terça-feira, fevereiro 14, 2012

Hobbes na Bahia

João Pereira Coutinho, Folha de SP

Sazonalmente, o Brasil arruína-me. Acontece quando a desordem se instala nas ruas do país e eu passo horas ao telefone a falar com amigos ou colegas sitiados em suas casas. Anos atrás, quando o Primeiro Comando da Capital tomou literalmente conta de São Paulo, minha conta de telefone furou a estratosfera.

O mesmo sucedeu agora com a greve policial na Bahia, que permitiu o velho cortejo de crimes e pilhagens que fazem parte do circo. Telefonei, confirmei. Todos os meus amigos estão bem, obrigado.

Eu é que não estou: primeiro, já pensei seriamente em enviar a conta do telefone para os grevistas do Estado. Eles que paguem a despesa dos meus cuidados.

E, depois, porque sou obrigado a concordar com Thomas Hobbes (1588-1679), um filósofo político inglês com quem mantinha uma relação de amor e ódio. Não mais.

O ódio era compreensível: sempre que lia "Leviatã" (1651), a minha costela libertária tremia um pouco. Não que tenha uma visão otimista sobre a natureza humana.

Deus me livre e guarde. Essa, curiosamente, é a minha principal discórdia com os libertários puros e duros: eles têm uma insensibilidade ao "problema do mal" que os remete para companhias ideológicas pouco recomendáveis.

Mas, apesar de tudo, a ideia hobbesiana de um poder soberano indivisível e indiscutível, que exige uma submissão quase total dos seus súditos, sempre me pareceu a receita perfeita para a tirania.

Como é evidente, leituras apressadas geram conclusões apressadas. É possível ler Hobbes com umas lentes ligeiramente mais "liberais".

Para começar, entender a vida de Hobbes é entender parte da sua filosofia política: nascido em Londres, ele testemunhou a Guerra Civil Inglesa que levou à execução do rei Charles 1º. Não admira que a paz, a segurança e a ordem tenham sido suas preocupações permanentes.

Aliás, não apenas dele: partindo da sua experiência pessoal -ou, melhor dizendo, das suas "sensações" pessoais-, Hobbes chegou rapidamente à conclusão de que a primeira paixão dos homens é a mais lúgubre de todas: temos medo da morte. O que significa que a preservação da vida deve ser a base de qualquer "contrato social".

No "estado de natureza", a vida é "solitária, pobre, sórdida, brutal e curta". Não porque exista uma malignidade metafísica na alma da raça; mas porque, muitas vezes, a minha paz exige um estado permanente de guerra. Eu mato para não ser morto. Eu roubo para não ser roubado. Etc.

O Estado é esse agente supremo que os indivíduos resolvem dar a si próprios para protegerem a sua vida e, nos casos em que a lei é omissa, a sua própria liberdade.

É o Estado -a força do Estado- que modera as vaidades, as ambições e os orgulhos dos homens; é ele quem garante esse mínimo de ordem sem o qual a liberdade natural dos indivíduos tem pouco ou nenhum valor substancial.

Hobbes está certo: quando olhamos para zonas de conflito no mundo, podemos debater as causas econômicas e sociais que explicam os morticínios; ou podemos, no caso brasileiro, discutir a duvidosa legalidade das greves policiais ou os falhanços da política nacional de segurança pública.

Mas existe uma discussão prévia que nos remete para Thomas Hobbes: poderá existir vida em sociedade sem que o Estado detenha o "monopólio da violência" (expressão do sociólogo Max Weber) de forma a impedir a metastização da violência pela sociedade?

Ou, pelo contrário, a ausência do Estado, esse velho sonho de anarquistas e libertários, pode jogar-nos de volta para uma selva de medo e abuso?

A resposta de Hobbes é clara: sem Estado, a selva é o nosso destino. E, se é verdade que o Estado foi, muitas vezes, um agente de violência ilegítima e desumana sobre os cidadãos, não era esse o Estado que Thomas Hobbes pretendia.

Lendo os seus textos, encontramos os instrumentos básicos para pensar um Estado democrático, legítimo, defensor da vida humana -e, pormenor fundamental, respeitador da intimidade dos indivíduos.

Desprezar Hobbes só é possível por deficit de conhecimento e excesso de segurança. Mea-culpa.

8 comentários:

Anônimo disse...

http://www.noticiasautomotivas.com.br/ford-edge-2012-dilma-se-defende-com-10-exemplares-blindados/

Anônimo disse...

Os anarquistas que se mandem pra ilha artificial deles no meio do nada.
Não é estranho tanta gente dar tanta atenção pra esses lunáticos? Eu mesmo sou culpado disso, e vejo que não ganhei absolutamente nada.

andré disse...

Grécia caiu 7% no 4° trimestre. E foram vários pacotes de austeridade fiscais aprovados, como vc e sua escola austríaca defendem. E até agora ? Resolveu ? Não. Mas até já sei sua desculpa : " no longo prazo irá melhorar !!!! " . "Um dia talvez, quem sabe " !!!

Glaucio disse...

vamos ver se entendi: O estado desarma o cidadão de bem. Os bandidos continuam armados e nao vao se desarmam pq o estado "pede". O estado retira a "proteção" ao cidadão. Os bandidos sabendo que os homens de bem estão indefesos, saem e fazem o que querem. e agora vc dizem que Hobbes está certo!!! Como seria a greve na Bahia se todos os homens de bem pudessem porta arma? Haveria algum bandido louco o suficiente para tentar assaltar um onibus com 43 trabalhadores armados? Eles seriam muito menos ousados e a barbarie nao aconteceria. A culpa da barbarie é do estado por ter desarmado o cidadão.

Anônimo disse...

"sem Estado, a selva é o nosso destino": o Brasil criou novo conceito: o Estavo-Selva.

Anônimo disse...

'E foram vários pacotes de austeridade fiscais aprovados, como vc e sua escola austríaca defendem.'

Se fosse pra culpar a escola Austríaca ela(grécia) devia estar seguindo desde o começo e nem essa aberração chamada euro existiria

Anônimo disse...

Hobbes sempre esteve certo.Só os anarco capitalistas que são estúpidos o suficiente pra querer acreditar que não.

Anônimo disse...

A função precípua do Estado é a segurança (externa e interna). Mas isso não quer dizer que o cidadão não possa se armar para sua autotutela preventiva, pois o agente estatal nem sempre está presente para coibir o crime. O chamado "monopólio da força" pelo Estado não significa negar ao cidadão o direito à autodefesa, quando em risco sua vida, sua integridade física ou de outros cidadãos. A expressão tem o sentido de que não não se pode dar aos cidadãos o direito ao exercício arbitrário das próprias razões (fazer justiça com as próprias mãos), o exercício da vingança privada. Autodefesa e vingança privada são coisas inteiramente diferentes.

Portanto, a autodefesa pode e deve existir ao lado do "monopólio da força pelo Estado", posto não serem incompatíveis.