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domingo, julho 21, 2013

Hierarquia estética

Rodrigo Constantino

Postei no Facebook no sábado pela manhã um trecho da ária da Rainha da Noite, de A Flauta Mágica, de Mozart, com o seguinte comentário: Mas há quem prefira funk... questão de gosto, de preferência subjetiva? Sim, sem dúvida. Assim como é questão de gosto quem prefere comer esterco em vez de caviar...

Alguns acharam que o comentário foi elitista, esnobe. Não! É apenas a tentativa de resgatar o fundamental direito de julgar, de respeitar certa hierarquia estética nesse mundo relativista, onde tudo tem que ser "igual" pois as diferenças ofendem. Quando "tudo" é arte, nada é arte!

Um dos que têm combatido esse relativismo estético - que, não se enganem, tem forte ligação com o ético - é Ferreira Gullar. Ele volta e meia utiliza sua coluna aos domingos na Ilustrada da Folha para bater nessa tecla, com razão. Voltou ao tema hoje, com um importante artigo defendendo que a beleza ainda põe mesa. Diz o poeta na abertura:

Arte sempre teve a ver com beleza, mesmo quando, aparentemente, mostra o feio, o horrível, o abjeto.

Não é fácil explicar o que acabo de afirmar. Para dizer a verdade, não sei ainda como explicá-lo, mas sei que o que disse é certo: a arte sempre teve (e tem) a ver com a beleza, porque, do contrário, não nos daria prazer. E não venham agora me dizer que arte não é para dar prazer. E seria para que, então? Para nos fazer sofrer é que não é, porque sofrimento já há demais na vida e ninguém gosta de sofrer, a não ser os masoquistas, que são doentes.

Inventei uma frase que o pessoal aí adotou e repete: "A arte existe porque a vida não basta". E é verdade. Não pretendo com isso dizer que a vida é só chatice e sofrimento. Não, a vida tem muita coisa boa e bela, mas, por mais que tenha, não nos basta. É que nós, seres humanos, sempre queremos mais. Mais alegria, mais felicidade, mais beleza.


O ser humano deseja o belo, e a beleza é fundamental. Infelizmente, vivemos em uma época de revolta contra tudo que é melhor, mais belo, mais refinado. É como se os medíocres tivessem descoberto seu poder numérico e desejassem destruir os melhores. O relativismo moral, ético e estético é exatamente isso. 

Suspender o julgamento porque todos são "iguais" em suas diferenças, e ninguém é melhor do que ninguém, significa a vitória do pior sobre o melhor, do feio sobre o belo. Pergunto: a quem isso interessa? Quando Mozart e Beethoven são jogados no mesmo saco que Valesca Popozuda e Tati Quebra-Barraco, quem sai perdendo e quem sai ganhando? Quando um linguajar chulo é equiparado a um texto clássico, quem ganha? Quando "nós pega os peixe" e Shakespeare são "apenas diferentes", quem perde? Gullar conclui:

O acaso é, sem dúvida, um fator presente na realização de qualquer obra de arte mas, a partir da Renascença, quando os pintores buscaram a execução cada vez mais perfeita, esse fator foi sendo quase anulado. Na época moderna, chegou-se ao extremo oposto mas, num caso como noutro, o que se buscava era a beleza.

Isso é diferente de certo tipo de manifestação artística contemporânea, em que não há qualquer preocupação com o apuro da linguagem utilizada. Em alguns casos, pelo contrário, o autor parece buscar o primarismo e o mau gosto, como a nos dizer que arte e beleza são coisas velhas, ultrapassadas.

Pelo bem da humanidade, espero que não sejam coisas velhas, ultrapassadas. A guerra é cultural, e os defensores da hierarquia estética estão perdendo batalha atrás de batalha. Que não seja tarde demais para virar o jogo. 

sexta-feira, janeiro 04, 2013

Coices e relinchos

Nelson Motta, O GLOBO

A maneira mais estúpida, autoritária e desonesta de responder a alguma crítica é tentar desqualificar quem critica, porque revela a incapacidade de rebatê-la com argumentos e fatos, ideias e inteligência. A prática dos coices e relinchos verbais serve para esconder sentimentos de inferioridade e mascarar erros e intenções, mas é uma das mais populares e nefastas na atual discussão politica no Brasil.

A outra é responder acusando o adversário de já ter feito o mesmo, ou pior, e ter ficado impune. São formas primitivas e grosseiras de expressão na luta pelo poder, nivelando pela baixaria, e vai perder tempo quem tentar impor alguma racionalidade e educação ao debate digital.

Nem nos mais passionais bate-bocas sobre futebol alguém apela para a desqualificação pessoal, por inutilidade. Ser conservador ou liberal, gay ou hetero, honesto ou ladrão, preto ou branco, petista ou tucano, não vai fazer o gol não ser em impedimento, ser ou não ser pênalti. Numa metáfora de sabor lulístico, a politica é que está virando um Fla x Flu movido pelos instintos mais primitivos.

Na semana passada, Ferreira Gullar, considerado quase unanimemente o maior poeta vivo do Brasil, publicou na “Folha de S.Paulo” uma crônica criticando o mito Lula com dureza e argumentos, mas sem ofensas nem mentiras. Reproduzida em um “site progressista”, com o habitual patrocínio estatal, a crônica foi escoiceada pela militância digital.

Ler os cento e poucos comentários, a maioria das mesmas pessoas, escondidas sob nomes diferentes, exigiria uma máscara contra gases e adicional de insalubridade, mas uma pequena parte basta para revelar o todo. Acusavam Gullar, ex-comunista, de ter se vendido, porque alguém só pode mudar de ideia se levar dinheiro, relinchavam sobre a sua idade, sua saúde, sua virilidade, sua aparência, sua inteligencia, e até a sua poesia. E ninguém respondia a um só de seus argumentos.

Mas quem os lê? Só eles mesmos e seus companheiros de seita. E eu, em missão de pesquisa antropológica. Coitados, esses pobres diabos vão morrer sem ter lido um só verso de Gullar, sem saber o que perderam.

domingo, novembro 25, 2012

Crime e castigo

Ferreira Gullar, Folha de SP

VAMOS PENSAR juntos: você acha que seria viável uma comunidade humana sem leis, sem normas? Claro que não, porque onde não há normas a serem obedecidas, impera a lei do mais forte, o arbítrio.

Todos sabemos que a natureza não é justa, já que faz pessoas saudáveis e pessoas deficientes, pessoas belas e pessoas feias, talentosas, mas sem talento outras. Isso é o óbvio, mas nem todo mundo tem a inteligência de um Albert Einstein ou o talento musical de um Villa-Lobos. A justiça é, portanto, uma invenção humana, porque necessitamos dela.

De certo modo, a aplicação da Justiça decorre da necessidade de normas que regulem a sociedade -e que são resultado de uma espécie de acordo tácito, que torna todos, sem exceção, sujeitos a ela. Quem as viola deverá ser punido.

É chato ter que punir, mas, se não houver punição, as normas sociais correm o risco de não serem obedecidas, o que levará a sociedade à desordem total. Ao mesmo tempo, não é justo que todos sejam obrigados a obedecer às normas e que aqueles que não as obedeçam não paguem por isso.

Daí a instituição da Justiça na sociedade, que foi criada para que o cidadão que desrespeite as normas seja punido e passe a obedecê-las. A punição, portanto, não é represália, vingança da sociedade contra o transgressor: é o recurso de que ela dispõe para fazer justiça e manter o respeito às leis sem as quais o convívio social se torna inviável.

