segunda-feira, março 07, 2011

O poder da palavra



Rodrigo Constantino

“Então, quando olho para trás, a única coisa que me resta, na qual me reconheço, que consegue circunscrever um perímetro e um percurso como o contorno de um corpo que vive e respira, são as minhas palavras.” (Roberto Saviano)

Confesso que não sou muito chegado ao Carnaval. Talvez porque o veja como simples vulgaridade. Ou talvez – o que é mais provável –, porque tenha implicância com tudo aquilo que é “pão e circo” para manter alienadas as vítimas do poder organizado. Fugi, portanto, para uma casa de praia, somente com minha mulher e filha, desligando-me do evento mais adorado pelos cariocas. E passei boa parte do tempo na ótima “companhia” de Roberto Saviano, com seu livro A beleza e o inferno, que devorei com prazer. O Carnaval veio à mente mesmo contra minha vontade.

Saviano, como todos sabem, vive sob escolta policial desde que escreveu Gomorra, livro que desnuda a máfia italiana, retirando-lhe todo seu glamour presente em obras como O Poderoso Chefão e Os Bons Companheiros. Seu novo livro, uma coletânea de textos, fala sobre o poder da palavra, a força que tem a literatura contra regimes opressores, contra o crime organizado. As palavras, quando verdadeiras, amedrontam até os mais poderosos. Lênin considerava as palavras armas mais perigosas à sua revolução totalitária do que fuzis. E ele tinha razão.

Como diz Saviano: “Apenas um confronto crítico leal permite crescer e melhorar, enquanto o pensamento totalitário que se esconde atrás do cinismo de certo mundo midiático é meu pior inimigo”. O cinismo “é a armadura dos desesperados que não têm consciência de seu desespero”. E seus textos são justamente um soco na cara de todos os cínicos do mundo. O Nobel Mário Vargas Llosa acha que devemos agradecer Saviano, pois ele “restituiu à literatura a capacidade de abrir os olhos e as consciências”. De fato, não é possível ler seus relatos e permanecer indiferente a eles, fingindo que a realidade exposta ali não existe.

Por que pessoas como Saviano e tantos outros desafiam o poder estabelecido com suas palavras, mesmo reconhecendo o perigo que isso representa? Em parte, eles simplesmente não conseguem deixar de fazê-lo. Mas também há outra possibilidade, levantada pelo próprio autor: o desejo de passar sua mensagem adiante, de influenciar o futuro da humanidade, de mudar as coisas. Quem viveu o inferno de perto, quem viu campos de concentração, guerras, assassinatos praticados por mafiosos, corre o risco de perder a fé nos homens. Afinal, são todas obras humanas, demasiado humanas. Mas, por outro lado, a certeza de que existem leitores que se emocionam, se revoltam, se sensibilizam com seus relatos, tornando o inferno de alguns o inferno de todos, faz com que esses autores possam seguir em frente, com esperança.

“Se tive um sonho foi o de influenciar com as minhas palavras, demonstrar que a palavra literária ainda pode ter um peso e o poder de mudar a realidade”, explica Saviano. Um dos maiores obstáculos nesta busca, entretanto, é a covardia de muitos. Ele pergunta: “Como faço para dizer à minha terra que pare de ser esmagada entre a arrogância dos fortes e a covardia dos fracos?” Um mecanismo de defesa comum é se fechar em suas vidas simples, normais, feitas de pequenas coisas, enquanto uma verdadeira guerra ocorre do lado de fora. Saviano pergunta: “O que fizemos para ficar tão cegos? Tão subjugados e resignados, tão submissos?”

O medo individual atua como um álibi, e isola cada um de nós, cedendo espaço para os criminosos, os corruptos. As pessoas vão se habituando ao estado caótico das coisas, repetem que tudo sempre foi assim, e acabam resignadas. Ignoram que o poder de escolher existe, e que podemos escolher a liberdade. Mas para tanto, antes é preciso não mais aceitar como destino natural aquilo que, ao contrário, é obra dos homens. Saviano foi um desses que escolheu lutar, mesmo pagando um elevado preço por isso, tendo que viver como um prisioneiro, escondido e com escolta, sempre sob o risco de sofrer um atentado fatal. Não se trata de martírio idealista, mas de coragem para não sucumbir a uma vida de submissão e covardia.

