terça-feira, julho 12, 2011

Pense positivo

JOÃO PEREIRA COUTINHO, Folha de SP

MINHA MELHOR amiga morreu no início do ano. Câncer, eis o nome do ladrão. Não entro em detalhes.
Mas há detalhes que não esqueço: a última vez que a vi, no hospital, dois dias antes da notícia amarga. Havia dor e sofrimento, é lógico, e também a certeza de que a cortina iria descer.
Disseram-se muitas coisas -coisas nunca ditas, inauditas, malditas, como se o tempo, a escassez de tempo, fosse a musa inspiradora dos arrependidos.
Mas o que mais me custou naquele quadro de despedida foi a culpa. Não apenas a minha culpa pelos dias ou semanas desperdiçados longe dela. Falo da culpa que ela sentia por não ter sido "positiva" até o fim.
A crueldade do pensamento nunca mais me abandonou: "positiva" por quê, ou para quê, ou em quê?
Para ajudar na cura, dizia-me ela e diziam-me familiares dela. O "pensamento positivo" é tão importante como as sessões longas e dolorosas de quimioterapia. "O humor do doente é 50% do caminho", ouvi eu, de vários sábios, vários dias seguidos. Onde estará a camiseta com essa frase?
Abandonei o hospital sem palavras. Não basta a doença ser castigo que baste. Ainda existe essa exigência suplementar em "ser positivo".
Para certas mentes primitivas, "ser positivo" não é apenas importante no processo de cura; também é importante para explicar a própria existência da doença.
Se somos "positivos", a doença se comporta como um animal selvagem na presença de uma fogueira: sente medo e se retrai.
Se não somos "positivos", a doença cheira o nosso pessimismo, se aproxima e nos despedaça.
Como despedaçou a minha amiga. No funeral, entre choros e lamentos, ainda havia quem retomasse a mesma filosofia infame. O câncer "vencera a batalha" porque ela "deixara de lutar". E, claro, "o humor do doente é 50% do caminho". Não esmurrei ninguém porque um forte sentimento de repulsa me obrigou a sair logo dali.
É por isso que leio e aplaudo a entrevista de Jimmie Holland à "Veja". Holland é psiquiatra no memorial Sloan-Kettering, em Nova York, e há mais de 30 anos acompanha doentes com câncer.
O resultado dessa experiência pode ser lido em livro recentemente lançado, "The Human Side of Cancer" (o lado humano do câncer, ainda sem publicação no Brasil). Conclusão de Holland: o "pensamento positivo" não existe. É mito. É uma clamorosa estupidez.
Sim, o apoio psicológico é necessário em momentos de fragilidade oncológica, afirma Holland. O bem-estar psíquico é importante para os doentes e para as suas famílias.
E é importante também não deixar que a depressão se instale: quando há tratamentos para fazer, não é boa ideia ficar na cama todo dia, chorando a respetiva sorte.
Mas "ser positivo" é outra história: é acreditar que a nossa vontade otimista, nosso humor solar, nossa forma de "encarar a vida" e outros clichês mentecaptos serão capazes de reverter uma doença impessoal.
Essa crença é típica do racionalismo moderno na sua recusa extrema de aceitar o imponderável. Vivemos mais. Vivemos melhor. Controlamos o nosso destino -pessoal, coletivo- como nenhum dos nossos antepassados.
Mas, apesar de tudo isso, ou exatamente por causa disso, não podemos aceitar que a doença seja apenas doença; que o sofrimento seja apenas sofrimento -sem culpas nem culpados; sem explicação ou resolução. Isso seria um insulto a nossa vaidade racionalista.
Se a doença chega, é porque nós deixamos os maus espíritos entrar. Se a doença se instala e mata, é porque nós deixamos os maus espíritos vencer. "O humor é 50% do caminho", dizem os sábios. E a quem pertencem os restantes 50%?
Obviamente: pertencem à ciência; e a ciência, a única religião dos homens modernos, não falha nunca. Quem falha somos nós. Pense positivo, leitor.
Moral da história? Não sei quantos doentes o "pensamento positivo", na sua lógica ditatorial e desumana, condenou a uma culpabilização final e imoral. Suspeito que existe um exército infinito deles.
Espero apenas que, esteja onde estiver, a minha amiga possa olhar cá para baixo, para a estupidez dos homens, e perdoar aqueles que não sabem o que fazem.

10 comentários:

Anônimo disse...

O problema está na generalização. O "pensamento positivo" somente é eficaz nas doenças psicossomáticas. No mais, é realmente um mito.

Sergio Oliveira Jr. disse...

Gostei muito, principalmente pela coragem de abordar um tema tão delicado. Minha opinião sobre isso é simples: A VIDA NÃO É INFINITA, E MERDAS ACONTECEM. OTIMISMO AJUDA, TÁ PROVADO, MAS NÃO É SUFICIENTE.

