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terça-feira, novembro 13, 2012

A ideologia de Obama


Rodrigo Constantino, O GLOBO

Será que um marido em busca de uma “transformação fundamental” de sua esposa lhe tem amor sincero? Parece estranho alguém que ama tentar mudar a essência do ser amado. Mas esta tem sido justamente a promessa de Obama: “transformar fundamentalmente” a América.
A imprensa pinta um Obama pragmático e moderado, enquanto os republicanos são atacados de forma caricatural, como um bando de ultraconservadores reacionários. Obama estaria acima das ideologias, enquanto os republicanos seriam dogmáticos. Será que esta imagem corresponde à realidade?
Se o marxismo foi sempre uma desgraça em seus resultados, parece inegável seu sucesso na propaganda. Em parte, isso se deve ao verniz científico que esta religião secular conseguiu criar. Os marxistas não eram crentes, mas donos da razão. Aquilo não era uma profecia calcada na fé, e sim uma certeza científica.
Os “progressistas” são os herdeiros intelectuais desta farsa. Escondem sua ideologia sob o manto da ciência — pseudociência, na verdade.
Em cada frase proferida por Obama e seus acólitos, há a crença de que o Estado é a grande locomotiva do progresso. Os empresários são tratados com desconfiança, o mercado é perigoso e aumentar impostos é sempre desejável. Obama chegou a afirmar que defenderia impostos maiores sobre ganhos de capital, mesmo sabendo que isso não levaria a uma arrecadação maior. Era uma questão de “justiça” para ele.
Suas medidas na área econômica têm se mostrado ineficientes, com resultado medíocre. Não importa: a esquerda sempre pode argumentar que sem elas a coisa estaria ainda pior. Culpam o antecessor, que deixou uma “herança maldita”. Reagan também assumiu uma economia em frangalhos, mas conseguiu resultados bem melhores. Ele acreditava no mercado, não na clarividência estatal.
Obama é elogiado pela coragem de seus gastos bilionários para estimular a economia, além do resgate das montadoras. Não é fácil entender que coragem é essa em torrar o dinheiro dos pagadores de impostos ou salvar empresas ineficientes, favorecendo os ricos de Wall Street e os sindicalistas, enquanto o déficit fiscal explode. O futuro foi hipotecado para não haver sofrimento hoje. Isso é um ato de coragem?
Com retórica de luta de classes, Obama expandiu o assistencialismo, e nunca houve tanto americano dependendo de esmolas estatais. A meritocracia cedeu espaço para o coletivismo. O sonho americano parece cada vez mais distante.
Outro grande troféu de Obama foi seu programa de saúde, o Obamacare. Trata-se de uma espécie de SUS americano. Ninguém quer debater sobre seus resultados práticos. Basta o monopólio dos fins nobres: só um insensível pode ser contra este programa. Será? Os esquerdistas nunca pensam nas conseqüências não intencionais de suas medidas. Mas elas existem, e temos vários exemplos. O próprio SUS...
Quando se trata do clima, Obama novamente demonstra sua ideologia: abraçou com vontade o alarmismo. Antes, o ecoterrorismo era feito em nome do “aquecimento global”, e agora se fala em “mudanças climáticas”, termo mais vago. A seita verde busca uma capa científica, mas há vários furos nas previsões catastróficas de seus profetas.
Mas a solução para o problema está dada: mais poder e recursos concentrados no Estado! Pouco importa se, na prática, esta mentalidade pariu fracassos gritantes como o da Solyndra, empresa que recebeu milhões do governo Obama e foi à falência. Vale mais a retórica messiânica. Obama se colocou como um deus capaz de “salvar o planeta”. Mas são os outros que acabam acusados de arrogantes!
Nas liberdades civis, quando Bush aprovou o Patriot Act foi um escândalo, mas quando Obama expandiu seus poderes arbitrários, constrangedor silêncio. Vários outros exemplos ilustram o claro viés ideológico de Obama e da imprensa.
Não há nada errado, a princípio, em ter uma ideologia. Todos têm uma (algumas mais embasadas que outras). O problema é a desonestidade de se vender como moderado e pragmático (o pragmatismo é uma ideologia!), quando se carrega uma profunda crença ideológica escondida.
Obama não é, definitivamente, um moderado; ele tem uma visão de mundo para a América, e ela difere bastante daquela dos “pais fundadores”, que criou a nação mais próspera e livre do mundo. Seus principais gurus eram todos esquerdistas radicais. Ele adoraria ver seu país cada vez mais parecido com a França “progressista”, cujo presidente socialista acaba de aprovar imposto de 75% para os mais ricos. Resta só alguém avisar a Obama que este modelo de bem-estar social está totalmente falido...

