autores mostram como a Igreja Católica vinha perdendo força no decorrer do século XIX, tentando reagir de diferentes maneiras. Em 1864, a “Suma de Erros” foi publicada. Era um catálogo de todas as atitudes e crenças que o Papa julgava perigosas, erradas ou heréticas. Era um erro, por exemplo, acreditar que todo indivíduo é livre para abraçar e professar aquela religião que considere verdadeira. Outro erro era a crença de que não é mais aconselhável que a religião católica seja tida como a única religião de estado, com exclusão de todas as outras formas de culto. As mudanças da Igreja vieram mesmo com o Primeiro Concílio Vaticano, reunido pelo Papa Pio IX em 1869. A atmosfera era, segundo os autores, de intimidação e ameaça, sendo que muitos eclesiásticos deixaram o Concílio antes que acabasse.

Como dizem os autores, “logo ficou claro que o objetivo, o propósito dominante último do Primeiro Vaticano, era promulgar a doutrina da infalibilidade papal”. No todo, 1.084 bispos eram elegíveis para assistir e votar no Concílio. Após a pressão dos defensores do Papa, a primeira votação, em 13 de julho de 1870, contou com 451 votos a favor e 88 contra a infalibilidade. Em mais alguns dias, o número dos que apoiavam a posição do Papa aumentou para 535. Em resumo, uma “maioria” de apenas 49% dos que podiam votar endossava a questão da infalibilidade em 18 de julho de 1870. Até então, os Papas eram falíveis. Deste dia em diante, seria heresia negar sua infalibilidade. Os livros e artigos que contestavam o dogma da infalibilidade papal foram automaticamente postos no Index da Inquisição, ficando proibidos aos católicos.

Cerca de um ano depois, em julho de 1871, Roma tornou-se capital do recém-unificado Reino da Itália, e a Cidade do Vaticano foi declarada principado independente, não parte do solo italiano. Nos 58 anos seguintes, o Papado recusou-se a reconhecer o estado italiano, e durante todo esse tempo, nenhum Papa visitou Roma. Finalmente, em 1929, concluiu-se o Tratado de Latrão, e a Cidade do Vaticano foi oficialmente reconhecida e ratificada como estado soberano sob a lei internacional, e o catolicismo proclamado religião de estado do povo italiano. Em troca, o Papado, agora já infalível, reconhecia formalmente o governo italiano – o governo de Benito Mussolini.

No mundo secular, a Igreja achava-se vulnerável, e os avanços da ciência assustavam. A infalibilidade servia para excluir todo argumento. O Papa se arrogava isento da possibilidade de erro, e isso servia para consolar os crentes mais devotos com as crescentes dúvidas que os avanços científicos lançavam sobre o Cristianismo. Como os autores lembram, “o meticuloso escrutínio da Bíblia revelou uma pletora de discrepâncias, inconsistências e repercussões alarmantemente inimigas do dogma oficial”.

Com isso tudo em mente, não deixa de ser impressionante ainda existirem pessoas – e muitas – que acreditam na infalibilidade papal. Um homem vai dormir como qualquer outro homem, e após o pronunciamento das palavras Habemus Papam, ele acorda um ser infalível. Foi assim que Joseph Ratzinger virou infalível como Bento XVI, da noite para o dia, pela votação de humanos. Aliás, o próprio Ratzinger, enquanto ainda não era Papa, havia afirmado que a “revelação” tinha acabado com Jesus Cristo, e que apenas a interpretação é que ainda existia. Mas esta é prerrogativa exclusiva da Igreja. Não se pode tentar interpretar por si mesmo. O mesmo Ratzinger foi quem se queixou certa vez de alguns teólogos que afirmavam que a Igreja parece ser uma construção humana. Ora, como ignorar que ela é de fato isso? Não podemos esquecer, por exemplo, que o Concílio de Nicéia votou que Jesus era divino, assim como a própria infalibilidade papal foi votada apenas em 1870. O mesmo Ratzinger teria dito que a “verdade não pode ser criada por votações”. Seria cômico, não fosse tão preocupante.

Em resumo, nenhum ser humano é infalível, e é o reconhecimento deste fato que nos permite maior tolerância e eterna busca pelo aprendizado. Os homens possuem a faculdade do raciocínio e devem questionar qualquer crença, buscando evidências que sustentem sua veracidade. O apelo à autoridade, ainda que de um Papa, não é um bom argumento, tampouco diz algo sobre o embasamento do que está sendo afirmado. Um argumento sólido deve se sustentar pela sua própria solidez, independente de quem o profere. Acredito que o mundo tem muito a melhorar se todos entenderem que somos todos falíveis. Errar é humano, e somos todos humanos – até mesmo o Papa.

terça-feira, março 06, 2007

Altruísmo ou Socialismo?