E principalmente: AS PESSOAS TEM O DIREITO DE SE CANSAR E DE DESISTIR. Chega uma hora que a vida acaba ou acaba a vontade de vive-la. Daí todo mundo tem o direito de descancar.

O cara falar isso com 40 anos é um desperdício sem tamanho, pois ainda há muito a ser vivido. Agora o cara falar isso com uma idade mais avancada ou vitima de uma doenca, nada mais é que um direito dele.

A vida acaba. APROVEITE AGORA ENQUANTO HÁ TEMPO. E SEJA FELIZ A TODO O CUSTO.

Anônimo disse...

O primeiro anônimo resumiu perfeitamente, o 'sábio' que decretou que pensamento positivo não existe só ignorou as doenças psicossomáticas, coisa das mais batidas em medicina
E além disso existe o efeito placebo, onde as pessoas acham que ficaram curadas por causa de aguinha, pilulas de farinha, psicanálise...
Rodrigo, não sei qual o sentido de posts assim.Primeiro porque tu perde credibilidade quando se mete a falar(ou bota outros falando) de áreas que não domina, depois porque fica uma coisa contraditória, primeiro tu se diz otimista depois vem defender o direito a negatividade...se decide pô

Antonio Carlos disse...

O Coutinho é tão católico que não pôde deixar de criticar a ciência. Mas é porque ele deve ter orado tanto e ela morreu do mesmo jeito. Mas pense positivo, como Coutinho, reze para que o benevolente Deus cristão leve-a para o céu dos eleitos e tenha a eternidade dos anjos... Onde quer que ela esteja!

Aprendiz disse...

Respondendo ao segundo anônimo

Considerei importante o artigo. E olhe que eu acredito na importância da atitude para a solução dos problemas. Já dei aulas de ensino fundamental para adultos, ví como a atitude era importantíssima. Já ví curas, na minha família, em casos que os médicos diziam ser possível apenas o controle, nunca a cura. Acredito no poder da atitude correta, e mais ainda, na importância da fé em Deus.

Mas o colega deveria entender que o articulista não criticou a atitude positiva, e sim a crença insensata de que temos total controle. Desacreditar no poder humano é um erro grave, mas crer demias nele é um erro muito maior. O maior assassino em massa da humanidade, o coletivismo, parte da crença insensata de que o homem tem o pode de mudar sua própria natureza. E quantas pessoas estão sofrendo e fazendo sofrer por julgarem que podem mudar os outros, independentemten da vontade dos outros? E quantas pessoas estão sofrendo e fazendo sofrer porque foram ensinadas que são especiais? É muito importante dizer às pessoas que há o imponderável. que elas não são super-homens.

A atitude positiva pode causar males imensos. Mas, bem direcionada, pode fazer muito bem.

Leo SKHM disse...

Por coincidência, dois dias atrás, escutei de um amigo que ódio, emoção negativa, causa câncer. Este tipo de raciocínio parece mais disseminado do que parece.

Tem um vídeo que eu me lembrei que também trata deste assunto:
http://www.youtube.com/watch?v=u5ikuA6Mggw

Anônimo disse...

Pensamento positivo: em agosto de 2010, em Jackson Hole, o papo funcionou e jogou a bolsa para cima por 1 ano, vou repetir a conversa...
Fernando A.

Augusto disse...

1) "Ele contraiu gripe, variola, dengue, sarampo, caxumba"

Vs

2) "Ele desenvolveu câncer"

Como não existe um agente externo como um virus pra gente culpar(1), logo, culpamos o próprio sujeito(2).

Se o sujeito tem maus hábitos como fumar ou beber estamos feitos. Se não tem, culpamos seus sentimentos/emoções. Se o sujeito é bonzinho de doer dizemos que é porque ele fica se remoendo, não revida, sofre por dentro.

Ainda lembro de um episódio de House onde um gordo tinha câncer de pulmão sem nunca ter fumado, e durante o episódio todo todos procuravam problemas digestivos. No fim... ele tinha câncer no pulmão porque... tinha!

Mas doença ainda é usada como resultado lógico de algo...

Não é apenas sujeito que morde a fronha e prostituta que tem HIV - crianças, pessoas que fizeram transfusão etc.

Não é apenas pessoa rancorosa, com muitas mágoas, mau humorada que tem câncer... até cachorro tem câncer...

Mas todos falam mesmo, é um saco...

Anônimo disse...

Ninguém tem câncer no pulmão porque tem, sempre existe predisposição genética e muito mais fatores externos do que as pessoas imaginam
Conclusão: assistir house além de ser uma perda de tempo é se contaminar com uns memezinhos estúpidos criados por roteiristas estúpidos

Bruno disse...

Bem, a amiga dele morreu, e ae? Poderia ter sido atropelada ou ter um derrame fatal... Sofreu, assim como todo paciente sofre, pois é uma doença ingrata, pois atinge nao só o homem. Como será que o cachorro pensa positivo se ele é um ser irracional?