terça-feira, julho 10, 2012

O fator ideológico

Rodrigo Constantino, O GLOBO

O ano era 2002. Lula tinha sido eleito e escolhera Dilma para o Ministério de Minas e Energia. Os futuros ministros faziam reuniões com investidores para acalmar os tensos mercados. Eu trabalhava em uma grande gestora carioca. Estive em uma dessas reuniões com Dilma. Foi meu único encontro com a atual presidente.

Um dos presentes perguntou como o governo faria para atrair os necessários investimentos ao setor, uma vez que o discurso corrente era de que a rentabilidade não deveria ser elevada. Com dedo em riste e tom autoritário, Dilma disparou: “Quem foi que disse que é preciso ter alto retorno nesse setor?”

Eis o que eu queria dizer: desde então tenho como certo o fator ideológico entranhado em Dilma. Muitos falam em gestora eficiente, pragmática, mas eu só consigo enxergar ideologia.

Até mesmo o Itamaraty foi infectado pelo vírus ideológico, como ficou claro no caso do Paraguai. O Barão do Rio Branco, ao assumir o ministério das Relações Exteriores, declarou: "Não venho servir a um partido político: venho servir ao Brasil, que todos desejam ver unido íntegro, forte e respeitado". Ele não teria vez no governo Dilma, que se mostra apenas um capacho de Hugo Chávez.

O prêmio Nobel de Economia Friedrich Hayek chamava a atenção para a “arrogância fatal” de certas ideologias. Ela seria basicamente a crença de que é possível controlar tudo nos mínimos detalhes, de cima para baixo. Planejadores centrais que desprezam os sinais do mercado e pensam ser possível ignorá-lo para sempre: são os arrogantes. O fatal fica por conta dos estragos que costumam causar na economia.

Pois bem. A economia brasileira seguiu nos últimos anos um modelo claramente insustentável, calcado em crédito e consumo. O governo ignorou a necessidade de reformas estruturais que aumentassem a nossa produtividade. A farra foi boa enquanto durou, financiada pela acelerada expansão do crédito, possível pela alta no preço das commodities que exportamos para a China.

Esta fase de bonança se esgotou. O PIB cresceu apenas 2,7% em 2011, e esse ano mal deve chegar a 2%, muito longe dos 4,5% que o ministro Mantega projetava. Para piorar, a inflação ainda segue acima do centro da elevada meta. Qual tem sido a reação do governo?

Ideológica, claro. Imbuído da falsa crença de que pode simplesmente estimular mais ainda o consumo e o crédito, o governo tem apelado para pacotes quase semanais. Os resultados são pífios ou negativos? Não tem problema. Basta aumentar a dose!

A ideia de que o consumo do governo pode estimular de forma sustentável o crescimento econômico não passa de uma falácia, que já foi refutada no século 19 por Bastiat. O economista francês citou o exemplo de uma janela quebrada para fazer seu ponto.

Algum vândalo joga uma pedra que estilhaça a janela de uma loja. Algumas pessoas tentam consolar o dono da loja alegando que ao menos ele estará gerando emprego ao consertar a janela. Afinal, se janelas nunca fossem quebradas, de que iriam viver os reparadores de janelas?

Esta linha de raciocínio míope ignora aquilo que não se vê de imediato. Sim, o conserto da janela iria propiciar um ganho para o vidraceiro. Mas o que seria feito desse dinheiro gasto caso a janela não tivesse sido quebrada? Qual o uso alternativo para este recurso escasso? Eis a questão!

O mesmo ocorre com o gasto público. O governo não produz riqueza. Para ele gastar, antes ele precisa tirar de alguém que produziu. Ele pode fazer isso por meio de impostos, emissão de dívida ou de moeda (imposto inflacionário).

De qualquer forma ele estará transferindo recursos de um lado para o outro, normalmente cobrando um grande pedágio por isso. Mas ele não estará criando riqueza. Logo, os gastos públicos não estimulam a economia: eles apenas retiram recursos do setor privado, que costuma alocá-los de forma bem mais eficiente.