Faço essas óbvias considerações porque, como já observei aqui noutra ocasião, a impressão que se tem, muitas vezes, é de que punir é algo que só se deve fazer em último caso e do modo mais leve possível.

Participo, em parte, dessa opinião, desde que não implique em anular totalmente o objetivo da punição, que é manter a obediência dos cidadãos às normas que regem o convívio social. Se o princípio de justiça é de que todos são iguais perante a lei, a não punição de quem a viole é a negação desse princípio.

Isso é tanto mais grave quando se trata de pessoas ricas e poderosas que, em nosso país, dificilmente são punidas. Todos são iguais, mas há aqueles que são mais iguais.

Punir é, portanto, afirmar a vigência da lei e a equidade entre os cidadãos, sem o que as normas sociais perdem significação.

Isso fica ainda mais evidente se nos lembramos de como a punição funciona no futebol. Ali, como na vida social, todos estão sujeitos às mesmas normas, graças às quais o jogo se torna possível. E ali, como na vida, quem viola as normas deve ser punido, e com penas que variam de acordo com a gravidade da falta cometida. Se um jogador de um dos times chuta o adversário dentro da pequena área, a punição é o pênalti. Se o juiz não pune o infrator, o jogo perde a graça, e os torcedores se revoltam.

Na sociedade, também. Por isso, de vez em quando, vemos pessoas na rua se manifestando contra a falta de punição a indivíduos que, muitas vezes, não respeitam nem mesmo a vida humana.

A punição não é pura e simplesmente castigo pelo mal ou erro cometido. Nela está implícito o intuito de educar o infrator, de levá-lo a compreender que mais vale obedecer às normas sociais do que violá-las. Isso não significa, no entanto, que todo infrator, ao ser punido, passe a obedecer às normas sociais.

Sabemos que tal coisa nem sempre acontece, pois muitos deles jamais abandonam a prática do crime. Se isso não justifica tratar a todos como irrecuperáveis, tampouco implica em ver a punição como um abuso da sociedade contra o indivíduo. É igualmente inadmissível manter os presos em condições carcerárias sub-humanas.

Se faço tais considerações, é porque tenho a impressão de que nossos legisladores e os responsáveis pela efetivação da Justiça parecem ter esquecido o verdadeiro propósito da punição.

Sentem-se culpados em punir e, por essa razão, criam leis ou as aplicam de modo a, por assim dizer, anular a punição. Frequentemente, um prisioneiro deixa a prisão para visitar a família, some e volta ao crime. E você acha mesmo que um jovem de 16 anos não sabe que roubar e matar é errado? Mas nossas leis acham que não.

Tal procedimento não ajuda a ninguém. Quando um juiz de futebol pune o jogador que comete falta, não está praticando uma maldade, está seguindo a norma que permite que o jogo continue.

domingo, outubro 28, 2012

Avenida Brasil

Ferreira Gullar, Folha de SP

Faz muitos anos que uma novela de televisão não desperta tanto interesse do público noveleiro quanto esta "Avenida Brasil", cujo derradeiro capítulo foi ao ar na noite de sexta-feira, 19 deste mês.

De fato, a novela conquistou não apenas os aficionados do gênero, como muito mais gente, até mesmo quem nunca assiste a novelas. A coisa chegou a tal ponto que, segundo foi noticiado, a presidente Dilma determinou o adiamento do comício pela eleição de Haddad, em São Paulo, que deveria realizar-se na noite daquela sexta-feira, temendo que não fosse quase ninguém.

Outro indício, jamais registrado antes, desse interesse pela novela de João Emanuel Carneiro foi o pique de consumo de energia elétrica, logo após a exibição dos capítulos finais. É que o pessoal deixava de fazer qualquer coisa -desde cozinhar até tomar banho ou ligar o computador- para só fazê-lo após o fim do capítulo. A novela interrompia o curso da vida. Isso foi o que ouvi de um repórter de televisão.

Qual a razão de tanto sucesso, admito não saber ao certo. Imagino muitas explicações mas, se arrisco uma delas, diria que é o tipo de dramaturgia adotado pelo autor. Uma das características do gênero é a morosidade da ação dramática, que resulta numa série de outras consequências.

A razão disso é que a novela tem que durar meses, o que obriga a um número fantástico de capítulos -esta, de que falamos aqui, teve nada menos que 179, transmitidos durante sete meses.

Defendo a tese de que toda dramaturgia não dura mais que uma hora e meia a duas horas. Essa é a duração de quase todos os filmes e peças teatrais. Não existe dramaturgia para durar sete meses.

Em função disso, os nossos telenovelistas são obrigados a criar histórias paralelas, que se mesclam à história principal, tudo com o propósito de fazer com que a novela dure tanto. Isso, como já disse, faz com que a ação dramática se torne prolixa e lenta.

Essa lentidão não houve na "Avenida Brasil". Pelo contrário, nela, a ação dramática era sempre intensa, e isso se deveu ao fato de que, a cada capítulo, inesperados conflitos surgiam envolvendo os diferentes núcleos e os muitos personagens.

O preço pago pelo autor, por lançar mão de tais recursos, foi a implausibilidade de certas situações e a incoerência de atitude dos personagens, mas que João Emanuel, com sua competência, conseguiu muitas vezes superar, ganhando pelo menos a tolerância do telespectador.

É certo que, apesar dessa originalidade, em comparação com a forma dramatúrgica comumente adotada nas telenovelas, João Emanuel também se valeu de um recurso usado por todos os teledramaturgos desde o sucesso obtido pela vilã Odete Roitman (1988). Não por acaso, a execrável Carminha se tornou a principal agente da ação dramática de "Avenida Brasil".

Neste ponto, esta novela só difere das demais pelo grau de vilania e crueldade que atribuiu à personagem. Aliás, nisto, ela é quase imbatível, já que quase todos os personagens são de uma sordidez sem limites. Com a agravante de que os que escapam disso -que não matam, não traem, não subornam nem se deixam subornar- são idiotas ou tolos, como Tufão, marido de Carminha, o corno manso por excelência.

Para minha surpresa, ouvi num debate de televisão que o êxito de "Avenida Brasil" se deve ao fato de ser ela o retrato verdadeiro da nossa sociedade. Se isso é correto, moro em outro país sem o saber, já que as pessoas com quem convivo e as famílias que conheci ao longo de minha vida -e bota vida nisso- nem de longe se parecem com os personagens criados por nosso brilhante teledramaturgo.

Certamente li nos jornais e ouvi contarem histórias escabrosas, implicando traições, homicídios e falcatruas, mas nunca na escala em que nos mostrou a novela, onde todo mundo é bandido ou babaca. Pretenderia o autor nos convencer de que quem não se torna bandido é babaca? Seria uma péssima lição.

