segunda-feira, julho 23, 2012

Nêmesis

Luiz Felipe Pondé, Folha de SP

Nêmesis era a deusa grega da vingança. Ela tinha especial prazer em torturar heróis que caíam em "hybris" (desmedida) e pensavam ser outra coisa que mortais sob o domínio dos deuses e das moiras, senhoras divinas quase cegas que teciam o destino de todos.

Fosse eu religioso, minha espiritualidade seria a trágica dos gregos, apesar da grandiosa beleza do sistema bíblico. Não que eu ache "legal" o politeísmo, mas porque eu acho que a visão de mundo dos trágicos é a melhor. A piedade trágica, aquela despertada pela empatia entre nós e os infelizes heróis do teatro grego, é que levou Nelson Rodrigues a dizer que devíamos assistir ao teatro de joelhos.

A acusação feita aos trágicos é que eles negam o sentido último da vida, porque os deuses gregos eram uns loucos apaixonados e sem projeto moral para o mundo (o destino é sempre cego). Isso é verdade. O Deus de Israel, que para os cristãos encarnou no judeu Jesus, tem um projeto moral para o mundo, mesmo que não saibamos ao certo qual é. E isso nos acalma.

A tragédia marcou a cultura de forma profunda, os exemplos são inúmeros: Shakespeare, Gracian, Schopenhauer, Nietzsche, Camus, Cioran, Nelson Rodrigues, Philip Roth.

É desse último que quero falar hoje. Especificamente de seu livro mais recente, "Nêmesis", a história do jovem professor de educação física Bucky Cantor atravessando o grande surto de pólio nos EUA no verão de 1944.

Os heróis de Roth sempre são esmagados entre a vida pessoal, os vínculos afetivos e ideias, e grandes processos históricos ou "cósmicos" que têm um efeito aleatório na vida deles -e sempre destrutivo.

Como exemplos históricos, vemos a Guerra da Coreia, o macarthismo versus comunismo nos anos 1950 nos EUA, a contracultura, a canalhice do politicamente correto nas universidades americanas. Como exemplo cósmico, o envelhecimento, a perda das funções sexuais ou de memória, as pragas (como a pólio em "Nêmesis").

No caso desse romance, a praga da pólio ocupa o lugar de pragas atávicas que sempre significaram para nossos ancestrais a fúria dos deuses. E é contra Deus que Cantor se revoltará.

Mas Roth é um grande escritor, e a revolta do jovem Cantor será teologicamente sofisticada, e não mero ateísmo militante, porque o ateísmo militante é sempre infantil.

O cruzamento entre as intenções pessoais e o destino, histórico ou cósmico, dá o efeito de esmagamento e negação de projeto moral, na medida em que os heróis de Roth não conseguem discernir qualquer sentido que não seja a cegueira terrível do acaso ou o "terror da contingência", tal como diz o narrador de "Nêmesis".

A expressão "terror da contingência" é comum nos textos do historiador das religiões Mircea Eliade para descrever o que nos moveria ao desejo religioso de um sentido maior. Tememos o acaso porque ele nega qualquer providência sábia por trás das coisas. O acaso é cego.

Para Cantor, Deus é um "demiurgo". Essa expressão era comum em alguns textos heréticos do início do cristianismo (textos gnósticos) e significava que Deus é mal. E se Deus for mal, não há qualquer esperança.

Mas o narrador do romance pensa diferente. Sua hipótese sobre a vida e as decisões que Cantor tomará é mais psicanalítica (ele sofreria de uma "neurose de responsabilidade"), mas nem por isso menos teológica. Para o narrador, Cantor é excessivo em julgar a si mesmo responsável pela desgraça que destrói seus alunos. E por isso sofrerá, porque nenhum homem pode se julgar senhor do destino, já que esse não nos pertence.

Como a deusa em questão é a da vingança, Nêmesis, a desmedida de Cantor em se julgar responsável pelo destino de seus alunos será vista de outra forma: Cantor se julga um justo e um dedicado professor e, por isso, pagará um preço alto pela autoimagem de homem reto. Aí está sua desmedida.

Cantor é o Jó de Roth (o judeu Levov, protagonista de "Pastoral Americana", é outro Jó de Roth): Cantor e Jó se julgam justos. Mas Cantor é um Jó que não encontra, ao final, a piedade de Deus, mas a vingança de uma deusa cega à misericórdia.

4 comentários:

João Emiliano Martins Neto disse...

Cada um tem o deus que merece. Se pessoas como Nélson Rodrigues (de joelhos), o personagem Cantor e Pondé preferem a (im)piedade(osa) trágica grega, então, merecem algo de glacial, implacável, incompreensivo e inexorável em qualquer momento de clímax ou decisivo em seus dramas existenciais.

Anônimo disse...

"O Deus de Israel, que para os cristãos encarnou no judeu Jesus, tem um projeto moral para o mundo, mesmo que não saibamos ao certo qual é."

O autor devia dizer "EU não sei qual é", pois existe vasta literatura a respeito!

"Tememos o acaso porque ele nega qualquer providência sábia por trás das coisas. O acaso é cego."

O acaso não importa, mas sim nossas reações a ele. A tragédia é apenas uma manifestação/consequência (temporária) de ignorância.

João Emiliano Martins Neto disse...

Creio que o "projeto moral" de Deus para o mundo foi o Senhor Jesus quem o disse, quando perguntado revelou que é crer em quem o Pai enviara para tirar o pecado do mundo e serem justificados. Apenas crer em Jesus eis o projeto de Deus para o mundo.

No fundo Pondé tenta discernir coisas espirituais através de sua mente carnal, por isso o Cristianismo a esse filósofo é confuso, moralista, polissêmico, equívoco e quejandos.

samuel disse...

O Cristianismo reinventado por Martinho Lutero, Calvino, é muito mais sadio pois trás ao primeiro plano a responsabilidade do indivíduo perante seu destino. O cristianismo original, católico ofuscou este ponto fundamental ao homem na construção de seu destino.