Outro efeito perverso desta política é a seleção dos campeões, que deixa de ser feita pelo mercado (mérito) e passa a depender das escolhas do governo. No dia do anúncio do último pacote, o índice de ações da Bovespa caiu mais de 1%, mas as ações da Marcopolo subiram mais de 6%. O governo divulgou uma grande compra de caminhões para “estimular” o crescimento econômico. Alguém pagou por isso.

Esta ideologia centralizadora está fadada ao fracasso. Ela produz ineficiência e lobby por privilégios, mas não consegue aumentar a produtividade da economia. Infelizmente, a presidente acredita neste modelo, e vai insistir nele até quebrar a (nossa) cara. Não podemos desprezar o fator ideológico deste governo.

sábado, agosto 06, 2011

Ideologia e literatura

Gao Xingjian - O Estado de S.Paulo

No decorrer do século 20 foram muito comuns as ocorrências nas quais a literatura foi contida, controlada, dirigida e até produzida e julgada pela ideologia. Isso não se aplicou apenas à criação literária: a história e a crítica da literatura também apresentaram muitas vezes a marca da ideologia. Poderíamos dizer que a ideologia foi o mal do século - contra o qual foi difícil imunizar-se - e, para os autores sortudos o bastante para escapar dessa doença do período, isso significou que seus escritos foram preservados, continuando merecedores de leitura em épocas posteriores.

Para que uma teoria ou ensinamento consista numa ideologia é preciso que haja uma estrutura conceitual filosófica somada à representação de uma visão de mundo que tenha como base valores correspondentes. Entre as ideologias, o marxismo sem dúvida teve a estrutura mais perfeita e a influência de maior alcance, causando um impacto profundo em gerações de intelectuais. Nem é preciso dizer que esse foi o pilar intelectual oficial dos antigos Estados comunistas, mas, durante algum tempo, foi também a principal tendência dos círculos intelectuais de esquerda de todo o mundo. Liberalismo e nacionalismo também puderam ser transformados em ideologias, e se tornaram o pensamento e os valores promovidos por partidos políticos e nações. E, no mundo intelectual - que inclui sem dúvida os domínios da literatura e da arte -, modernismo, pós-modernismo e até o chamado pós-colonialismo tinham o potencial de serem transformados em determinados juízos de valor e até em dogmas inflexíveis.

As ideologias foram inicialmente construídas com o objetivo de explicar o mundo, e também de estabelecer sistemas de valores para a sociedade humana que servissem como base razoável para as autoridades do Estado e as estruturas sociais. Se pensamos na filosofia como algo confinado ao pensamento metafísico, então a ideologia está ligada a juízos de valor a respeito da estrutura e dos muitos tipos de vantagens na sociedade. A literatura, por sua vez, é a articulação livre dos sentimentos e pensamentos dos seres humanos, transcendendo essencialmente a utilidade prática, e quando os autores seguem esta ou aquela tendência ideológica de pensamento, eles perdem sua independência de pensamento. Infelizmente, foi assim que, nos tempos modernos, a literatura perdeu com frequência sua autonomia de pensamento. Foi assim que, nos tempos modernos, a literatura muitas vezes perdeu sua autonomia e se tornou um acessório da ideologia: a literatura do século 20 deixou para trás muitas lições para todos nós.

A substituição da religião pela ideologia foi outro ato de estupidez do século 20. Sob a bandeira do racionalismo, e fazendo uso de dogmas utópicos que mudariam o mundo, um grande número de revoluções incitou a violência que trouxe consigo a loucura em massa - às vezes de alcance nacional - responsável por desastres de uma escala sem precedentes na história humana. A literatura que foi trazida para a estrutura conceitual da ideologia, promovendo a violência e a guerra, criando a idolatria a heróis e líderes e incitando ao sacrifício parece agora ter virtualmente desaparecido, mas prossegue o apelo para que a literatura se envolva ativamente. Tratar a literatura como uma ferramenta de transformação da sociedade a equipara ao exercício de pregação da ética, exceto pelo fato de a ética ter sido agora substituída pelo politicamente correto. A literatura do presente não é capaz de se libertar das amarras da ideologia com tanta facilidade, e aquilo que conhecemos como envolvimento significa o envolvimento na política real. Essa noção de literatura ainda prevalece no mundo intelectual contemporâneo.