Rodrigo Constantino

“A Igreja Católica nunca desistiu da esperança de restabelecer a união medieval entre igreja e estado, com um estado global e uma teocracia global como o grande objetivo.” (Ayn Rand)



Ayn Rand comprou uma amarga briga com os religiosos mais fervorosos. Ela condenou o símbolo da cruz – da tortura e sofrimento do homem – defendendo em seu lugar o valor da busca pela felicidade de cada indivíduo nesta vida. O sacrifício individual, no sentido de colocar os interesses dos outros acima dos próprios, não deveria ser algo enaltecido como nobre, segundo ela. O altruísmo, então, seria incompatível com o individualismo, onde cada um é um fim em si. Isso não significa que a solidariedade deva ser condenada, mas sim que a própria felicidade deve ser a grande prioridade dos indivíduos. Não devemos nossa existência ao próximo nem devemos viver em função dos outros. A Igreja Católica, pregando o oposto, acabou virando alvo das ácidas críticas de Ayn Rand.

Foi o caso da Encíclica Populorum Progressio, escrita pelo Papa Paulo VI, antecessor de João Paulo II e que fala em nome do Vaticano. O altruísmo pregado pela Igreja pode, mesmo na mente do seu líder maior, se confundir bastante com o socialismo, sendo a diferença imperceptível a olho nu. Não é por acaso que muitos tentaram um casamento entre as idéias católicas e as socialistas, como foi o caso da Teologia da Libertação ou mesmo da CNBB. Não sem alguma razão, os conservadores cristãos mostram que tal união seria absurda pelos próprios valores do Cristianismo, que prega o foco no indivíduo e separa a Igreja do Estado, repetindo para dar a César o que é de César. Mas como podemos notar em diversos trechos dessa Encíclica, a linha é tênue, e não foram poucos os seguidores de Cristo que migraram para o socialismo.

Em uma das passagens, o Papa diz que é lamentável que o sistema da sociedade tenha sido construído considerando o lucro como um motivo chave para o progresso econômico, a competição como a lei suprema da economia, e a propriedade privada dos meios de produção como um direito absoluto que não tem limites e não corresponde à "obrigação social". Em outras palavras, o Papa lamentou que o capitalismo de livre mercado predominasse em relação ao socialismo. Os interesses coletivos, sabe-se lá quem os define, estariam acima do direito de propriedade privada, o que torna indivíduos sacrificáveis pelo "bem comum". O Papa ignora que, no livre mercado, o lucro é fruto do bom atendimento da demanda dos consumidores, ou seja, é o indicador de que os indivíduos, através de trocas voluntárias, estão satisfeitos. Todos sabem o que aconteceu nos países que tentaram abolir o lucro, a competição e o direito de propriedade privada. O resultado foi a miséria, a escravidão e o terror. São conseqüências inexoráveis do socialismo colocado em prática.

Em outro trecho, o Papa afirma que Deus pretendia que a terra e tudo que ela contém fosse para o uso de todo ser humano. "Logo", ele continua, "enquanto todos os homens seguirem a justiça e a caridade, os bens criados deveriam abundar para eles numa base razoável". E ainda conclui que "todos os outros direitos, incluindo aqueles da propriedade e do livre comércio, devem estar subordinados a este princípio". O Papa, entretanto, não define o conceito de "razoável", que é totalmente arbitrário. Ou seja, enquanto todos não tiverem acesso aos bens produzidos de uma forma "razoável", podemos invadir, pilhar e roubar. A declaração é inequívoca: "O bem comum exige por vezes a expropriação, se certos domínios formam obstáculos à prosperidade coletiva". Fora isso, devemos questionar: bens produzidos por quem? O minério-de-ferro encontra-se na natureza, mas dele até um automóvel existe um processo complexo que foi descoberto e realizado por indivíduos. Um fogão, uma geladeira, um avião, uma casa, nada disso cai do céu, nada disso nasce em árvores. Tudo é fruto do uso de mentes criativas e do esforço de indivíduos. Se todos terão direito a estes bens produzidos, significa que alguém terá o dever de produzi-los. Logo, podemos escravizar indivíduos, em nome da máxima socialista aqui implícita: "de cada um pela capacidade, a cada um pela necessidade".

Não satisfeito, o Papa Paulo VI foi mais além ainda, mergulhando no mais escancarado socialismo. Ele disse que o mundo foi dado para todos, não apenas para os ricos. E isto, para ele, significa que a propriedade privada não constitui para ninguém um direito absoluto e incondicional, "já que ninguém tem direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o necessário". Traduzindo, isso quer dizer que cada um deve ter o direito de consumir somente o básico necessário, até que todos tenham um mesmo grau de consumo. Se alguém no mundo passa fome, ou não tem uma geladeira, então um "rico" não deveria ter o direito de ter um telefone celular ou um computador. Países que tentaram adotar este modelo, que é uma idealização da inveja disfarçada de altruísmo, acabaram na completa miséria. Os ricos são destruídos, mas os pobres ficam ainda mais pobres.