Mas não se trata disso. Novela é ficção, não é a realidade, nem poderia ser. Como se sabe, a arte existe porque a vida não basta. E os bons sentimentos não dão boa dramaturgia. Haja vista o último capítulo da novela.

domingo, outubro 21, 2012

Piada de salão

Ferreira Gullar, Folha de SP


Quando o escândalo do mensalão abalou a vida política do país e, particularmente, o governo Lula e seu partido, alguns dos petistas mais ingênuos choraram em plena Câmara dos Deputados, desapontados com o que era, para eles, uma traição. Lula, assustado, declarou que havia sido traído, mas logo acertou, com seus comparsas, um modo de safar-se do desastre.
Escolheram o pobre do Delúbio Soares para assumir sozinho a culpa da falcatrua. Para convencê-lo, creio eu, asseguraram-lhe que nada lhe aconteceria, porque o Supremo estava nas mãos deles. Delúbio acreditou nisso a tal ponto que chegou a dizer, na ocasião, que o mensalão em breve se tornaria piada de salão.
Certo disso, assumiu a responsabilidade por toda a tramoia, que envolveu muitos milhões de reais na compra de deputados dos partidos que constituíam a base parlamentar do governo.
Embora fosse ele apenas um tesoureiro, afirmou que sozinho articulara os empréstimos fajutos, numa operação que envolvia do Banco do Brasil (Visanet), o Banco Rural e o Banco de Minas Gerais, e sem nada dizer a ninguém: não disse a Lula, com que privava nos churrascos dominicais, não disse a Genoino, presidente do PT, nem a José Dirceu, o ministro político do governo.
Era ele, como se vê, um tesoureiro e tanto, como jamais houve igual. Claro, tudo mentira, mas estava convencido da impunidade. A esta altura, condenado pelo STF, deve maldizer a esperteza de seus comparsas. Mas os comparsas, por sua vez, devem amaldiçoar o único que, pelo menos até agora, escapou ileso do desastre --o Lula.
Pois bem, como o tiro saiu pela culatra e o partido da ética na política consagrou-se como um exemplo de corrupção, Lula e sua turma já começaram a inventar uma versão que, se não os limpará de todo, pelo menos vai lhes permitir continuar mentindo com arrogância. O truque é velho, mas é o único que resta em situações semelhantes: posar de vítima.
E se o cara se faz de vítima, tem o direito de se indignar, já que foi injustiçado. Por isso mesmo, vimos José Genoino vir a público denunciar a punição que sofreu, muito embora tenha sido condenado por nove dos dez ministros do STF, quase por unanimidade.
A única hipótese seria, neste caso, que se trata de um complô dos ministros contra os petistas. Mas mesmo essa não se sustenta, uma vez que dos dez membros do Supremo, oito foram nomeados por Lula e Dilma.
Reação como a de Genoino era de se esperar, mesmo porque, alguns dias antes, a direção do PT publicara aquele lamentável manifesto em que afirmava ser o processo do mensalão um golpe semelhante aos que derrubaram Getúlio Vargas e João Goulart. Também a nota posterior à condenação de José Dirceu repete a mesma versão, segundo a qual os mensaleiros estão sendo condenados porque lutam por um Brasil mais justo. O STF, como se sabe, é contra isso.
Não por acaso, Lula --que reside num apartamento duplex de cobertura e veste ternos Armani-- voltou a usar o mesmo vocabulário dos velhos tempos: "A burguesia não pode voltar ao poder". Sim, não pode, porque agora quem nos governa é a classe operária, aquela que já chegou ao paraíso.
Não tenho nenhum prazer em assistir a esse espetáculo degradante, quando políticos de prestígio popular, que durante algum tempo encarnaram a defesa da democracia e da justiça social em nosso país, são condenados por graves atentados à ética e aos interesses da nação. As condenações ocorreram porque não havia como o STF furtar-se às evidências: dinheiro público foi entregue ao PT, mediante empréstimos fictícios, que tornaram possível a compra de deputados para votarem com o governo. Tudo conforme a ética petista, antiburguesa.
Mas não tenhamos ilusões. Apesar de todo esse escândalo, apesar das condenações pela mais alta corte de Justiça, o PT cresceu nas últimas eleições. Tem agora mais prefeituras do que antes e talvez ganhe a de São Paulo. Nisso certamente influiu sua capacidade de mascarar a verdade, mas não só. Com a mesma falta de escrúpulos, tendo o poder nas mãos, manipula igualmente as carências dos mais necessitados e dos ressentidos.
Não vai ser fácil acharmos o rumo certo.

domingo, outubro 07, 2012

Aquém da razão

Ferreira Gullar, Folha de SP


Longe de mim o propósito de desconsiderar a crença religiosa das pessoas, muito embora não seja eu religioso. E não a desconsidero porque sei a importância que tem para elas. Se quisermos constatá-la, bastará observar que os últimos séculos, marcados pelo domínio da ciência e do pensamento objetivo, não lograram pôr fim à religiosidade dos povos que, em sua maioria, mantêm-se fiéis às suas convicções religiosas.
Haverá para isso várias explicações, mesmo porque são muitas as religiões que existem, algumas delas milenares, e cada uma com características específicas e modo próprio de explicar a existência e entender os valores espirituais. Creio, porém, que todas elas respondem a uma necessidade humana fundamental: dar sentido à existência.
E aí reside a explicação de sua sobrevivência, muito embora a cultura tenha mudado tanto e tenha o homem descoberto as leis que regem tanto a matéria inorgânica quanto as dos organismos vivos, tanto as leis do mundo infra-atômico quanto do macrocosmo.
Há, porém, algumas perguntas para as quais a ciência não tem resposta, como, por exemplo, por que existe algo em vez de nada? Teve o mundo começo ou ele sempre existiu? Que sentido tem a vida humana, se todos nós acabamos para sempre? No entanto, para quem acredita em Deus, todas essas perguntas estão respondidas. Ou sequer são formuladas.
No entanto, uma coisa é a consideração conceitual dessas questões e outra é como elas se colocam na realidade. Agora mesmo assistimos, no mundo islâmico, a sucessivas manifestações de fúria, como reação a um vídeo idiota, que ridiculariza o profeta Maomé.
É compreensível que as pessoas que professam o islamismo tenham se sentido agredidas e desrespeitadas no que mais prezam e cultuam. Não obstante, a tradução dessa indignação em atos de vandalismo --incêndio de embaixada, consulados, morte de pessoas-- parece exceder todos os limites razoáveis.
A verdade, porém, é que aconteceram e não se limitaram a um ou dois episódios incontroláveis. De fato, essa indignação furiosa se estendeu por várias semanas e por vários países. Mas por que o objetivo da fúria são embaixadas norte-americanas, se o vídeo não foi obra do governo dos Estados Unidos?
Parece impossível ter uma resposta única para essa pergunta. Uma coisa, porém, parece óbvia: o ressentimento de certas camadas islâmicas contra os norte-americanos. Isso é um fato, uma vez que o apoio dos Estados Unidos a Israel é visto como uma demonstração de hostilidade, não apenas ao povo palestino, como a toda a nação árabe muçulmana. Esse ódio aos ianques os levaria a admitir que o vídeo terá sido fruto de uma iniciativa governamental para desmoralizar o islamismo. Ninguém, com um mínimo de lucidez, acreditaria nisso. Tampouco justificaria a fúria e o número daqueles protestos.
A nosso ver, o que pode explicá-los é o fundamentalismo religioso que transforma uma indignação razoável numa fúria sagrada implacável, sem qualquer respeito pelo outro, desde que seja visto como antagonista a minha crença. Destruir e matar, se feito em nome de Deus, estaria certo.
Isso me faz lembrar uma afirmação de Bin Laden, pouco depois da destruição das Torres Gêmeas. O jornalista que o entrevistava, perguntou-lhe se não estava errado um atentado como aquele que matou milhares de inocentes, quando o Corão considera o assassinato de inocentes um grave pecado. A sua resposta foi: "Os inocentes que morreram eram os inocentes deles". Ou seja, segundo essa visão fundamentalista, basta não acreditar em Alá para ser culpado. Só que ali morreram, inclusive, muçulmanos.
Certamente, essa não é a opinião da maioria das pessoas que professam a religião islâmica e que, respeitando a opção religiosa, admitem a diversidade de crenças. Não são elas que vão para as ruas incendiar embaixadas e matar infiéis. Mas a religião, nesse particular, por lidar mais com a crença do que com a razão, pode ser campo propício à indignação sem limites.
Aqui no meu canto, sem nada que me proteja da bala perdida, não tenho dúvida de que avaliar os fatos com isenção e lucidez nos torna modestamente mais humanos.