Hoje em dia é bastante comum que os intelectuais debatam a política, mas, a não ser que a pessoa se envolva pessoalmente com a política, esse debate não costuma ser mais do que um discurso vazio de impacto mínimo na situação política e na sociedade. Além disso, a política real de hoje é a política dos partidos e, a não ser que os intelectuais se filiem a um partido político e se tornem políticos profissionais, será difícil que façam alguma diferença. Para um escritor comprometido com a literatura e ansioso por influenciar a política, a situação é duplamente difícil, e esse é o estranho dilema que a literatura enfrenta ao se envolver na política. Entretanto, a política não está preocupada com esse dilema enfrentado pelos autores, nem com a ideologia de qualquer teoria política. Caso venha à tona um conflito entre este ou aquele ismo e os interesses reais da política partidária, o partido acabará descartando a teoria, ou então os teóricos farão as revisões e reinterpretações apropriadas de acordo com as exigências da política real, o que leva a mudanças constantes naquilo que é conhecido como politicamente correto.

O autor patético - estou me referindo aqui ao autor que usa a literatura para servir à política - está preso à biga de guerra da política, não mais no controle de si mesmo, brandindo uma bandeira e gritando, mas ele perdeu a própria voz e, é claro, não deixará como legado obras que valham a pena serem lidas. Ainda mais trágico é o fato de propriedade e vida terem sido enviadas ao túmulo, destino de muitos autores revolucionários que sacrificaram a literatura em nome da revolução sob a política centralizada do comunismo. A história não chegou ao fim e, igualmente, o futuro da literatura que serve à política nos sistemas democráticos não é necessariamente maravilhoso. Além disso, a literatura não é como uma mídia e não pode ser o objeto de uma cobertura diária, e cada facção política que conte com sua própria mídia de massas para apresentar de maneira satisfatória suas visões políticas não espera que a literatura tenha algum efeito. Se a literatura participa da política, ela serve no máximo como floreio decorativo da política partidária.

Basicamente, a ideologia estabelece uma teoria para a política real, mas a teoria não determina o lucro, nem o prejuízo nem o poder comparativo real que controlam a política. Invariavelmente, a política é mais uma questão de dinâmica do que de ideologia, e pode estar correta num dia e equivocada no dia seguinte, mantendo-se sempre politicamente correta. O autor que adere a uma ideologia, ou, poderíamos dizer, que acredita num determinado ismo, descobrirá na verdade seus ideais repetidamente abandonados pela política, mas sua frustração e sensação de perda não serão fruto de erros ou defeitos na ideologia. Em vez de tentar revisar uma determinada ideologia, seria mais fácil simplesmente entregar-se ao serviço da política, sendo este o inevitável resultado do envolvimento da literatura na política. Esse tipo de literatura, é claro, perde a independência e a autonomia que são inerentes à literatura, e pertence somente ao âmbito da política partidária.

O autor - estou me referindo aqui aos autores e poetas comprometidos com a criação literária, e não com as opiniões de comentaristas políticos e colunistas de jornais que pertencem a uma profissão diferente - se vê hoje numa posição em que se torna difícil ganhar a vida. A resistência ao alinhamento político e a recusa em se curvar aos modismos e ao gosto das massas gerados pelo mercado, perseverando em vez disso na escrita literária, são coisas que devem emanar inicialmente de uma necessidade interna que exija expressão. De fato essa é na verdade a intenção original da literatura, e poderíamos dizer que assim tem sido desde a antiguidade até o presente, tanto no Oriente quanto no Ocidente. Esse tipo de literatura que transcende a ideologia e a política e transcende o benefício prático consiste num testemunho das condições existenciais da humanidade e da natureza humana.

Na época globalizada atual, os ganhos econômicos reais substituíram concretamente a ideologia ou, dito de outra forma, a ideologia tornou-se hoje um discurso vazio e antiquado, na melhor das hipóteses nada além de um cartaz enganoso no palco político, e por isso não há problema em chamar o presente de era pós-ideológica. A literatura contemporânea teve a sorte de escapar das amarras da ideologia e, se ignorar os modismos gerados pelo mercado e ousar enfrentar os genuínos problemas humanos do presente, então a literatura será salva. O que esse tipo de literatura espera do autor é a sinceridade, ou seja, que ele não evite os muitos problemas reais que afligem a sociedade humana, e é essa literatura sincera e verdadeira que os leitores de hoje desejam.

Purificação. O fim da ideologia não é o fim da literatura, e o fim da ideologia não é o fim do pensamento. O colapso de um século de utopias deveria ter ocorrido há muito tempo, e agora o empobrecimento espiritual tenta seduzir a literatura aos gritos. De fato, a literatura é incapaz de salvar o mundo, o autor não é um salvador e, além disso, o que ele precisa fazer é se livrar de tal papel imaginário, voltando a ser um indivíduo autêntico e frágil para que seja possível ter uma consciência lúcida do mundo humano.