Na mesma Encíclica, o Papa aventurou-se ainda na diplomacia internacional, afirmando que deve ser repetido que a riqueza supérflua dos países ricos deveria ser colocada a serviço das nações pobres. Ele reconhece que isso exigiria grande sacrifício por parte dos homens ricos, e questiona se estes estão preparados para pagar maiores impostos para que as autoridades públicas possam intensificar os esforços em favor do desenvolvimento. Pergunta se estariam preparados para pagar preços maiores pelos bens importados, de forma que seus produtores possam ser remunerados de forma mais "justa". Não obstante a enorme ineficiência dos meios pregados pelo Papa, que apenas prejudicam ainda mais os pobres, seria o caso de perguntar se o Papa considera um tratamento desigual justo, forçando os mais ricos a pagar mais por um mesmo produto. Novamente, a solução mágica para o fim da pobreza parece ser a destruição dos mais ricos. A desigualdade pode até acabar, mas não a miséria. Todos ficariam igualmente miseráveis.

Enfim, as passagens da Encíclica são declarações típicas de socialistas, com discursos politicamente corretos, nobres apelos, mas total desapego ao conceito objetivo de justiça, completa falta de compreensão dos conceitos básicos de economia, e uma escancarada propaganda em prol do ataque aos bem sucedidos. As passagens demonstram uma ignorância sobre o processo produtivo, sobre o que leva os homens a buscarem o progresso, digna do mais marxista dos militantes. A solidariedade não pode ser dissociada da palavra "voluntária". Os que pregam uma solidariedade compulsória, defendendo o altruísmo com o esforço alheio, querem apenas posar de nobres almas delegando a terceiros a responsabilidade. Buscam o monopólio das virtudes, enquanto defendem meios imorais e ineficientes, que levam ao oposto daquilo pregado. Pregam o altruísmo, e acabam com o socialismo. Para Rand, isso se deve ao ódio à mente humana, e por tabela ao próprio homem, à vida, e à sua felicidade nesse mundo, que deveria ser seu grande objetivo.

segunda-feira, março 05, 2007

O Anti-Semitismo Cristão


Rodrigo Constantino

"The greatness of Christianity did not lie in attempted negotiations for compromise with any similar philosophical opinions in the ancient world, but in its inexorable fanaticism in preaching and fighting for its own doctrine." (Hitler, em Mein Kampf)

De tudo que fui acusado pelos cristãos que não deveriam julgar, após meus artigos sobre religião, aquilo que mais me impressionou foi o anti-semitismo. Bastaria ter lido alguns artigos meus para ficar claro que tal acusação é esdrúxula. Não obstante, insistiram bastante neste ponto, e tudo porque tiraram uma frase que usei de Voltaire do seu contexto.

Em O Túmulo do Fanatismo, Voltaire estava condenando aqueles que acreditavam literalmente nas fábulas, e sobre estes, afirma que reconhecem ser "um povo de ladrões que carregam para um deserto tudo o que roubaram dos egípcios". Com isso, jamais quis acusar todos os judeus de ladrões, o que seria estúpido e coletivista. Logo depois, Voltaire compara as fábulas dos judeus com as dos gregos, afirmando que estas eram mais humanas. Afinal, Josué teria mandado enforcar trinta e um reis, e o próprio Voltaire condena o autor da história, dizendo que se ele tivesse o propósito de tornar os judeus execráveis aos olhos dos outros, não teria agido de outra forma. Em resumo, usei a frase neste contexto, condenando aqueles que acreditam nas histórias dos livros sagrados cegamente. Afinal, a própria Bíblia está repleta de passagens violentas, com assassinatos, escravidão e outras barbaridades que não me parecem nada admiráveis.

O livro citado por Voltaire para levantar a hipótese de Jesus ter sido filho do soldado Panther com Mirja, e ter sido declarado bastardo pelos juízes da cidade, é Sepher Toldos Jeschut, que parece ter sido composto vários anos depois do suplício de Jesus, na época em que compilavam os Evangelhos. A sinagoga, vendo uma nova seita nascida em seu seio, é que espalhava uma vida de Jesus injuriosa. Não deixa de ser curioso observar hoje cristãos falando em cultura judaico-cristã, como se judeus e cristãos tivessem sido unha e carne desde sempre, em vez de óleo e água. Não nos esqueçamos do Sermão da Montanha, onde Jesus diz: "Quando pois dás a esmola, não faças tocar a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem honrados pelos homens". Tudo bem que no mesmo discurso Jesus manda não julgar, e hipócrita me parece justamente um julgamento de valor. Mas fica a questão: seriam os judeus hipócritas na opinião do próprio Cristo? E apenas porque faziam aquilo que quase todo cristão faz hoje nas suas igrejas?