Para tanto, faz-se necessário dar voz à verdade, para que esta se espalhe, ganhe o mundo. “Uma verdade dita na solidão não é outra coisa senão uma condenação em muitas partes deste país”, ele escreve. Mas, “se repercute nas línguas de muitos, se é protegida por outros lábios, se se torna alimento partilhado, deixa de ser uma verdade e se multiplica, assume novos contornos, torna-se múltipla, e não mais atribuível apenas a um rosto, a um texto, a uma voz”. Lembrei de V de Vingança ao ler estas belas palavras.

Roberto Saviano contra as máfias italianas, Salman Rushdie contra o fanatismo islâmico, Anna Politkovskaia contra Putin, todos estes e muitos outros foram escritores que apostaram no ser humano e no poder da palavra, sabendo que estas sempre vencem, custe o que custar e leve o tempo que levar. Os poderosos podem deter o escritor, podem colocar uma bala em sua nuca, explodir seu carro, decretar uma fatwa na esperança de calar, de impedir a disseminação da palavra. Mas, como lembra Saviano, “enquanto existir o leitor, nada poderá acontecer às palavras de um escritor”. E escrever, para essas pessoas, foi um atestado de confiança para com o homem, para com as novas gerações. A esperança de um novo percurso humano, melhor que o atual, ainda que nunca perfeito.

E por que este livro, lido em pleno Carnaval, fez-me recordar desta festa que ganhou ares de simples baixaria carnal? Não poderia ser mais evidente a ligação: até quando vamos tolerar calados e resignados, em silêncio ou cumplicidade, estas máfias poderosas que oferecem pão e circo aos alienados enquanto roubam mais ainda, concentram mais poder ainda? Até quando?

11 comentários:

Anônimo disse...

Carnaval é um grande negócio, ou não é? Se sim, não é o que vc mesmo defende: a supremacia do mercado e tal? Ou não?

Anônimo disse...

Rodrigo , não sei se isto é válido, mas me lembrei de vc- LEIA:


Como parte do projeto “Big Questions”, da John Templeton Fundation, pensadores, formadores de opinião e figuras públicas estão sendo convidados a darem a sua contribuição para o debate.

Agora é a vez dos estudantes dos países de língua portuguesa darem a sua opinião. O OrdemLivre irá escolher os três melhores ensaios que respondam a pergunta: Como deve ser a economia de uma sociedade justa?

Os ensaios deverão ser individuais e inéditos, com no máximo seis mil caracteres (com espaços). Podem participar estudantes universitários e de pós-graduação, com idades entre 18 e 28 anos.

Os três melhores ensaios serão reunidos aos artigos dos autores convidados e publicados no site do OrdemLivre, e os seus autores receberão prêmios de US$1000 (1º lugar), US$500 (2º lugar) e US$250 (3º lugar).

Leituras recomendadas:
- Essays, Moral, Political, and Literary, de David Hume;
- Teoria dos Sentimentos Morais, de Adam Smith;
- Uma Teoria de Justiça, de John Rawls;
- Anarquia, Estado e Utopia, de Robert Nozick;
- Será que o livre mercado corrompe o nosso caráter? (parte1, parte 2 e parte 3);
- The Idea and Ideal of Capitalism, de Gerald Gaus.

Os participantes do concurso devem enviar seus trabalhos para o e-mail contato@ordemlivre.org, em formato pdf, até o dia 15 de maio de 2011.


RESISTENCIA DEMOCRATICA

Obrigado Francenildo disse...

Rodrigo,

Supimpa essa sua resenha. Especialmente na crítica à inércia nihilista dos nossos tempos (especialmente aqui no país do carnaval). Fiquei tentado a ler o livro do Roberto Saviano, mas ando com viciado em ler no meu Kindle (vou ver se tem em inglês na Amazon).
Estou lendo com encantamento (no meu Kindle em inglês) o livro de 2005 do pensador francês Michel Onfray "Tratado de Ateologia". Mesmo tendo lido bastante de outros autores ateus, estou achando este livro especialmente poderoso como ferramenta anti-hipocrisia.

Claudio Janowitzer
Rio de Janeiro

Rodrigo Constantino disse...

Claudio,

Eu já li esse livro do Onfray, e de fato tem bons argumentos em prol do ateísmo. Mas acho ele muito raivoso na forma. Ele escreveu um livro depois metendo o pau na psicanálise, mas já vi algumas respostas mostrando falta de conhecimento da parte dele. Não saberia dizer.

Anônimo disse...