A literatura pode ser apenas a voz do autor individual, mas, quando retratada como representante do povo ou porta-voz da nação, essa voz será certamente falsa, rouca e cansada. Da mesma maneira, o autor não é a encarnação da verdade e da dignidade, e suas fraquezas e defeitos pessoais são de fato tão grandes quanto os das pessoas comuns; aquilo que o diferencia é simplesmente o fato de ele poder purificar-se com a escrita da literatura. Além disso, o autor não é um juiz, não decide a respeito daquilo que é certo ou errado nem julga aquilo que é moral ou justo. Ele certamente não é uma espécie de super-homem e não pode substituir a Deus, mas deve-se reconhecer que o mal de época da inflação ilimitada do ego, assim como a ideologia, foi a grande febre durante algum tempo. Se o autor de hoje for capaz de abolir tais delírios pessoais, adotando uma atitude normal, observando com um olhar inteligente as muitas manifestações da vida no universo ao mesmo tempo em que disseca e analisa friamente seu próprio eu caótico, a obra produzida por sua pena será digna de leitura e releitura.

O autor é um observador da sociedade e da natureza humana. Uma vez que ele descarte o benefício prático, ponha de lado os potenciais obstáculos psicológicos e tenha um claro entendimento de si mesmo, suas observações serão incisivas e meticulosas e, sem que nenhum assunto consista num tabu, ele poderá expor e apresentar de maneira penetrante a verdadeira situação da vida humana. A literatura não se satisfaz em documentar pessoas e eventos reais, e a capacidade do autor de sondar a vida e a natureza humana deriva de suas experiências de vida. Mas ainda mais importante é a capacidade inata do autor tanto de sondar as mais distantes profundezas quanto de usar meios estéticos para relatar linguisticamente as percepções que foram despertadas ao seu redor.

O motivo pelo qual o depoimento da existência humana deixado pelo autor se mantém vívido e poderoso com o passar do tempo não se deve inteiramente à habilidade linguística, estando mais associado ao sentimento estético que o autor concede a seus personagens. Esses sentimentos não correspondem diretamente a simples juízos éticos de certo e errado, consistindo em sentimentos humanos transpostos para os personagens. É claro que esses derivam também da atitude do autor diante de seus personagens, e são precisamente esses sentimentos estéticos que fazem com que os personagens ganhem vida.

Tragédia ou comédia, ou tragédia e comédia e todas as demais emoções e desejos humanos podem ser manifestados de maneira estética. Triste ou divertido, absurdo ou hilário, nobre ou cômico são qualidades concedidas pelo autor, e essa estética intimamente associada às emoções é incomparavelmente mais rica do que a cognição racional. É isso que diferencia a literatura da filosofia. A literatura não é um acessório da ideologia e, apesar de não se propor a comentar a filosofia, ela às vezes chega a entendimentos semelhantes. Enquanto a filosofia toma por base a especulação racional pura, o conhecimento conquistado na literatura está sempre associado à sensualidade e às emoções.

Literatura e filosofia chegam cada qual a um entendimento do mundo e dos seres humanos recorrendo a meios diferentes, mas não cabe debater se uma seria superior à outra. Tanto racionalidade quanto sensualidade são caminhos necessários para a compreensão do ser humano. A literatura pode instigar nas pessoas uma reflexão profunda porque pode revelar o estranhamento e a ansiedade, a busca e a perda de rumo na vida humana com tamanha incisividade, podendo manifestar plenamente os detalhes minuciosos da natureza humana. Essa propensão a inquietar e despertar transcende o politicamente correto e os ensinamentos éticos, sendo muito superior a qualquer coisa que a análise semântica pós-moderna e os jogos de palavras possam oferecer. Mesmo que as experiências de vida do autor por trás da linguagem da literatura sejam transformadas em pensamento, este ainda terá de ser infundido com os sentimentos e percepções do autor ou dos personagens, e situações específicas na obra também precisam ser incluídas, o que faz delas mais do que a pura formulação e definição de conceitos racionais.