terça-feira, outubro 02, 2012

Caminhando com Ferreira Gullar

João Pereira Coutinho, Folha de SP


Viajo para Londres. Na mala, algumas revistas para ler nas duas horas de voo. Tiro a primeira. Folheio as páginas iniciais. Encontro Ferreira Gullar em entrevista à "Veja". O dia está ganho.
Sobre o poeta, não vale a pena dizer o óbvio: depois da morte do lusitano Mário Cesariny (1923-2006), Ferreira Gullar é o único poeta de língua portuguesa que merece a honraria do Nobel.
Embora, atendendo às anedotas recentes da academia sueca (Elfriede Jelinek, Herta Müller etc.), talvez seja mais correto dizer que é o Nobel que precisa do prestígio de Gullar.
Mas a entrevista é sobretudo uma lição de política só possível em alguém que, permanecendo à esquerda no que a esquerda tem de melhor (uma insubordinação instintiva perante abusos ou privilégios injustificáveis), aprendeu e refletiu com a experiência histórica.
"Quando ser de esquerda dava cadeia, ninguém era. Agora que dá prêmio, todo mundo é", diz o poeta. Eis o "espírito do tempo", feito de oportunismo e farsa ideológica.
Ferreira Gullar não alinha em farsas. O capitalismo tem páginas abomináveis de miséria e exploração, sobretudo nas incipientes sociedades industriais do século 19? Sem dúvida -e ler Charles Dickens é, nesse quesito, mais relevante do que ler Marx, que nunca pôs os pés numa fábrica e tinha Engels para sustentá-lo.
Mas o capitalismo, apesar de tudo, "é forte porque é instintivo", diz o poeta. Em apenas uma frase, Gullar resume o que Adam Smith escreveu em dois volumes, 250 anos atrás.
Existe nos seres humanos um desejo natural para "melhorarem a sua condição", escrevia o filósofo escocês. E essa melhoria material só se consegue quando o açougueiro, o cervejeiro e o padeiro perseguem o seu próprio interesse, negociando os seus produtos e procurando aumentar os seus lucros.
Fato: sem freios éticos ou legais, o capitalismo é destrutivo e autodestrutivo. Mas quando existem esses freios, e nenhum liberal clássico prescinde deles (Adam Smith, antes de escrever "A Riqueza das Nações", escreveu primeiro a sua "Teoria dos Sentimentos Morais", base ética de qualquer sociedade civilizada), não há outra forma, historicamente comprovada, de gerar riqueza.
Claro que, para um marxista puro e duro, o capitalista nunca gera riqueza; ele explora quem trabalha e vive do suor alheio, de preferência fumando o seu charuto e brandindo o chicote. Raymond Aron, o mais incisivo crítico do marxismo que conheço, tem páginas notáveis onde desmonta essa dicotomia caricatural entre "capital" e "trabalho".
Ferreira Gullar prefere uma metáfora: "O empresário é um intelectual que, em vez de escrever poesias, monta empresas". E acrescenta, para os lentos de raciocínio: "A visão de que só um lado produz riqueza e o outro só explora é radical, sectária, primária".
Finalmente, as lições da história: Ferreira Gullar não se limita a relembrar os crimes do "socialismo real", hoje uma evidência para qualquer pessoa com dois neurônios em funcionamento.
Ele deixa uma pergunta devastadora: quantos dos defensores de Cuba estariam dispostos a viver lá? Sim, a viver enjaulados em uma ilha de onde é difícil sair, onde publicar um livro implica uma permissão governamental -e onde a igualdade na miséria é a única igualdade que existe e resiste?
É um bom princípio de responsabilidade política: só defendermos regimes sob os quais estamos dispostos a viver. Todo resto é pose pornográfica.
Infelizmente, não sobra espaço para as meditações estéticas propriamente ditas. Mas Ferreira Gullar, relembrando a morte de um filho, deixa esta definição (meta) poética primorosa: "Os mortos veem o mundo pelos olhos dos vivos".
Nem mais: escrever é continuar essa revelação interminável do ainda não-dito, do ainda não-experimentado, como se o poeta fosse o elo presente de uma corrente interminável.
Ou, como o próprio Gullar escreveu nos seus velhinhos "Poemas Portugueses", que praticamente aprendi de cor: "Caminhos não há/ Mas os pés na grama/ os inventarão/ Aqui se inicia/ uma viagem clara/ para a encantação".
Caminhar com Ferreira Gullar tem sido, hoje e sempre, uma lição e um privilégio.

domingo, setembro 23, 2012

A arte de nosso tempo

Ferreira Gullar, Folha de SP


Uma leitura possível da história das artes visuais --de que resultaram as manifestações contemporâneas-- identificará a invenção da fotografia como um fator decisivo desse processo.
A crítica, de modo geral, há muito associa ao surgimento da fotografia a mudança da linguagem pictórica, de que resultou o movimento impressionista.
É uma observação pertinente, desde que se tenha o cuidado de não simplificar as coisas, ou seja, não desconhecer a existência de outros fatores que também influíram nessa mudança. Um desses fatores foi a descoberta da cor como resultante da vibração da luz sobre a superfície das coisas.
Noutras palavras, o surgimento do impressionismo --que constituiu uma ruptura radical com a concepção pictórica da época-- estava latente na pintura de alguns artistas de então, como, por exemplo, Eugène Delacroix e Édouard Manet, que já anunciavam a superação de certos valores estéticos em vigor. Não resta dúvida, no entanto, que a invenção da fotografia, por tornar possível a fixação da imagem real com total fidelidade, impunha o abandono do propósito de conceber a pintura como imitação da realidade.
Se tal fato não determinou, por si só, a revolução impressionista, sem dúvida alguma libertou a pintura da tendência a copiar as formas do mundo real e, assim, deixou o pintor livre para inventar o que pintava.
Pretendo dizer com isso que, se a cópia da realidade, pela pintura, se tornara sem propósito, isso não implicaria automaticamente em pintar como o fez Monet, ao realizar a tela "Impression, Soleil Levant", que deu origem ao impressionismo. Poderia ter seguido outro rumo.
Mas, se o que nasceu naquelas circunstâncias foi a pintura impressionista, houve razões para que isso ocorresse. E essas razões, tanto estavam implícitas na potencialidade da linguagem pictórica daquele momento, como no talento de Monet, na sua personalidade criadora. É que assim são as coisas, na vida como na arte: fruto das probabilidades que se tornam ou não necessárias.
A verdade, porém, é que, se não houvesse surgido uma maneira de captar as imagens do real de modo fiel e mecânico, o futuro da pintura (e das artes visuais em geral) teria sido outro. A pintura, então, livre da imitação da natureza, ganha autonomia: o pintor então podia usar de seus recursos expressivos para inventar o quadro conforme o desejasse e pudesse.
Como consequência disso, não muito depois, nasceram as vanguardas artísticas do século 20: o cubismo, o futurismo, o expressionismo, o dadaísmo, o surrealismo --todos eles descomprometidos com a imitação da realidade.
Mas essa desvinculação com o mundo objetivo terá consequências: a liberdade sem limites levará, de uma maneira ou de outra, à desintegração da linguagem artística, particularmente a da pintura.
Os dadaístas chegam a realizar quadros mais determinados pelo acaso do que por alguma qualquer intenção deliberada do autor. E se a arte podia ser fruto de tamanha gratuidade, não teria mais sentido pintar nem esculpir. O urinol de Marcel Duchamp é resultado disso. Por essa razão, ele afirmou: "Será arte tudo o que eu disser que é arte". Ou seja, tudo é arte. Ou seja, nada é arte.
Por outro lado, a fotografia, que nasceu como retrato do real, foi se afastando dessa condição e, como a pintura, passou também a inventá-lo. Por outro lado, ela ganhou movimento e se transformou em cinema, que tem como principal conquista a criação de uma linguagem própria, totalmente distinta da de todas as outras artes.
Cabe aqui uma observação: a pintura não apenas fazia o retrato das pessoas, como também mostrava cenas da vida, como as ceias, os encontros na alcova, as batalhas, os idílios etc. Quanto a isso, mais que a fotografia, o cinema criou, com sua linguagem narrativa, um mundo ficcional, que nenhuma outra arte --e tampouco a pintura-- é capaz de nos oferecer.
A meu ver, o cinema, superando o artesanato, é a grande arte tecnológica, que criou uma linguagem própria --condição essencial para que algo seja considerado arte--, geradora de um universo imaginário inconfundível, de possibilidades inesgotáveis, sofisticado e ao mesmo tempo popular. O cinema é, sem dúvida, a arte de nosso tempo.

