domingo, fevereiro 12, 2012

Um sonho que acabou

FERREIRA GULLAR, FOLHA DE SP

É com enorme dificuldade que abordo este assunto: mais uma vez -a 19ª- o governo cubano nega permissão a que Yoani Sánchez saia do país. A dificuldade advém da relação afetiva e ideológica que me prende à Revolução Cubana, desde sua origem em 1959.

Para todos nós, então jovens e idealistas, convencidos de que o marxismo era o caminho para a sociedade fraterna e justa, a Revolução Cubana dava início a uma grande transformação social da América Latina. Essa certeza incendiava nossa imaginação e nos impelia ao trabalho revolucionário.

Nos primeiros dias de novo regime, muitos foram fuzilados no célebre "paredón", em Havana. Não nos perguntamos se eram inocentes, se haviam sido submetidos a um processo justo, com direito de defesa. Para nós, a justiça revolucionária não podia ser questionada: se os condenara, eles eram culpados.

E nossas certezas ganharam ainda maior consistência, em face das medidas que favoreciam aos mais pobres, dando-lhes enfim o direito a estudar, a se alimentar e a ter atendimento médico de qualidade. É verdade que muitos haviam fugido para Miami, mas era certamente gente reacionária, em geral cheia da grana, que não gozaria mais dos mesmos privilégios na nova Cuba revolucionária.

Sabíamos todos que, além do açúcar e do tabaco, o país não dispunha de muitos outros recursos para construir uma sociedade em que todos tivessem suas necessidades plenamente atendidas. Mas ali estava a União Soviética para ajudá-lo e isso nos parecia mais que natural, mesmo quando pôs na ilha foguetes capazes de portar bombas atômicas e jogá-las sobre Washington e Nova York. A crise provocada por esses foguetes pôs o mundo à beira de uma catástrofe nuclear.

Mas nós culpávamos os norte-americanos, porque eles encarnavam o Mal, e os soviéticos, o Bem. Só me dei conta de que havia algo de errado em tudo isso quando visitei Cuba, muitos anos depois, e levei um susto: Havana me pareceu decadente, com gente malvestida, ônibus e automóveis obsoletos.

Comentei isso com um companheiro que me respondeu, quase irritado: "O importante é que aqui ninguém passa fome e o índice de analfabetismo é zero". Claro, concordei eu, muito embora aquela imagem de país decadente não me saísse da cabeça.

Impressão semelhante -ainda que em menor grau- causaram-me alguns aspectos da vida soviética, durante o tempo que morei em Moscou. O alto progresso tecnológico militar contrastava com a má qualidade dos objetos de uso. O que importava era derrotar o capitalismo e não o bem-estar e o conforto das pessoas. Mas os dirigentes do partido usavam objetos importados e viam os filmes ocidentais a que o povo não tinha acesso.

Se a situação econômica de Cuba era precária, mesmo quando contava com a ajuda da URSS, muito pior ficou depois que o socialismo real desmoronou. É isso que explica as mudanças determinadas agora por Raúl Castro.

Mas, antes delas, já o regime permitira a entrada de capital norte-americano para construir hotéis, que hoje hospedam turistas ianques, outrora acusados de transformar o país num bordel. Agora, o governo estimula o surgimento de empresas capitalistas, como o faz a China. Está certo desde que permita preservar o que foi conquistado, já que a alternativa é o colapso econômico.

Tudo isso está à mostra para todo mundo ver, exceto alguns poucos sectários que se negam a admitir ter sido o comunismo um sonho que acabou. Mas há também os que se negam a admiti-lo por impostura ou conveniência política.

Do contrário, como entender a atitude da presidente Dilma Rousseff que, em recente visita a Cuba, forçada a pronunciar-se sobre a violação dos direitos humanos, preferiu criticar a manutenção pelos americanos de prisioneiros na base aérea de Guantánamo, o que me fez lembrar o seguinte: um norte-americano, em visita ao metrô de Moscou, que, segundo os soviéticos, não atrasava nunca nem um segundo sequer, observou que o trem estava atrasado mais de três minutos. O guia retrucou: "E vocês, que perseguem os negros!".

A verdade é que nem eu nem a Dilma nem nenhum defensor do regime cubano desejaria viver num país de onde não se pode sair sem a permissão do governo.

4 comentários:

Felipe disse...

Ótimo texto.