Há dois tipos de pensadores: um deles é o filósofo, que se apoia na especulação metafísica racional; o outro é o autor, que se vale das imagens literárias. O primeiro tipo pode ser encontrado nos grandes pensadores da Grécia Antiga, e o último pode ser encontrado nos autores das tragédias e comédias gregas da mesma época. Cada qual recorreu a métodos diferentes para proporcionar às gerações futuras o conhecimento a respeito da situação existencial humana (os dilemas, com frequência) e da natureza humana. Na Europa, durante a Idade Média, quando a escolástica sufocou o pensamento, foi do poeta Dante o entendimento do mundo e das pessoas que se revelou superior. Além disso, Shakespeare foi sem dúvida o maior pensador de sua época e, igualmente, Goethe e Kant foram brilhantes.

Hoje a maré do pensamento pós-moderno parece ter passado e, diante dessa vertiginosa época de empobrecimento espiritual, acho que as pessoas devem buscar inspiração na literatura. A crise financeira e econômica mundial projetou pela primeira vez os economistas ao palco na qualidade de pensadores, enquanto a filosofia se mantém em silêncio. Que rumo a humanidade está seguindo? Serão os seres humanos capazes de prever o futuro, ou será que um novo conjunto de utopias será estabelecido? Ou será que as cartas serão novamente embaralhadas para mais uma rodada de jogos semânticos? Seja qual for a resposta, a literatura pode sem dúvida proporcionar até certo ponto um relato da sociedade na qual as pessoas se veem envolvidas hoje.

É claro que a literatura não se resume a replicar a realidade. A literatura realista foi uma das grandes correntes literárias, e do fim do século 19 até o início do século 20 surgiram grandes números de autores talentosos e muitas obras de notável permanência. Os escritos modernistas do século 20 se voltaram para o mundo do inconsciente das pessoas, abrindo outra área para a literatura. A racionalidade não poderia oferecer respostas para o absurdo da sociedade moderna nem para as questões relacionadas ao significado da existência, e a filosofia tinha igualmente se afastado dos temas tradicionais. Sob os auspícios da ideologia, a literatura que reproduzia a realidade social se transformou em propaganda revolucionária. Sob as condições sociais atuais, será a literatura ainda capaz de refletir a realidade social? É claro que sim: trata-se apenas de uma questão de descartar os ismos, libertar-se da estrutura conceitual e dos dogmas da ideologia, afastar a pregação do politicamente correto, retornar às percepções genuínas do autor e narrar com a voz firme e independente do indivíduo. Mesmo que essa voz seja extremamente fraca ou que desagrade ao ouvinte, trata-se da verdadeira voz de uma pessoa, e isso tem valor enquanto literatura.

Independência espiritual. A literatura é a afirmação que um homem faz de sua própria existência. Apesar de o frágil indivíduo não contar com o poder de mudar o mundo, ele pode manifestar suas opiniões sempre que desejar. É relevante que o autor tenha de fato pensamentos próprios a expor, e que não se limite a meramente repetir as afirmações amplamente difundidas pelas autoridades e pela mídia. A independência espiritual do indivíduo é a própria substância da literatura, e responde pela independência e autonomia da literatura. A literatura não se associa ao poder político nem depende do mercado, consistindo num domínio de liberdade espiritual para os humanos. Apesar de não ser sagrada, ela pode ser protegida dos avanços de outros interesses, e constitui uma parte do pouco orgulho que o ser humano pode ter de si.

O homem existe em meio a todo tipo de restrição na sociedade, e a liberdade não é um direito concedido ao nascer. Um preço deve ser pago, há condições, e ela nunca veio de graça. Mas a liberdade espiritual pertence ao indivíduo, embora seja necessário que o indivíduo a escolha, e a independência e a autonomia da literatura são algo que o autor deve escolher. A liberdade espiritual enobrece os seres humanos, e consiste também num atributo da literatura.

A literatura é o despertar da consciência do indivíduo no sentido de que o autor se arma com esse conhecimento intuitivo quando observa o mundo humano ao mesmo tempo em que analisa a si mesmo. Ele infunde seu entendimento lúcido na sua obra. O entendimento único de um indivíduo em relação ao mundo é inegavelmente o desafio que a existência da entidade individual faz ao seu ambiente existencial. Portanto, o entendimento conquistado numa obra literária sempre traz a marca do autor individual. É precisamente cada uma dessas histórias individuais que faz da literatura algo interessantíssimo e insubstituível. Enquanto a especulação da filosofia se apoia no abstrato, a literatura promove um retorno à vida, às percepções das pessoas vivas e às emoções. Em outras palavras, a literatura começa em lugares que são inalcançáveis para a filosofia, e o tipo de entendimento proporcionado por ela não pode ser substituído pela filosofia.