quinta-feira, agosto 30, 2012

Ferreira Gullar bate na trave


Rodrigo Constantino

No domingo passado, o poeta Ferreira Gullar usou sua coluna da Folha para enaltecer o modelo capitalista de propriedade privada com foco no lucro. Notório defensor do regime comunista, Gullar tem demonstrado, de uns tempos para cá, uma mudança de quase 180o em seu pensamento. Antes tarde do que nunca.

Seus argumentos utilizados no artigo são bastante parecidos com aqueles expostos pelos liberais há décadas. O mecanismo de incentivos é totalmente inadequado quando se trata de empresas estatais, pois falta o olhar atento do dono, o escrutínio dos sócios preocupados com a recompensa dos acertos e a punição dos erros.

Além disso, não é preciso contar com a bondade ou a boa intenção dos empresários para o funcionamento eficiente do modelo capitalista. Felizmente, pois seria uma premissa um tanto ingênua, quase tão ingênua quanto assumir que políticos e burocratas são santos preocupados apenas com o bem-geral.

Em busca de seus próprios interesses, esses empresários, em um ambiente de livre concorrência, são guiados como que por uma “mão invisível” a fazer coisas que beneficiam a maioria. Este foi o grande insight de Adam Smith. Foi da ganância de Steve Jobs, por exemplo, que os usuários obtiveram os excelentes aparelhos da Apple, e não de um suposto altruísmo.

Já nas estatais a ganância costuma ser direcionada para interesses políticos, eleitoreiros, ou sindicalistas. Busca-se estabilidade de emprego, não meritocracia. A maioria se torna verdadeiro cabide de empregos. A promoção costuma ocorrer por critérios ideológicos, não pela maior eficiência. Isso sem falar do mar de corrupção que resulta justamente da falta da presença do dono.

O polemista Paulo Francis, que também foi de esquerda por muitos anos, reconheceu este fato: “Se os recursos que o estado brasileiro canalizou para o estatismo tivessem sido postos ao dispor da iniciativa privada, o Brasil hoje seria uma potencia de peso médio e talvez mais”. Ele foi além: “E, quanto mais gananciosos os capitalistas, melhor. Ganância é sinônimo de ambição”.  

Portanto, é alvissareira a mudança radical no discurso de um antigo ícone do comunismo no Brasil. Mas por que ele bateu na trave então? Por que não foi um golaço? Por causa de uma última frase deslocada no artigo, que demonstra a presença do ranço esquerdista do passado. Eis como Gullar termina seu texto: “Uma coisa, porém, é verdade: cabe ao estado trazer a empresa privada em rédea curta”.

Como assim? Se o poeta já compreendeu que o estado não é formado por santos abnegados ou oniscientes, como delegar tanto poder aos políticos e burocratas e esperar bons resultados? Uma escorregada e tanto do poeta. Se o estado detiver esse poder todo, de controlar as empresas indiretamente, a privatização não ocorrerá de fato. As empresas serão reféns dos interesses políticos, o que, na prática, significa quase o mesmo que ter a velha estatal.

Quando o governo petista aumentou sua ingerência na Vale, este risco ficou evidente. Os milhões de acionistas minoritários acusaram o golpe, e suas ações despencaram. Não é o estado que deve trazer a empresa privada em rédea curta; é a sociedade que deve trazer o estado em rédea curta. O preço da liberdade é a eterna vigilância. E o caminho mais rápido da servidão é concentrar poder demais, e arbitrário, nas mãos do estado.

O poeta levou quase meio século para descobrir os horrores do comunismo e defender as vantagens do capitalismo. Espera-se que ele leve menos tempo para perceber que o capitalismo, para funcionar direito, precisa de mais liberdade e menos intervencionismo estatal.

domingo, agosto 26, 2012

Conversa fiada


Ferreira Gullar, Folha de SP

Sabe a razão pela qual a empresa estatal dificilmente alcança alto rendimento? Porque o dono dela --que é o povo-- está ausente, não manda nela, não decide nada. Claro que não pode dar certo.
Já a empresa privada, não. Quem manda nela é o dono, quem decide o que deve ser feito --quais salários pagar, que preço dar pela matéria-prima, por quanto vender o que produz--, tudo é decidido pelo dono.
E mais que isso: é a grana dele que está investida ali. Se a empresa der lucro, ele ganha, fica mais rico e a amplia; se der prejuízo, ele perde, pode até ir à falência.
Por tudo isso e por muitas outras razões mais, a empresa privada tem muito maior chance de dar certo do que uma empresa dirigida por alguém que nada (ou quase nada) ganhará se ela der lucro, e nada (ou quase nada) perderá se ela der prejuízo.
Sem dúvida, pode haver, e já houve, casos em que o dirigente de uma empresa estatal se revelou competente e dedicado, logrando com isso dirigi-la com êxito. Mas é exceção. Na maioria dos casos, indicam-se para dirigir essas empresas pessoas que atendem antes a interesses políticos que empresariais.
Isso sem falar nos casos --atualmente muito frequentes-- de gerentes que estão ali para atender a demandas partidárias.
Tais coisas dificilmente ocorrem nas empresas privadas, onde cada um que ali está sabe que sua permanência depende fundamentalmente da qualidade de seu desempenho. Ao contrário da empresa estatal que, por razões óbvias, tende a se tornar cabide de empregos, a empresa privada busca o menor gasto em tudo, seja em pessoal, seja em equipamentos ou publicidade.
E não é por que na empresa privada reine a ética e a probidade. Nada disso, é só porque o capitalista quer sempre despender menos e lucrar mais. Não é por ética, é por ganância.
A empresa pública, por não ser de ninguém --já que o dono está ausente-- é "nossa", isto é, de quem a dirige, e muitas vezes ali se forma uma casta que passa a sugá-la em tudo o que pode.
A Petrobras pagava a funcionários seus, se não me engano, 17 salários por ano e o Banco do Brasil, 15. Os funcionários da Petrobras gozavam também de um fundo de pensão (afora a aposentadoria do INSS), instituído da seguinte maneira: cada funcionário contribuía com uma parte e a empresa, com quatro partes.
Conheci um desses funcionários que, depois que se aposentou, passou a ganhar mais do que quando estava na ativa. Numa empresa privada, isso jamais acontece, não é? No governo Fernando Henrique aquelas mamatas acabaram, mas outras continuam.
Não obstante, o PT sempre foi contra a privatização de empresas estatais, "et pour cause". Lembram-se da privatização da telefonia? Os petistas foram para a rua denunciar o crime que o governo praticava contra o patrimônio público.
Naquela época, telefone era um bem tão precioso que se declarava no Imposto de Renda. Hoje, graças àquele "crime", todo mundo tem telefone, e a preço de banana.
Mas o preconceito ideológico se mantém. Os governos petistas nada fizeram para resolver os graves problemas estruturais que comprometem a competitividade do produto brasileiro e impedem o crescimento econômico, já que teriam de recorrer à privatização de rodovias e ferrovias.
Dilma fez o que pôde para adiá-la, lançando mão de medidas paliativas que estimulassem o consumo, mas chegou a um ponto em que não dava mais.
O PIB vem caindo a cada mês, o que a levou à hilária afirmação de que, mais importante, era o amparo a crianças e jovens... Disse isso mas, ao mesmo tempo, mandou que seu pessoal preparasse às pressas --já que as eleições estão chegando-- um plano para a recuperação da infraestrutura: investimentos que somarão R$ 133 bilhões em 25 anos. Ótimo.
Como privatização é "crime", pôs o nome de "concessão" e impôs uma série de exigências que limitam o lucro dos que investirem nos projetos e, devido a isso, podem comprometê-los.
Nessa mesma linha de atitude, afirmou que não está, como outros, alienando o patrimônio público. Conversa fiada. A Vale do Rio Doce, depois de privatizada, tornou-se a maior empresa de minério do mundo e das que mais contribuem para o PIB nacional. Uma coisa, porém, é verdade: cabe ao Estado trazer a empresa privada em rédea curta.

