terça-feira, julho 03, 2012

Memória traiçoeira

Rodrigo Constantino

A atriz Lizandra Souto e o ex-jogador de vôlei Tande se separaram, supostamente por causa de traição da parte dele (que nega veementemente os boatos). Em desabafo, a bonita atriz disse que Tande não foi um bom marido. Eles foram casados por 15 anos e têm dois filhos. Algumas pessoas alegam que é deselegante falar mal de alguém com quem se viveu junto por tanto tempo. Mas meu foco aqui é outro: o viés cognitivo de uma memória traiçoeira.

No excelente livro Thinking Fast and Slow, que pretendo resenhar em breve, o Prêmio Nobel de Economia Daniel Kahneman, especialista em economia comportamental, explica em um dos capítulos como nossa memória pode nos enganar e nos levar a decisões incoerentes. O livro todo, aliás, é uma bomba para a teoria das expectativas racionais, comum entre muitos economistas.

No capítulo "Two Selves", Kahneman separa a utilidade experimentada daquela lembrada no momento das decisões. Um experimento realizado por ele demonstra bem a diferença. Participantes foram divididos em dois grupos, e ficaram expostos a dor com uma das mãos mergulhadas em água gelada (14 graus). O primeiro grupo ficou primeiro exposto por 60 segundos, e depois de 7 minutos, por 90 segundos, sendo que nos últimos 30 segundos a temperatura da água subiu 1 grau, aliviando um pouco a sensação de dor. O outro grupo seguiu a ordem inversa.

Controlando o experimento para variáveis exógenas, cada grupo teve a opção de escolher qual experimento repetir uma terceira vez: o de 60 segundos ou o de 90 segundos. Os participantes sabiam que o tempo de cada um era diferente, e qual era o mais longo. Entretanto, 80% dos participantes escolheram repetir o experimento de maior duração! O que pode explicar isso?

Segundo Kahneman, e com base em outros experimentos, nós damos mais valor ao pico das sensações de prazer ou dor, e à lembrança mais recente da sensação. Se alguém sentiu dor por mais tempo, mas há mais tempo, então a tendência é lembrar da experiência como menos dolorosa do que alguém que acabou de sofrer. A duração da dor importa menos que seu pico ou quão recente ela foi.

O autor afirma que as memórias são tudo que nós temos de nossa experiência de vida, e que o "eu da memória" acaba sendo mais importante do que o "eu da experiência". Como nós lembramos das coisas faz toda a diferença do mundo. Confundir a experiência concreta com a memória que fica dela é uma ilusão cognitiva. Como a memória pode estar errada, mas é ela quem nos governa em nossas decisões, somos levados a fazer inúmeras escolhas erradas e incoerentes.  

E o que isso tudo tem a ver com Lizandra Souto e Tande? Tudo! No final de cada capítulo do livro, Kahneman coloca alguns comentários do cotidiano para reforçar a lição daquele capítulo. O exemplo deste capítulo em questão foi justamente o seguinte: "Você está pensando em seu casamento fracassado totalmente pela perspectiva do eu da memória. Um divórcio é como uma sinfonia com um som estridente no final - o fato de que acabou mal não significa que foi tudo ruim".

Alguém passa 15 anos compartilhando com o outro momentos bons e ruins, em intensidades diferentes. Mas dependendo do momento em que ele for questionado sobre a felicidade da experiência, a resposta poderá ser bastante diferente. Alguém que viveu mais momentos prazerosos, mas teve um pico elevado de sofrimento ou acabou de ter uma experiência negativa, poderá concluir que foi bem menos feliz do que outro que viveu um "inferno" constante, mas com picos de dor menos intensos e com a última semana razoavelmente feliz. Assim é o homem (e a mulher): vítima da memória míope e traiçoeira.


5 comentários:

Anônimo disse...

Essa experiência não é SÓ questão de memória, o sistema nervoso reage diferente às variações de calor na pele, quando o corpo sente muito frio a prioridade do organismo é aquecer os orgãos internos.
Conclusões sem sentido como essa são mais um motivo pra não confiar nas 'ciências' humanas.E é pior ainda quando elas tentam ganhar credibilidade usando uma ou outra gota do mundo da ciência real

rafernandes disse...

Rodrigo,

À respeito da frase "nós damos mais valor ao pico das sensações de prazer ou dor, e à lembrança mais recente da sensação" acho que a abrangência dela vai além da experiência relatada. O comportamento das pessoas quando questionadas mostra claramente que a lembrança mais recente é que prevalece. Exemplo típico é o dado por entrevistados, desde os amadores (transeunte entrevistado) até os profissionais (políticos na TV): se a pergunta é mais longa e envolve três ou mais questões superpostas, o entrevistado só responde à última. Até gente escolada e em situação de grande responsabilidade se comporta dessa maneira. É o caso, por exemplo, das arguições feitas no senado americano ao Bernanke onde os senatores, sempre colocando o exibicionismo acima do real interesse público, fazem perguntas intermináveis e a resposta do entrevistado vem, invariavelmente, focada na última frase.

Rodrigo Constantino disse...

Sim, isso serve para muitas coisas.

O cliente que exagera no elogio ao gestor porque ele teve um ano bom, ou o contrário, acha ele péssimo porque o histórico recente é fraco.

O eleitor que acredita que o governante é ótimo porque ele teve um mês bom, comprou um carro novo etc.

E por aí vai.

Anônimo disse...

Por essas e outras que Maquiavel, entre umas e outras, dizia que o bem de faz aos poucos ( e o mal de uma só tacada)...

Othon César disse...

Quem cursou administração em faculdade com certeza nas cadeiras relacionadas a recursos humanos teve que estudar métodos de avaliação de desempenho, e dentro deles, os fatores que influenciam o resultado desses métodos. Um destes fatores é justamente o que diz respeito à recência dos fatos. Por exemplo, um funcionário foi exemplar durante um ano inteiro, mas no último dia do ano esqueceu de entregar um relatório. O avaliador desse funcionário tenderá a avaliá-lo negativamente por causa desse fato recente, ignorando todo o seu histórico positivo.