Quando a filosofia clássica se imbuiu de conceitos e racionalidade para construir um sistema de especulação que proporcionasse ao mundo um exemplo perfeito, tudo aquilo que não pôde ser perfeitamente explicado foi deixado nas mãos de Deus. Entretanto, não há limites para aquilo que a literatura pode dizer, e ela não se apressa em se propor a definir uma certa visão de mundo. Além disso, ela sempre mantém a mente aberta e preenche a consciência das pessoas com pensamentos e infinitas emoções. Por confrontar a vida em suas infinitas variações, a literatura não termina com a morte do protagonista ou do autor, e nem com a conclusão de uma obra.

Cada autor apresenta uma visão única, mas ele não usa essa visão única para substituir os demais autores. Não é como na filosofia, na qual a crítica é a premissa para o estabelecimento de uma teoria que com frequência é promovida como única verdade correta e definitiva. Apesar de a filosofia pós-moderna defender a ambiguidade e até a eliminação do sentido, ela é independentemente disso estabelecida com base na premissa da morte de todas as filosofias predecessoras. A literatura não exclui e não abre para si um caminho por meio da crítica; em vez disso, o que ocorre é que cada pessoa apresenta o próprio discurso, coisa que possibilita uma variedade infinita.

A literatura não faz da crítica social sua missão, e não usa uma visão de mundo pré-fabricada nem um sistema de valores nela alicerçado para julgar a sociedade. Os depoimentos da literatura se valem da estética. A estética emana primariamente da natureza humana, estando intimamente associada à incorporação das influências culturais que se deu no decorrer de um extenso período da história humana. Além disso, ela transcende os tipos de linguagem, e pode ser traduzida e comunicada para todo o mundo. As emoções evocadas pela estética infundida numa obra pelo autor são poderosas, e podem encontrar eco em leitores de diferentes nacionalidades e de diferentes épocas, o que confere à literatura uma riqueza espiritual que deve ser desfrutada por toda a humanidade. Portanto, a estética que um autor infunde numa obra literária pode ser considerada um juízo definitivo que transcende os benefícios práticos, o certo e o errado, o bem e o mal, além dos costumes sociais e a época. Enquanto a obra circular pelo mundo, as pessoas continuarão a lê-la, e as sensações estéticas evocadas por esse testemunho literário transcenderão a história, sobrevivendo por muito tempo.

Estritamente falando, a era não tem significado para a literatura, apesar de cada obra de cada autor trazer até certo ponto a marca de seu tempo. Separar a literatura em diferentes períodos e diferentes ismos é tarefa dos historiadores da literatura, mas nada tem a ver com as criações do autor. O modernismo do século 20 passou a existir após o surgimento de certo número de obras que foram reunidas pelos críticos literários: essas foram classificadas em tal categoria e teorias foram estabelecidas. Isso ajudou a pesquisa literária, mas pouco teve a ver com a criação dos autores. De fato, houve autores que se gabaram de serem modernistas, mas somente depois que seus predecessores e as obras representativas tinham se tornado publicamente conhecidas, familiares, e assim a reunião sob esse rótulo criou uma tendência. O valor literário de uma obra nada tem a ver com rótulos, dependendo em vez disso do entendimento único e da apresentação estética do autor e da obra.

A modernidade foi extrapolada a partir de obras muito diferentes criadas por certo número de autores modernos, e portanto era grande a probabilidade de ela ser transformada em dogma. De fato, a modernidade que se tornou um símbolo da época após a reunião de alguns autores extraordinários e obras notáveis numa mesma categoria tinha na segunda metade do século 20 sido transformada num dogma estético ossificado. Para esse dogma era essencial a subversão, e assim foi criado um modelo para a subversão dos estilos predecessores, e a negação da negação foi vista como o princípio universal que ativava a história, tornando-se a estratégia básica do pós-modernismo. Em última análise, as origens disso estão no marxismo que foi formado pela dialética hegeliana. Quando o marxismo foi apresentado à literatura e à estética, continuar a revolução na literatura e na arte tornou-se a maneira por meio da qual a história da literatura e da arte era escrita.