"Para todos nós, então jovens e idealistas, convencidos de que o marxismo era o caminho para a sociedade fraterna e justa, a Revolução Cubana dava início a uma grande transformação social da América Latina."

E o mais engraçado é que não estavam errados. Realmente foi o início de uma grande transformação social... para pior, muito pior!

"Mas nós culpávamos os norte-americanos, porque eles encarnavam o Mal, e os soviéticos, o Bem."

Normal. Faz parte do pacote clássico de imbecilidades esquerdistas.

"Só me dei conta de que havia algo de errado em tudo isso quando visitei Cuba, muitos anos depois, e levei um susto: Havana me pareceu decadente, com gente malvestida, ônibus e automóveis obsoletos."

Pois é. O duro e frio concreto da realidade...

"Comentei isso com um companheiro que me respondeu, quase irritado: "O importante é que aqui ninguém passa fome e o índice de analfabetismo é zero"."

... que os esquerdistas fazem de conta que não existe.

"Mas os dirigentes do partido usavam objetos importados e viam os filmes ocidentais a que o povo não tinha acesso."

Normal também. Comunismo e pobreza, no dos outros é refresco. Exemplos não faltam:

http://www.jalopnik.com.br/conteudo/o-fetiche-secreto-de-kim-jong-il-pela-mercedes-benz

"Tudo isso está à mostra para todo mundo ver, exceto alguns poucos sectários que se negam a admitir ter sido o comunismo um sonho que acabou. Mas há também os que se negam a admiti-lo por impostura ou conveniência política."

Eu nunca esperei honestidade intelectual dessa gente.

"A verdade é que nem eu nem a Dilma nem nenhum defensor do regime cubano desejaria viver num país de onde não se pode sair sem a permissão do governo."

Aliás, esquerdistas não costumam praticar o que pregam. Falam em "justiça social" e "divisão de riquezas", mas gostam mesmo é de dinheiro, de luxo, de ostentação. Por exemplo, gente do governo brasileiro que não pensa meia vez antes de aprovar mais aumentos para os seus já estratosféricos salários, não hesita um minuto antes de criar mais privilégios para seu grupo às custas do sofrimento do povo... e depois ainda chama esse mesmo povo de "ricos sonegadores de impostos"... pois é, socialismo/comunismo/esquerdismo/estatismo é isso aí.

Parabéns ao Ferreira Gullar pela coragem de escrever esse texto. Aposto que agora os esquerdistas vão apedrejá-lo, chamando-o de velho, demente, louco, vendido, agente infiltrado dos Estados Unidos, porco capitalista, rico sonegador de impostos e por aí vai...

Anônimo disse...

Muitas são as reportagens e opiniões mostrando a situação atual de Cuba.
O que raramente se vê é alguém ter a CORAGEM de falar que o grande engôdo político do século passado, o socialismo marxista, acabou.
Na realidade por muito tempo se soube que era uma enganação!
Os maiores propagandistas e ativistas são os que menos admitem aquilo que pregavam ou tencionavam.
Ainda bem que nunca me enganei!
Abraço a todos e boa semana.

Carlos Magno disse...

Realmente, ele está absolutamente correto. Infelizmente muita gente ainda tem a tática de Che e Fidel como parâmetro de ação política e´´humanidade``. Eles poderiam ter o grande Olof Palme como exemplo para as duas coisas.
O caminho é abrir Cuba e tentar implantar um equilíbrio entre mercado e Estado pra chegar ao Welfare State, tendo como modelo a Suécia. Não estou dizendo que tem que ser a mesma coisa.É claro que devem ser respeitadas as especificidades cubanas, que por exemplo, mesmo que não se queira admitir, tem altos índices de alfabetização. O problema é que com o regime atual, a educação não serve pra nada, simplesmente não existem empregos.
Apesar de eu ser contra a violência, no caso cubano eu aceitaria que a população derrubasse Fidel e cia através da violência, já que esse regime é violento e impede qualquer tipo de oposição. Não é possível dialogar com quem só sabe ´´dialogar`` usando canhões.

Anônimo disse...

Depois que eu li que ele notou q as pessoas, malvestidas, concluí que os comunistas brasileiros são os mais fashionistas do planeta! Eita Brasil... Agora ele escreve sobre o fim do sonho. Até que ficou bonitinho o artigo.
Os intelectuais comunistas são uns...

Mônica - Itaperuna -RJ