domingo, agosto 12, 2012

Só o chefe não sabia

Ferreira Gullar, Folha de SP

Falando francamente, qual é a imagem que se tem de Lula? Melhor dizendo, se alguém lhe pedisse uma definição do nosso ex-presidente da República, qual daria? Diria que se trata de uma pessoa desligada, pouco objetiva, que mal repara no que se passa à sua volta? Estou certo de que não diria isso, nem você nem muito menos quem privou ou priva com ele.

Ao contrário de alguém desligado, que entrega aos outros a função de informar-se e decidir por ele, Lula sempre se caracterizou por querer estar a par de tudo o que acontece à sua volta e, muito mais ainda, quando se trata de questões ligadas a seu partido e à realidade política em geral.

As pessoas que o conheceram no começo de sua vida política, como os que lidaram com ele depois, são unânimes em defini-lo como uma pessoa sagaz, atenta e sempre interessada em tudo saber do que se passava na área política e, particularmente, o que dizia respeito às disputas, providências e articulações que ocorriam dentro do seu partido e no plano político de um modo geral.

Isso já antes de sua chegada ao poder. Imagine você como passou a agir depois que se tornou presidente da República. Se hoje mesmo, quando já não ocupa nenhum cargo no governo nem no partido, faz questão de saber de tudo e opinar sobre tudo, acreditaria você que, no governo, deixava o barco correr solto, sem tomar conhecimento do que ocorria? Isto é, sabia de tudo menos do mensalão?

Veja bem, hoje mesmo, alguma coisa se faz na Câmara dos Deputados ou no Senado sem o conhecimento da Dilma? Os repórteres, os comentaristas políticos estão diariamente a nos informar do controle que o Planalto exerce sobre o Parlamento.

A cada problema que surge, a cada decisão importante, Dilma convoca os líderes da base parlamentar para dizer a eles como devem agir, como devem votar, que decisões tomar. Isso Dilma, hoje. Imagine o Lula, quando presidente, mega como sempre foi, mandão por natureza. Sem dúvida que estava a par de tudo e em tudo interferia, por meio de seus paus-mandados. Dá para acreditar, então, que ele só não sabia do mensalão, nem sequer ouvira falar? Claro que você não acredita nisso, nem eu.

É evidente que Lula não podia ignorar o mensalão porque não se tratava de uma questão secundária de seu governo. Longe disso, o mensalão foi o procedimento encontrado para, com dinheiro público, às vezes, e com o uso da máquina pública, noutras vezes, comprar o apoio de partidos e os votos de seus representantes no Congresso.

Não se tratava, portanto, de uma iniciativa secundária, tomada por figuras subalternas, sem o conhecimento do chefe do governo. Nada disso. Tratava-se, pelo contrário, de um procedimento de importância decisiva para a aprovação, pelo Congresso, de medidas vitais ao funcionamento do governo. Portanto, Lula não apenas sabia do mensalão como contava com o apoio dos mensaleiros para governar.

Certamente, o leitor perguntará: por que Lula, esperto como é, arriscou-se tanto? Pela simples razão de que não desejava dividir o poder com nenhum partido forte, capaz de lhe impor condições. Como é próprio de seu caráter e de seu partido, só admitia aliança com quem não lhe ameaçasse a hegemonia.

Não estou inventando nada. Todo mundo leu nos jornais, logo após a vitória nas eleições presidenciais, que José Dirceu articulava a aliança do novo governo com o PMDB.

Só que Lula não aceitou e, em seu lugar, buscou o apoio dos pequenos partidos, aos quais não teria que entregar ministérios e altos cargos nas estatais. Em vez disso, os compraria com dinheiro. E foi o que fez, até que, inconformado, Roberto Jefferson pôs a boca no mundo.

Lula, apavorado, advertiu os seus comparsas para que assumissem a culpa, pois, se ele, Lula, caísse, todos estariam perdidos. E assim foi para a televisão, disse que havia sido traído e se safou.

Bem mais tarde, com a cara de pau que o caracteriza, afirmou que nunca houve mensalão mas, ainda assim, tentou chantagear um ministro do Supremo. Afinal, por tudo isso, recebeu o título de doutor honoris causa! Merecidíssimo, claro!