Shakespeare tratou do tema anti-semitismo em O Mercador de Veneza, retratando o preconceito vigente contra os judeus em sua época. Shylock, o judeu banqueiro, afirma numa passagem que odeia Antonio porque ele é cristão, e mais ainda, porque ele humildemente empresta dinheiro sem cobrar, pressionando a taxa de juros de Veneza para baixo. Shylock afirma que Antonio odeia os judeus, e que denuncia seus negócios e seu suado lucro, que ele chama de "usura". De fato, os cristãos condenaram por séculos a usura, princípio básico do capitalismo, já que é o que permite trocas voluntárias mutuamente benéficas entre poupadores e investidores. Fica estranho ignorar tantos séculos de brigas e disputas de repente, ainda mais quando sabemos que persiste um forte ranço anti-capitalista em muitos católicos.

Mas o que mais espanta mesmo é o que a Inquisição fez. Como dizem Michael Baigent e Richard Leigh em A Inquisição, "o alvo primário da Inquisição espanhola seria a população judaica da Península Ibérica". Segundo os autores, "a Inquisição na Espanha iria antecipar a patologia do nazismo do século XX". Os ‘conversos’, que haviam abandonado sua fé e abraçado o cristianismo, tendiam a estar entre as pessoas mais instruídas da Espanha. Desde o momento de sua criação, a Inquisição espanhola lançara olhos cobiçosos sobre a riqueza judia. A Inquisição endossou com entusiasmo o virulento anti-semitismo já promulgado por um notório pregador, Alonso de Espina, que odiava igualmente judeus e ‘conversos’. Alonso defendera a completa extirpação do judaísmo da Espanha - por expulsão ou extermínio.

A 12 de maio de 1486, todos os judeus foram enxotados de grandes partes de Aragão. Torquemada parece ter aceitado o adiamento pela Coroa da expulsão de todos os judeus da Espanha até que o Reino muçulmano de Granada fosse final e definitivamente conquistado. Conforme os autores contam: "Assim surgiu o notório caso da 'Santa Criança de La Guardia', uma fabricação mais crassa que qualquer outra perpetrada em nosso século por Hitler ou Stalin. A 14 de novembro de 1491, duas semanas antes da queda de Granada, cinco judeus e seis ‘conversos’ foram mandados para a estaca em Ávila. Haviam sido condenados por profanarem a hóstia". Como disse Carlos Fuentes, a Espanha, em 1492, baniu a sensualidade com os mouros, a inteligência com os judeus, e ficou estéril durante os cinco séculos seguintes.

Não custa lembrar também que Hitler, que era católico, dizia que estava seguindo os mandamentos do Senhor quando eliminava os judeus, em boa parte com a omissão da Igreja Católica, que jamais excomungou Hitler, até onde sei. Aliás, no Index dos livros proibidos pela Inquisição, Voltaire, Galileu, Victor Hugo e Kant estavam vetados, mas Mein Kampf, do nazista assassino, jamais constou na lista. Estranhos critérios esses...

Existem inúmeros outros casos para contar, mas creio que o big picture já tenha ficado claro. Esses cristãos, que chegam a minimizar as atrocidades da Inquisição, afirmando que era apenas uma defesa contra o Islã ou que matou bem menos que os comunistas, são os mesmos que me acusaram de anti-semita por causa de uma frase de Voltaire tirada do seu contexto. Seria cômico, não fosse trágico.

sábado, março 03, 2007

A Estrada para Valhalla



Rodrigo Constantino

"Devemos considerar as coisas concernentes ao nosso conforto e desconforto só com os olhos da razão e do juízo, conseqüentemente, com ponderação fria e seca." (Schopenhauer)

Os vikings tinham uma crença de que somente uns poucos escolhidos iriam para o paraíso, Valhalla, quando morressem. Para ser um desses felizardos, era necessário preencher certos quesitos, como morrer em batalha de forma honrosa. Chegando a Valhalla, o prometido era um eterno e farto banquete, regado de muitas mulheres. Com tal visão embutida desde crianças, os vikings se tornaram um povo guerreiro e violento, verdadeiros adoradores de uma boa e sangrenta batalha. E foi assim que seus líderes controlaram um exército dominador, uma horda de bárbaros conquistadores.

A história do mundo está repleta de casos como este, onde a oferta de um paraíso futuro dita as regras da vida no presente. Sonhos vendidos, promessas maravilhosas e utopias atraentes transformam os homens em meros escravos. Para se obter o prêmio final, a vida eterna, a felicidade plena da humanidade, faz-se necessário seguir como um autômato os dogmas impostos. Normalmente, algum grupo muito seleto dentre os governantes acaba bastante favorecido por tais crenças.