Privada do rico conteúdo da natureza e das emoções humanas, a estética pós-moderna se transformou em retórica e papo furado e, com a análise semântica substituindo a estética, filosofia e literatura se transformaram em jogos linguísticos, o que levou a um desaparecimento natural do significado. Essa estratégia pós-moderna de subversão não era nem mesmo voltada contra a sociedade, e os problemas da sobrevivência e existência humana desapareceram em meio à linguagem vazia, de modo que restaram apenas símbolos vazios de uma era sem autores e desprovida de obras literárias.

A literatura se vale da linguagem, mas a linguagem da pena do autor é muito diferente dos objetivos de pesquisa de gramáticos e linguistas - e pouco tem a ver com eles. A gramática e a análise e descrição das estruturas e funções gramaticais se preocupam com o extrato mais baixo da linguagem e, independentemente disso, essas podem ser a chave de um aprendizado infinito, assim como é o caso de qualquer disciplina. Mas a gramática é muito distante da literatura. A linguagem da literatura transmite o pensamento, as emoções e o espírito dos seres humanos, e também a rica herança literária da humanidade que ela incorpora. Os autores de cada era simplesmente almejam criar novas formas de expressão e, ao fazê-lo, enriquecem a linguagem. Nesse sentido, o autor é criador e inovador na linguagem do seu povo.

Permanência. Para o autor, a literatura não se constitui em significantes, e sim em vibrantes vozes humanas que contêm cada emoção e desejo humano. Quando o autor escreve, essas vozes ganham vida no seu coração e na sua consciência. A linguagem da literatura pode ser lida em voz alta e também interpretada; ela é dinâmica e pode ganhar vida no palco para ressoar forte entre leitores e espectadores. Aquilo que o autor cria é uma linguagem que reverbera com o som - e não a linguagem à qual se referem ou podem se referir os pesquisadores linguísticos. O autor não se contenta com a linguagem empregada em obras anteriores; ele está sempre explorando novas formas de expressão para transmitir percepções recém-descobertas, e sua busca em meio ao potencial expressivo da linguagem não chegou ao fim. Esse tipo de busca não subverte os feitos de seus predecessores; é empreendido sobre os alicerces das expressões existentes.

Os sinais da época pós-moderna anunciando a morte do autor ficaram provavelmente no passado, assim com as revoluções literárias fracassaram em exterminar os autores, tendo elas mesmas se acabado. O autor e a literatura permanecem, e a história não chegou ao fim. Entretanto, o problema é simplesmente determinar como a literatura vai lidar com as condições e dilemas existenciais do homem moderno em relação à literatura. Terá o autor a coragem de apresentar a verdadeira situação do homem? Será que ele vai encontrar uma forma mais precisa de expressão literária?

O autor é o criador de gêneros literários e da linguagem literária. A literatura não é um relato dos fatos, e essa é a grande diferença entre a literatura e o registro da história. As percepções do autor, o gênero, o método de expressão e o estilo da linguagem são características que se desenvolvem simultaneamente, e todo autor realizado terá preferência por certos gêneros e estilos. Além disso, as associações e a imaginação também são infundidas numa obra. Em cada gênero, da poesia aos ensaios em prosa, da ficção ao drama, o autor ainda pode fazer descobertas, e não há padrões ossificados. As percepções estéticas que o autor deseja transmitir não podem ser dissociadas de uma forma literária específica, e uma estética que tenha como base a forma pura consiste num pensamento vazio e desprovido de sentido, sendo também assim o sentido poético da literatura.

Nesta época em que a política a tudo permeia e a lei do lucro mergulha o mundo na incalculável ganância humana, onde podemos encontrar a poesia? A beleza se tornou gradualmente uma memória distante. O homem - não estou me referindo ao conceito humanista do homem, e sim aos díspares indivíduos da sociedade que nunca antes se viram tão fragilizados ao confrontar a solidão que é a existência humana -, este indivíduo solitário, não carece de poder de pensamento: seu questionamento do significado da existência é hoje mais perspicaz do que em todos os momentos anteriores, e ele enxerga a liberdade como uma necessidade urgente. É preciso dizer que em nenhum período anterior um número tão grande de pessoas se dedicou à escrita. Nesta época de empobrecimento espiritual, a literatura se tornou algo a que as pessoas podem recorrer. Existe a esperança de que um traço de vida possa ser preservado, e isto até certo ponto mostra que a literatura não pereceu. Quanto à dúvida de quando haverá outro renascimento literário, isso só pode depender do acaso histórico, e a literatura, como o destino, é determinada por eventos díspares e ocasionais.

TRADUÇÃO A PARTIR DO INGLÊS DE AUGUSTO CALIL