domingo, julho 15, 2012

Democratas de ocasião


Ferreira Gullar, Folha de SP

Deixei a poeira assentar para dar meu palpite sobre a polêmica surgida com o impeachment do presidente Fernando Lugo, do Paraguai. Ao saber da notícia, logo previ a reação que teriam os presidentes de alguns países sul-americanos, inclusive o Brasil.
E não deu outra. Hugo Chávez e Cristina Kirchner, como era de se esperar, reagiram de pronto e com a irreflexão que os caracteriza. Logo em seguida, manifestou-se Rafael Correa, do Equador, que, com a arrogância de sempre, rompeu relações com o novo governo paraguaio. Chávez decidiu cortar o fornecimento de petróleo àquele país. E o Brasil? Fiquei na expectativa.
Como observou certa vez García Márquez, o Brasil é um país sensato e, acrescento eu, talvez por nossa ascendência portuguesa, pé no chão. E assim foi que Dilma primeiro mandou seu ministro das Relações Exteriores qualificar o impeachment de "rito sumário". Ou seja, não teria sido dado a Lugo tempo para se defender.
Sucede que o próprio Lugo, presente à sessão do Congresso quando se votou seu impedimento, declarou: "Aceito a decisão do Congresso e estou disposto a responder por meus atos como presidente".
Não disse que o Congresso agira fora da lei nem que tinha sido impedido de se defender. De acordo com as normas constitucionais paraguaias, recorreu à Suprema Corte e ao Tribunal Superior de Justiça, que não atenderam a seus recursos por considerarem constitucional a deposição e legítima a entrega do governo ao vice-presidente.
Só depois que os vizinhos tomaram a inusitada atitude de repelir a decisão do Congresso paraguaio foi que Lugo mudou de opinião e decidiu formar um governo paralelo, este, sim, destituído de qualquer base legal.
Fala-se em golpe, mas só um presidente já politicamente inviável é impedido com o apoio praticamente unânime do Congresso: 76 votos a 1 na Câmara de Deputados e 39 a 5 no Senado. Fora isso, nem os militares nem o povo paraguaios se opuseram. Pelo contrário, o impeachment de Lugo parece fruto de uma concordância nacional. Nessa decisão pesou, sem dúvida, o Partido Liberal, de centro-direita. Mas foi com o apoio deste que ele se elegera presidente da República.
O que houve então? Um complô de que participaram todos os partidos e quase a totalidade dos deputados e senadores? Se fosse isso, o povo paraguaio teria saído às ruas para protestar e denunciá-los. Só uns poucos o fizeram. As Forças Armadas, os intelectuais, os sindicatos protestaram? Ninguém.
O inconformismo com o impeachment de Lugo veio de fora do país: de Hugo Chávez, Cristina Kirchner, Evo Morales, Dilma Rousseff, que se apresentam como defensores da democracia. Serão mesmo?
Vejamos. Hugo Chávez suspendeu o funcionamento de 60 emissoras de rádio e televisão que se opunham a seu governo, criou uma espécie de juventude nazista para atacar seus opositores e fez o Congresso mudar a Constituição para permitir que ele se reeleja indefinidamente. Cristina Kirchner apropriou-se da única empresa que fornece papel à imprensa argentina, de modo que, agora, jornal que a criticar pode parar de circular.
Já Rafael Correa processa um jornal de oposição por dia, exigindo indenizações bilionárias. Democratas como esses há poucos. Dilma mandou seu chanceler a Assunção para pressionar o Congresso paraguaio e evitar o impedimento de Lugo, como o faziam antigamente os norte-americanos conosco.
Como se vê, há um tipo de democrata que só defende a democracia quando lhe convém. Mas, mesmo que Chávez, Cristina, Morales, Correa e Dilma fossem exemplos de líderes democráticos, teriam ainda assim o direito de se sobrepor às instituições paraguaias e à opinião pública daquele país?
Como o impeachment de Lugo consumou-se de acordo com a Constituição paraguaia e pela quase unanimidade dos parlamentares, o único argumento do nosso chanceler foi o de ter sido feito em "rito sumário". No entanto, que chance deram eles ao Paraguai para se defender das sanções que lhe foram impostas? Nenhuma. Essas sanções, além de sumárias, são também ofensivas às instituições do Estado paraguaio e a seu povo.

domingo, junho 03, 2012

É um circo ou não é?

Ferreira Gullar, Folha de SP

Ultimamente, faço um esforço enorme para não perder a esperança em nosso país, em nossa capacidade de nos comportarmos com um mínimo de respeito pelo interesse público, pelos valores éticos, enfim, por construirmos uma nação digna deste nome.

É que, a cada dia, como você, fico sabendo de coisas que me desanimam. Parece que a corrupção tomou conta do Estado brasileiro, que não há mais em quem confiar. O que desanima não são apenas as falcatruas praticadas por parlamentares, ministros, governadores, prefeitos, juízes... O pior é que esses dados refletem uma espécie de norma generalizada que dita o comportamento das pessoas e o próprio funcionamento da máquina pública.

Um pequeno exemplo: o precatório. Se ganhas na Justiça uma ação que obriga o governo a te indenizar, ele está obrigado a te pagar, não? Só que ele não paga, não cumpre a decisão judicial, e fica por isso mesmo. A Justiça sabe que sua decisão não foi obedecida e nada faz.

Pior, às vezes esse dinheiro é apropriado por altos funcionários da própria Justiça. Enquanto isso, as pessoas que deveriam ser indenizadas esperam 20, 30 anos, sem nada receber. É como um assalto em via pública. Este é um fato corriqueiro num país dominado por uma casta corrupta.

E eu, burro velho, embora sabendo disso tudo, não paro de me surpreender. Acontece de tudo, até CPI criada pelo governo. Nunca se viu isto, já que CPI é um recurso da oposição; quer dizer, era, porque a de Cachoeira foi invenção do Lula e seu partido, e conta com o apoio da presidente Dilma. Isso porque, no primeiro momento, os implicados pareciam ser apenas adversários deles, a turma do mensalão.

Eis, porém, que novas revelações envolveram gente do PT e aliados do governo, sem falar numa empresa corrupta que é responsável por grande parte das obras do PAC, o Plano de Aceleração do Crescimento do governo federal.

Mas o que fazer, agora, se a CPI já estava criada? Voltar atrás seria impossível, e nem era preciso, uma vez que, dos 30 membros da CPI, apenas sete são da oposição, quer dizer, não decidirão nada.

Mas essas revelações punham em risco um dos principais objetivos de Lula, que era usar a CPI para desqualificar o processo do mensalão, prestes a ser julgado pelo STF. Essa intenção foi favorecida por um fato que envolve o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, a quem caberá fazer a denúncia da quadrilha chefiada por José Dirceu.

O PT tentou desqualificá-lo, apresentando-o como ligado a Demóstenes Torres e, portanto, a Cachoeira. A jogada não deu certo e, além do mais, está aí a maldita imprensa, que insiste em criar problemas, por levar à opinião pública informações inconvenientes.

De qualquer modo, a CPI teria que ouvir Carlinhos Cachoeira, e só Deus sabe o que ele poderia revelar. Deus e nós também: nada, como se viu.

É que ele se valeu do direito, que a Constituição lhe concede, de permanecer calado para não produzir provas contra si mesmo. Quem quer que tenha inventado isso -sempre em defesa dos inocentes, claro- com frequência favorece aos culpados, uma vez que o inocente, por nada temer, faz questão de contar toda a verdade. Calar, portanto, é confissão de culpa.

De qualquer modo, Carlos Cachoeira, a conselho de seu advogado, não respondeu a nenhuma das perguntas que lhe foram feitas, deixando os parlamentares, que inutilmente o interrogavam, em situação constrangedora. Aquela sessão da CPI, em Brasília, só pode ser comparada a um espetáculo circense.
E quem é o advogado de Cachoeira? Nada menos que o ex-ministro da Justiça de Lula, Márcio Thomaz Bastos, que, sentado a seu lado, como um segurança jurídico, ouvia os deputados e senadores se referirem a seu constituinte como "bandido, chefe de uma quadrilha de ladrões". Estava ali por vontade própria ou por imposição do cliente? Não se sabe, mantinha-se indiferente, como se nada ouvisse.

Foi por saber Cachoeira culpado de todas aquelas falcatruas que o aconselhou a nada responder. Resta à CPI recorrer às provas documentais. Por isso mesmo, Thomaz Bastos já pediu a anulação delas. Cachoeira pode não ter razão, mas dinheiro não lhe falta. E o espetáculo continua...

domingo, abril 01, 2012

E o real cobra seu preço

Ferreira Gullar, Folha de SP

Informações recentes parecem indicar que a economia brasileira caminha inexoravelmente para uma situação crítica, de difícil solução. A se efetivar tal previsão, dela resultaria uma crise política que poria em questão a hegemonia lulista sobre o sistema de poder.

A título de especulação, vamos tentar avaliar a natureza dessa crise futura e suas consequências. Mas, para isso, será necessário examinar o processo político e econômico que ajudou a criar a situação crítica a que se referem economistas e analistas da matéria.

Ninguém põe em dúvida o fato de que os governos de Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso introduziram mudanças importantes no processo econômico brasileiro, criando condições para um crescimento saudável e sustentado.