São inúmeros exemplos semelhantes ao de Valhalla, onde os fins justificam os meios, e o homem é visto apenas como algo sacrificável para o objetivo maior. O mais evidente no momento é a jihad islâmica, com uma intensa lavagem cerebral que afirma ser o desejo de Alá ter seus discípulos morrendo como mártires em batalha, para assim ingressarem no eterno paraíso repleto de virgens. E o caso mais estúpido de supressão da lógica num grupo pela busca do paraíso foi o suicídio coletivo liderado pelo reverendo Jim Jones em 1978.

Não é preciso ficar restrito às religiões, cujas promessas baseiam-se normalmente na vida após a morte. O socialismo foi um experimento grotesco que prometia um paraíso nesta vida mesmo, e acabou conquistando os corações dos mais românticos e ingênuos. Novamente, o homem era visto somente como um meio sacrificável para se chegar ao objetivo final. A estrada para a Valhalla socialista custou mais de 100 milhões de vidas, e em vez de encontrarem um farto banquete, viram muita miséria, prateleiras vazias, escravidão e morte.

Enquanto a humanidade não evoluir para uma visão de que o homem é um fim em si, sempre teremos de um lado os oportunistas, cuja arma intelectual é a promessa nobre do paraíso, e do outro a legião de seguidores, que crê no poder divino dos seus líderes e governantes, que deposita fé nos ideais coletivistas e românticos. Uns poucos sempre irão manipular e controlar o resto, usando a promessa do paraíso para a persuasão de alguns e a coerção oficial do poder para dominar os outros mais esclarecidos. Estes podem acabar em Gulags, no paredón ou nas estacas da Inquisição.

Ayn Rand foi uma filósofa que enveredou por esta linha de raciocínio, e toda a sua ideologia está calcada no fato de que o homem e sua felicidade são um fim em si. Sua ética prega e incentiva o egoísmo racional dos homens, apela para o uso da razão, do questionamento permanente. Somente assim o homem pode se libertar, acordar para a realidade, e maximizar sua felicidade enquanto vivo, seguindo objetivamente sua hierarquia de valores individuais. Todo o resto, incluindo os nobres chavões altruístas, não passa da velha estratégia de governantes e poderosos de prometer o Valhalla, relegando os anseios individuais a um valor insignificante perante o grande objetivo coletivo. Um código de ética, de conduta, deveria ser algo obtido através de muita reflexão lógica do que traz mais felicidade para o homem nesta vida, não algo imposto por uma força superior e enigmática, a ser seguido cegamente.

Como disse Gustave Le Bon, a lógica não faz parte da psicologia das massas. Não existe algo como "raciocínio de grupo”. Ter um pensamento independente, usar a lógica para compreender as coisas, é conditio sine qua non para nossa evolução e liberdade. Caso contrário, poderemos ser presas fáceis para os interesses alheios, sempre disfarçados com uma embalagem nobre e romântica. Questionar agride os objetivos dos manipuladores, que vendem ingressos para Valhalla. Para o indivíduo resistir à tentação do caminho mais fácil, deve sempre estar preparado para questionar sinceramente suas crenças. A estrada para o paraíso irá sempre parecer atraente. Afinal, como Schopenhauer disse, "quem espera que o diabo ande pelo mundo com chifres será sempre sua presa".





sexta-feira, março 02, 2007

Pela Legalização das Drogas


Rodrigo Constantino

"It is true that to be free may mean freedom to starve, to make costly mistakes, or to run mortal risks." (Hayek)

Devemos legalizar as drogas? Essa é uma questão que cada vez recebe mais atenção, posto que fica clara a derrota da guerra contra as drogas, que custa uma fortuna aos contribuintes e não consegue reduzir a criminalidade proveniente do tráfico. Pretendo explicar neste artigo os motivos pelos quais a resposta para a questão é afirmativa. São basicamente dois caminhos distintos para chegar à mesma conclusão: os resultados práticos e os direitos individuais. Antes, entretanto, é importante fazer uma ressalva: a legalização das drogas não é uma panacéia que irá resolver todos os problemas do crime. E não custa lembrar que outros países onde as drogas não são legalizadas não passam necessariamente pelo mesmo surto de violência que o Brasil se encontra, basicamente por causa da impunidade.