Por prudência e razão, prefiro o agnosticismo ao ateísmo.

Sou incrédulo, ateu (no sentido de que não creio na existência de Deus ou Deuses), mas estou com Kant na sua Crítica da Razão Pura. Ele demonstra ali que o supra-sensível é incognoscível por não nos ser dado à experiência. Ou seja: como os aparelhos sensorial e cognitivo do homem são limitados, a ele não seria dado nada mais além daquilo que ele pode sentir e inteligir. Assim sendo, não podendo o homem experimentar e conhecer o supra-sensível, não pode ele provar sua existência ou inexistência.

Pessoalmente considero inverossímil a existência de outro plano dimensional. Porém, não posso provar tal inexistência. Do mesmo modo, nenhum crente pode provar sua existência. Portanto, o mais sensato, racional e prudente é se calar sobre essa matéria, pois a verdade é que ninguém sabe de nada objetivamente a esse respeito.

Acho que essa é uma quastão irrelevante. Vive-se do mesmo modo acreditando-se ou não na existência de Deus ou Deuses.

Eu, volto a dizer, não acredito, mas nada posso provar.

Anônimo disse...

' Ele escreveu um livro depois metendo o pau na psicanálise'...

Nada mais do que a postura natural de qualquer cético.Só tu mesmo que se diz (cético) aparentemente sem nem saber o que é isso.Tão cético quanto o padre Quevedo.
ntsr

Anônimo disse...

'Assim sendo, não podendo o homem experimentar e conhecer o supra-sensível, não pode ele provar sua existência ou inexistência.'

Isso é a mesma coisa que dar o benefício da dúvida pro papai noel só porque ninguem provou que ele NÃO existe.
Google por ônus da prova.
ntsr.

Anônimo disse...

Ao ntsr:

Acho que você não entendeu bem o meu raciocínio.

Todos nós sabemos que Papai Noel é uma figura imaginária. Para mim, os Deuses das religiões também o são, pois o homem nunca teve acesso objetivo a essas figuras mitológicas, motivo pelo qual as imaginou.

Assim, o que digo é o seguinte: ainda que exista algo além dos nossos sentidos e do alcance do nosso intelecto, jamais iremos sabê-lo em virtude dos nossos limites cognoscitivos.

Ora, se não podemos afirmar que nossos sentidos e intelecto são capazes de a tudo captar, como podemos negar - ou afirmar - se algo existe ou não para mais além?

Por exemplo: podemos responder à pergunta "existe outro ou outros universos além do que conhecemos"?

É por aí.

Anônimo disse...

O erro do ateísmo categórico, que afirma a inexistência do divino, é o mesmo do teísmo (e do deísmo e do panteísmo) categórico, que assevera a sua existência. Isto porque nem um nem outro podem provar o que quer que seja a esse respeito. Só o que podem é não crer ou crer no divino.

Anônimo disse...

Anonymous agnóstico:

Qualquer coisa que se afirme sem evidências não deve ser levado a sério, papai noel e os deuses primitivos são só exemplos extremos disso
Esse 'mundo além dos sentidos' é outro exemplo na mesma categoria, nenhum dos que falam isso tem prova nenhuma de que isso existe mesmo, nem são algum tipo de deus onisciente pra ver além dos sentidos, (até pq se vissem então não sería mais além dos sentidos) mas é a mesma coisa, é só um joguinho de palavras pra botar o deus das lacunas num lugar onde ele não possa ser questionado.

(obs, deus das lacunas = inicialmente os deuses eram os responsáveis por trovões, chuva, raios, etc, quando a ciência vai evoluindo a manifestação do poder do deus vai sendo jogada pras coisas que ainda não tem explicação,como é a física quãntica hoje, adorada pelos cabeça de maconha.Até que a ciência descubra um pouco mais sobre aquilo assunto.E aí ele passa a ser visto em outra coisa que ainda não tem explicação.E assim ele vai, de um buraco pra outro, incansavelmente)

Todo mundo é ateu, só que pra deuses diferentes.
ntsr

Anônimo disse...

'Carnaval é um grande negócio, ou não é? Se sim, não é o que vc mesmo defende: a supremacia do mercado e tal? Ou não?'

Esse é um ponto interessante.Pros liberais tudo é uma questão de tamanho do governo, tamanho do mercado, eu acho que as coisas são mais complexas, um mercado livre feito de gente burra vai ser um mercado burro
ntsr