Graças a essas medidas, o Brasil se livrou da inflação crônica que inviabilizava o crescimento da produção e consumia o valor dos salários. Aquelas foram medidas necessárias, mas não suficientes.

Lula assumiu a Presidência da República em 2003 e, muito embora tenha combatido todas aquelas medidas, resolveu adotá-las e usá-las como um modo de consolidar seu prestígio político e ampliá-lo. Graças a isso, pôde eleger Dilma Rousseff sua sucessora e, com isso, estender para diante seu projeto político.

A verdade, porém, é que, como não tinha um programa de governo nem muito menos um projeto estratégico para o país, valeu-se da estabilidade econômica e do momento propício do crescimento mundial para ampliar seus programas assistencialistas e propiciar aumentos salariais que beneficiaram amplas camadas da população mais pobre.

O crescimento do mercado interno, entre outros fatores, permitiu que o país passasse relativamente ileso pela crise que atingiu a economia mundial a partir de 2008.

Noutras palavras, desde que o petismo assumiu o governo, nenhuma medida foi tomada para atender às novas condições criadas pelo próprio crescimento da economia. De fato, o que se fez foi onerar os setores produtivos, ampliar a máquina estatal e aumentar as despesas públicas. O número de ministros subiu de 27 para 39 -ou 40, já nem sei- e, com eles, o número de funcionários concursados e não concursados.

Seguindo o exemplo do Executivo, a Câmara, o Senado e o Judiciário criaram novos encargos para o Tesouro, aumentando o deficit público. Naturalmente, todas essas medidas -que ampliaram o consumo e mantiveram o crescimento da economia- deixam a população otimista, disposta a gastar, ainda que se endividando a cada dia.

E tudo isso, sem que se pague salário justo a professores e médicos, que desempenham papel vital para a sociedade. Mas essa gastança aproxima-se do fim, porque ou se põe termo a ela, ou o país caminhará para o impasse.

As mais recentes informações, colhidas nos institutos de pesquisa, compõem um quadro preocupante, a começar pelo índice de crescimento da economia que, no último ano, ficou em apenas 2,7%, abaixo de quase todos os país da região, exceto Guatemala e El Salvador.

Esse dado poderia ser visto como um fato conjuntural, não fossem outros, igualmente preocupantes, como o índice de investimento, que ficou em 19% do PIB, contra o índice de 23% da região, enquanto a produtividade do trabalhador brasileiro ocupa o 15º lugar na América Latina. Por outro lado, nossa produção industrial perde competitividade, devido à desvalorização do dólar, mas também aos encargos que oneram a folha de pagamento.

Noutras palavras, o país chega ao limite de seus gastos, quando a solução para o impasse seria investir na infraestrutura (portos, estradas de ferro, rodovias) e na formação de profissionais de alto nível técnico.

A saída é cortar os gastos supérfluos com a máquina estatal e desonerar de impostos e taxas o custo da produção. Mas, para isso, teria que contrariar os interesses dos partidos da base aliada e o poder das centrais sindicais, aliados do governo. Dilma teria que topar essa briga.

Se esse diagnóstico está correto, a lua de mel lulista com o poder parece aproximar-se do fim. Podem até ganhar as eleições deste ano e as de 2014. Não sei. O certo é que, cedo ou tarde, a realidade cobra seu preço.

domingo, fevereiro 12, 2012

Um sonho que acabou

FERREIRA GULLAR, FOLHA DE SP

É com enorme dificuldade que abordo este assunto: mais uma vez -a 19ª- o governo cubano nega permissão a que Yoani Sánchez saia do país. A dificuldade advém da relação afetiva e ideológica que me prende à Revolução Cubana, desde sua origem em 1959.

Para todos nós, então jovens e idealistas, convencidos de que o marxismo era o caminho para a sociedade fraterna e justa, a Revolução Cubana dava início a uma grande transformação social da América Latina. Essa certeza incendiava nossa imaginação e nos impelia ao trabalho revolucionário.

Nos primeiros dias de novo regime, muitos foram fuzilados no célebre "paredón", em Havana. Não nos perguntamos se eram inocentes, se haviam sido submetidos a um processo justo, com direito de defesa. Para nós, a justiça revolucionária não podia ser questionada: se os condenara, eles eram culpados.

E nossas certezas ganharam ainda maior consistência, em face das medidas que favoreciam aos mais pobres, dando-lhes enfim o direito a estudar, a se alimentar e a ter atendimento médico de qualidade. É verdade que muitos haviam fugido para Miami, mas era certamente gente reacionária, em geral cheia da grana, que não gozaria mais dos mesmos privilégios na nova Cuba revolucionária.

Sabíamos todos que, além do açúcar e do tabaco, o país não dispunha de muitos outros recursos para construir uma sociedade em que todos tivessem suas necessidades plenamente atendidas. Mas ali estava a União Soviética para ajudá-lo e isso nos parecia mais que natural, mesmo quando pôs na ilha foguetes capazes de portar bombas atômicas e jogá-las sobre Washington e Nova York. A crise provocada por esses foguetes pôs o mundo à beira de uma catástrofe nuclear.

Mas nós culpávamos os norte-americanos, porque eles encarnavam o Mal, e os soviéticos, o Bem. Só me dei conta de que havia algo de errado em tudo isso quando visitei Cuba, muitos anos depois, e levei um susto: Havana me pareceu decadente, com gente malvestida, ônibus e automóveis obsoletos.

Comentei isso com um companheiro que me respondeu, quase irritado: "O importante é que aqui ninguém passa fome e o índice de analfabetismo é zero". Claro, concordei eu, muito embora aquela imagem de país decadente não me saísse da cabeça.

Impressão semelhante -ainda que em menor grau- causaram-me alguns aspectos da vida soviética, durante o tempo que morei em Moscou. O alto progresso tecnológico militar contrastava com a má qualidade dos objetos de uso. O que importava era derrotar o capitalismo e não o bem-estar e o conforto das pessoas. Mas os dirigentes do partido usavam objetos importados e viam os filmes ocidentais a que o povo não tinha acesso.

Se a situação econômica de Cuba era precária, mesmo quando contava com a ajuda da URSS, muito pior ficou depois que o socialismo real desmoronou. É isso que explica as mudanças determinadas agora por Raúl Castro.

Mas, antes delas, já o regime permitira a entrada de capital norte-americano para construir hotéis, que hoje hospedam turistas ianques, outrora acusados de transformar o país num bordel. Agora, o governo estimula o surgimento de empresas capitalistas, como o faz a China. Está certo desde que permita preservar o que foi conquistado, já que a alternativa é o colapso econômico.

Tudo isso está à mostra para todo mundo ver, exceto alguns poucos sectários que se negam a admitir ter sido o comunismo um sonho que acabou. Mas há também os que se negam a admiti-lo por impostura ou conveniência política.

Do contrário, como entender a atitude da presidente Dilma Rousseff que, em recente visita a Cuba, forçada a pronunciar-se sobre a violação dos direitos humanos, preferiu criticar a manutenção pelos americanos de prisioneiros na base aérea de Guantánamo, o que me fez lembrar o seguinte: um norte-americano, em visita ao metrô de Moscou, que, segundo os soviéticos, não atrasava nunca nem um segundo sequer, observou que o trem estava atrasado mais de três minutos. O guia retrucou: "E vocês, que perseguem os negros!".

A verdade é que nem eu nem a Dilma nem nenhum defensor do regime cubano desejaria viver num país de onde não se pode sair sem a permissão do governo.