O tema polêmico foi alvo de estudo de muitos economistas famosos, a maioria focando na questão do custo e benefício, dos resultados concretos. O prêmio Nobel Milton Friedman, por exemplo, sempre advogou pela legalização das drogas. Ele afirmava que a legalização das drogas iria "simultaneamente reduzir a quantidade de crime e aumentar a qualidade da imposição da lei". Thomas Sowell, também da Escola de Chicago, é outro que defende este caminho, assim como o outro prêmio Nobel, Gary Becker, da mesma escola. Sowell lembra que as políticas são julgadas por suas conseqüências, mas as cruzadas são julgadas por quão bem elas fazem seus defensores se sentir. A guerra contra as drogas virou uma cruzada. Ele diz que não somos deus para viver a vida dos outros ou salvar pessoas que não querem ser salvas. Podemos concluir que a Escola de Chicago em peso defende a legalização das drogas. Mas não são apenas esses os economistas que mantêm tal postura.

Gordon Tullock, outro economista de peso, vai na mesma linha, lembrando que as leis de proibição são difíceis de serem aplicadas, custam caro e geram resultados ineficientes. Robert Barro alerta que a experiência com a proibição mostra que os preços sobem e a atividade ilegal é estimulada, gerando apenas um efeito negativo moderado no consumo, mas impondo custos inaceitáveis em termos de taxas elevadas de criminalidade e expansão da população carcerária. Walter Block alega que um livre mercado de marijuana e outras drogas aumenta o bem-estar econômico. Mary Cleveland foca no fato do mercado negro ser perigoso e acabar atraindo jovens problemáticos com oportunidades limitadas, que acabam se tornando usuários de drogas pesadas.

David Henderson lembra que a maioria dos problemas que as pessoas acham que são causados pelas drogas não são causados por elas em si, mas pelas leis sobre elas. O método moralmente adequado para evitar o consumo de drogas seria a persuasão, não a prisão dos usuários. Robert Higgs considera que o abandono dessa cruzada quixotesca das autoridades contra as drogas iria permitir gastos maiores para a proteção da vida e propriedade, evitando uma invasão aos direitos naturais, que incluem o direito de decidir como usamos – ou abusamos – dos nossos próprios corpos. Randall Holcombe faz coro no argumento de que os males causados pelas drogas costumam vir do fato de serem ilegais, não drogas. Daniel Klein reforça a visão de que a proibição cria um mercado negro que a sociedade não consegue controlar. Jeffrey Miron e Jeffrey Zwiebel concluíram em seus estudos que um livre mercado de drogas provavelmente seria uma política bem superior em relação às adotadas atualmente, como a proibição.

Murray Rothbard também faz a conexão entre vício e crime, lembrando que os crimes são cometidos por viciados levados ao roubo pelo alto preço das drogas causado pela sua própria ilegalidade. Se os narcóticos fossem legais, sua oferta iria aumentar e os altos custos do mercado negro iriam desaparecer, fazendo os preços ficarem baixos o suficiente para eliminar a maioria dos crimes cometidos por viciados.

Quase todos esses argumentos estão voltados para os resultados práticos da proibição das drogas. Mas creio que devemos, acima disso, colocar a questão dos direitos naturais. John Stuart Mill, por exemplo, defendeu a liberdade de consumir álcool e ópio como um dos mais básicos direitos civis. O foco no utilitarismo é extremamente perigoso, podendo levar ao conceito de que os fins justificam os meios. Ora, se fosse considerado que a morte de alguns sujeitos chatos, entretanto pacíficos, fosse aumentar a utilidade geral, o bem-estar da maioria, alguém defenderia o direito de assassinarem esses chatos? Hitler aprovaria essa mentalidade, já que achava que matar judeus seria bom para a nação. Mas Hitler era um monstro. O utilitarismo costuma andar lado a lado com o coletivismo, e transforma indivíduos em animais sacrificáveis. Libertários pensam que a coerção contra aqueles que não iniciaram coerção deve ser eliminada. O que cada um faz com seu próprio corpo diz respeito apenas a si próprio. Não faz sentido jogar na prisão ao lado de assaltantes e assassinos, que violaram os direitos alheios, alguém cujo único "crime" foi ter fumado um cigarro de maconha em sua própria casa.

No fundo, esta postura é totalmente autoritária. Pessoas bem intencionadas, imbuídas de uma missão divina, querem impor aos demais como a vida deve ser vivida. Ora, o cigarro não faz mal à saúde? Mas por que devemos proibir o indivíduo de fumar, se ele assim quiser? Comer demais também faz mal para a saúde, assim como a ociosidade, mas nem por isso vamos criar leis para controlar tais práticas. Eu posso considerar um livro de Marx uma droga bem mais prejudicial ao cérebro que a maconha, mas nem por isso vou defender o uso da coerção estatal para proibir sua leitura. Seria autoritarismo puro. Essa visão de que o Estado deve cuidar dos indivíduos incapazes de escolher por si próprios é paternalista demais. Liberais acreditam na responsabilidade individual, e entendem que cada um sabe melhor o que pretende para sua vida. Se abrirmos precedente para que burocratas ou mesmo a maioria possam escolher por todos o que é o melhor, nada impede que amanhã uma maioria de vegetarianos decida banir o McDonald’s do mundo. Onde ficam os direitos individuais, a liberdade de escolha?

Podemos analisar os jogos de azar como um paralelo interessante às drogas. O jogo do bicho, por exemplo, teve sua origem em 1892, quando João Batista Vieira Drummond, dono de uma chácara com um pequeno jardim zoológico em Vila Isabel, resolveu criar um jogo para levantar recursos e manter os animais e toda a sua estrutura. Eram vendidos bilhetes de sorteios com bichos desenhados. Um negócio honesto, com trocas voluntárias. Mas quando o governo resolve que isso é ilegal, condena todos ao crime, incentivando a corrupção e violência. Isso para não falar que o próprio governo vende jogos de azar! Não gosta da concorrência, e cria um monopólio por lei, fazendo com que o jogo do bicho vire prática criminosa. Devemos respeitar as trocas voluntárias entre adultos responsáveis. O jogo de azar pode viciar e destruir a vida de alguns. Mas não devemos, por causa disso, impedir que uma maioria use com moderação e tenha prazer. Abusus non tollit usum. O abuso de algo não pode tolher seu uso. Ora, até o consumo exagerado de remédios legais pode matar. Vamos proibir a venda de aspirinas ou Prozac por causa disso? O mais importante não é o que é consumido, mas sim como é consumido. Com moderação, até a bebida alcoólica faz bem, ou mesmo a maconha, usada em tratamentos médicos.

O curioso é que muitos defendem a proibição das drogas bebendo sua dose diária de Uísque. Cáspita! Será que ignoram que tal bebida é droga também, que pode viciar e levar à morte se consumido excessivamente? O álcool é, na verdade, droga mais pesada que a maconha, por exemplo. Ou seja, as drogas já são liberadas, mas nem todas. No passado, nos Estados Unidos, já experimentaram proibir todas as drogas. A Lei Seca criou apenas criminosos, como Al Capone. Com seu término, a família Coors é vista com respeito por todos, assim como os brasileiros bilionários sócios da Inbev. O que mudou? A atividade é a mesma: vender bebida alcoólica. Apenas a lei mudou, e foi suficiente para reduzir a criminalidade neste setor. Como dizia Roberto Campos, "tudo o que é rigorosamente proibido é ligeiramente permitido". E é melhor permitir legalmente que criar um mercado ilegal, já que a demanda não desaparece. Como lembrava Mises, "não é porque existem destilarias que as pessoas bebem uísque; é porque as pessoas bebem uísque que existem destilarias".

Alguns aceitam a descriminalização dos usuários ou uma legalização parcial, e propõem algo como os sin taxes, impostos elevados sobre produtos de má reputação, como já ocorre com o cigarro e as bebidas alcoólicas. É a postura de Gary Becker, por exemplo. Mas esses elevados impostos podem não reduzir o mal causado pela proibição, deixando os problemas sem solução real. No mercado de cigarro no Brasil, cerca de um terço vem de contrabando e ilegalidade, devido aos enormes impostos. O mercado negro acaba se mantendo vivo pelo alto custo da legalidade.

Em resumo, seja pela lógica de resultados práticos ou pela defesa da liberdade individual, as drogas deveriam ser legalizadas. Isso iria reduzir a criminalidade e garantir a liberdade de escolha individual. O "argumento" de que consumidores de drogas podem causar danos externos não é válido, posto que o álcool hoje já tem esse mesmo risco, sem falar de outras fontes, como a negligência. Pune-se o ato, não a possibilidade dele ser cometido. No máximo, pode-se considerar um agravante para a penalidade o consumo de drogas, buscando coibir a irresponsabilidade. Mas de forma geral, os defensores da proibição negam que os indivíduos sejam capazes de fazer escolhas conscientes. São todos tratados como mentecaptos, com a exceção do dia do voto obrigatório. A proibição das drogas acaba sendo ineficiente e autoritária, colocando em risco a liberdade individual.

quinta-feira, março 01, 2007

Uma Verdade Inconveniente



Rodrigo Constantino

"Ninguém pode usar uma máscara por muito tempo: o fingimento retorna rápido à sua própria natureza." (Sêneca)

O ambientalista mais famoso dos Estados Unidos – quiçá do mundo – é sem dúvida o ex-vice presidente Al Gore. Recentemente premiado com o Oscar pelo seu documentário, An Inconvenient Truth, o ativista ecológico prega medidas urgentes para combater o aquecimento global. Não vem ao caso aqui questionar os alardes que muitos fazem sobre o assunto, ignorando que os próprios cientistas reconhecem um passado incerto mas acabam prevendo um futuro certo de catástrofe. Um caso único onde é mais difícil acertar o que se passou do que está por vir. Também não vem ao caso falar que muitos cientistas são céticos quanto aos alarmes mais terroristas, discordando do relatório da ONU. Por fim, não é o tema deste artigo alertar para a postura fanática de muitos, que tentam impor a verdade que "todos sabem", calando qualquer voz contrária na marra. Essa postura não é científica, mas típica de fanatismo, da nova "religião verde". Mas nada disso importa muito aqui. Este artigo irá tratar apenas da hipocrisia.

Os alarmistas partem de um fato – o aumento da temperatura média no planeta, e chegam ao objetivo que desejam: pedir mais recursos para o governo cuidar do problema e atacar um determinado estilo de vida. Também não é o foco deste artigo mostrar que onde tivemos mais controle governamental, como nos países socialistas, tivemos mais poluição em termos relativos. Basta aqui lembrar que políticos dependem de votos para sobreviver no mundo político, e quanto mais verba e poder, melhor, pois são seres humanos, e não alienígenas abnegados. Seguem os próprios interesses como todos os demais indivíduos. Al Gore é um perfeito animal político, e com ele não poderia ser diferente. Inteligente, percebeu um excelente nicho para concentrar suas forças e ganhar evidência mundial, angariando junto muitos votos. O problema é a seguinte questão: será que ele vive mesmo de acordo com o que prega?

Devido à enorme exposição que ele tem, seria de esperar que sua vida fosse realmente de acordo com suas palavras. Não faz sentido o grande defensor da redução da emissão de carbono e da maior consciência sobre o problema energético ignorar tais pontos no seu dia a dia. Tanto é que consta que sua família utiliza carros híbridos, para não consumir muita gasolina. Souberam fazer propaganda com isso. Ocorre que recentemente foi divulgado que a família de Al Gore consome cerca de vinte vezes mais energia que a média nacional. Vinte vezes! Sua mansão de 20 quartos em Nashville, com piscina aquecida e lanternas de gás no jardim, consumiu cerca de US$ 30 mil em eletricidade em 2006. Seu gasto mensal é mais do que uma família média americana gasta por ano! O grande defensor da causa ambientalista, que adora condenar o estilo de vida moderno, incutindo culpa de criminoso em um indivíduo que apenas dirige um SUV, consome energia suficiente para abastecer 20 famílias médias americanas. Faça o que eu digo, não faça o que eu faço.

Os esquerdistas, grandes entusiastas da causa ambientalista para usá-la como ataque ao capitalismo, logo aparecem em defesa de Al Gore, afirmando que não há nada demais em sua conduta. A esquerda sempre age assim: dois pesos e duas medidas. Um empresário rico é condenado como explorador, por exemplo. Mas um milionário que prega o socialismo é tratado como ídolo. Não é o dinheiro que realmente incomoda, mas a forma como foi obtido. Se é um empresário através do livre mercado, oferecendo produtos desejados pelos consumidores e gerando empregos, então deve ser condenado como explorador. Mas se é um artista que vive de verbas estatais falando mal do capitalismo, ou um cineasta que faz filmes para mostrar como o capitalismo é podre enquanto enche o bolso de dinheiro, então não tem problema. A riqueza só é pecado para o capitalista honesto. Se for acumulada durante as pregações socialistas, então não faz mal.

Mas explico esta conduta ambígua típica da esquerda para voltar ao tema principal sobre Al Gore: a hipocrisia. O dicionário Aurélio a define como "afetação de virtude ou sentimento que não se tem", ou então "fingimento, falsidade". O que tem de gente que tenta monopolizar virtudes, propagando aos quatro ventos como defende fins nobres, enquanto na prática não segue tais virtudes! Daria para lotar vários estádios do tamanho do Maracanã. São pessoas preocupadas em posar de grande homem, em conquistar fama ou outros interesses através de uma virtude que reconhecem como virtude, mas não a possuem de verdade. Pessoas que pregam uma vida espartana de suas casa luxuosas; gente que diz que a burguesia fede enquanto vive como um perfeito burguês; artistas que defendem o socialismo enquanto desfrutam de tudo que somente o capitalismo pode oferecer; religiosos que condenam o "bezerro de ouro" de suas ricas igrejas ornamentadas com muito ouro; e políticos que pregam maior conscientização sobre o problema energético enquanto consomem vinte vezes mais energia que a média nacional.

Mas nada disso é hipocrisia, dizem. Ignoram que ações valem mais que palavras. Mataram a hipocrisia, tiraram-na do dicionário. Assim, qualquer um pode condenar o roubo enquanto pratica um assalto, que não há hipocrisia. Qualquer um pode reclamar do luxo dos outros enquanto vive no completo luxo, que não há hipocrisia. E por aí vai. Não é mais necessário viver de acordo com o que prega. Chegamos então a uma verdade realmente inconveniente: o mundo está repleto de hipócritas!