quinta-feira, setembro 27, 2007

A Libertação do Homem


Rodrigo Constantino

"A vida não examinada não vale a pena ser vivida." (Sócrates)

Um dos grandes filósofos ingleses que enriqueceram o debate de idéias no século XX foi Michael Oakeshott, que demonstrou interesse por diversos assuntos, como política, história, educação e religião. Sua obra sobre filosofia política, On Human Conduct, parte da premissa de que a ação humana é um exercício de inteligência em atividades de escolha, mostrando semelhança em vários aspectos com a obra-prima de Mises, Human Action. Aqui o foco será seu texto sobre a educação liberal, A Place of Learning, onde ele mostra que o homem é aquilo que aprende ser, através da própria reflexão num ambiente favorável ao aprendizado.

A mente é a atividade inteligente pela qual o homem pode compreender e explicar processos, é a autora não apenas do mundo inteligível onde os homens vivem, mas também de sua relação autoconsciente com este mundo. O homem é livre para buscar este autoconhecimento, sendo responsável por seus pensamentos e ações. A possibilidade de ser inteligente abre espaço para a possibilidade de ser estúpido, e talvez isso afaste tantos dessa busca pelo conhecimento, levando-os à crença de algum determinismo qualquer como fuga. Mas os homens não podem alegar que suas palavras são colocadas em sua boca por algum deus ou que não passam de descargas elétricas do seu cérebro: elas têm significados pelos quais cada um é responsável por julgar se faz ou não sentido. A simples tentativa de fuga expõe sua impossibilidade, já que somente a mente pode se arrepender por ter que pensar. A liberdade de pensamento exige a responsabilidade pelo que se pensa.

Para Oakeshott, o que distingue um ser humano, o que constitui um ser humano são seus pensamentos, crenças, dúvidas, sua compreensão da própria ignorância, seus desejos, preferências, escolhas, sentimentos, emoções e propósitos, assim como a expressão deles através de suas ações. A condição necessária para tudo isso é que o homem deve aprender tais coisas. Ele diz: "O preço da atividade inteligente que constitui o ser humano é aprender". E este aprendizado necessário é algo que cada um de nós deve e só pode fazer por conta própria. O aprender humano é bem diferente do processo natural de adaptação de organismos como reação ao meio-ambiente e às circunstâncias. Não é um aprender passivo, mas um compromisso autoconsciente. Não é uma reação induzida pela pressão externa, mas uma tarefa auto-imposta inspirada pela noção da própria ignorância e de quanto há para aprender. É um desejo pela compreensão. Para um ser humano, então, aprender é um compromisso por toda a vida, e o mundo onde ele habita é o local de aprendizado.

Uma grande parte da conduta humana é direcionada à exploração de recursos no planeta para a satisfação de desejos e necessidades. Esse aprendizado é individual, sempre. Não é uma abstração chamada "Homem" que pode realizar a cura de uma doença, por exemplo, mas algum médico individual que aprendeu com alguns professores a tarefa em questão. Oakeshott afirma que não há algo como "aprendizado social" ou "compreensão coletiva". São indivíduos que aprendem. Oakeshott reconhece a importância deste tipo de aprendizado, mas está muito mais preocupado com outro tipo, qual seja, as aventuras no autoconhecimento humano. A isso ele chama de "educação liberal", pois está liberada da distração dos negócios que buscam a satisfação das demandas imediatas. Sua compreensão da liberdade decorre da visão de que o homem não está condenado à "dança macabra das necessidades e satisfações". A vida não se resume a "obter e gastar". Não estamos presos intelectualmente ao aqui e agora.

Eis onde entra o fundamental papel da cultura, segundo Oakeshott. O autoconhecimento humano seria inseparável do aprendizado na participação daquilo chamado "cultura", ou seja, uma continuação de sentimentos, percepções, idéias, compromissos, atitudes etc. Não faz sentido, para o filósofo, falar em homem "culturalmente condicionado", já que o homem é sua cultura, e aquilo que ele é ele teve que aprender a ser. O aprendizado liberal é aprender a responder aos convites das grandes aventuras intelectuais nas quais os seres humanos expuseram suas várias compreensões do mundo e de si mesmos. A cultura não seria, então, uma miscelânea de crenças, percepções e idéias, mas pode ser reconhecida como uma variedade distinta de línguas de compreensão. Oakeshott faz uma analogia com vozes, como se cada componente cultural desses fosse uma expressão diferente de uma compreensão de mundo, um idioma diferente, e a cultura seria a união dessas vozes, como numa conversação.

Existem constantes ameaças a esta educação liberal. Uma delas vem da "socialização" do aprendizado. Trata-se de uma doutrina que, porque o aqui e agora está cada vez mais uniforme do que já foi, defende que a educação deve reconhecer e promover essa uniformidade. Para Oakeshott, esta á uma das mais insidiosas de todas as corrupções, pois ataca o cerne do aprendizado liberal. O mundo moderno estaria repleto de acontecimentos, mas não muitas experiências memoráveis. Seria um fluxo contínuo de trivialidades sedutoras que não invocam reflexão, mas participação instantânea. As pessoas pulam de uma conformidade da moda para outra, de um guru do momento para o próximo. Há a repetição de slogans e "pontos de vista" embalados de forma profética, mas sem embasamento. Os ouvidos estão cheios de sons na Babel atual, convidando às reações instintivas.

É importante lembrar que Oakeshott escreveu esse artigo em 1975, época em que as universidades estavam vivendo uma grande transformação neste sentido de busca pelo interesse imediato, pela necessidade da profissão, mesmo em sua London School of Economics, na qual era professor. Mas o alerta continua válido, talvez mais que nunca. Essas circunstâncias são hostis à educação liberal, aquela que desamarra o indivíduo das necessidades urgentes do aqui e agora, levando-o a escutar a conversa na qual os seres humanos desde sempre buscam se compreender enquanto humanos. A busca pelo conhecimento prático é crucial para reduzir o desconforto dos homens na natureza. Os ganhos materiais advindos do avanço no conhecimento humano são fantásticos, e devem ser comemorados, sem dúvida. O progresso da medicina, por exemplo, permitiu que a expectativa de vida dobrasse em poucos séculos. Mas não podemos deixar de lado a questão essencial: qual vida?

Os seres humanos não são máquinas que processam alimentos com o único objetivo de sobreviver e procriar. Somos capazes de muito mais que isso. Oakeshott tentou nos lembrar justamente disso, combatendo o materialismo excessivo da modernidade. A libertação do homem vem através desta busca pelo autoconhecimento. Sem isso, somos apenas símios repetindo gestos de forma automática. Oakeshott reforça, então, a lição socrática exposta na epígrafe. Devemos sempre examinar qual vida desejamos viver.

2 comentários:

Anônimo disse...

Sobre o seu texto em que você enaltece Herbert Spencer, bem, saiba que esse darwinista-social defendeu rédeas soltas da violência da natureza contra os fracos. Uma sentença famosa da sua autoria: "os que são capazes de viver, viverão, e é 'justo' que vivam; os que não são capazes de viver morrerão, e é 'justo' que morram". Você concorda com isso?

São os homens fracos que, lutando contra a sua própria fraqueza, defendem coisas desse tipo, valendo-se de um mecanismo de defesa do ego que Freud denominou de "formação reativa". Nietzsche, por exemplo, era um fracote, um inepto celibatário incapaz de procriar. Mesmo assim, criou o mito do super-homem.

Outra coisa: se você quer ser respeitado como intelectual, então pare com essa mania de antinomias, supere esse maniqueísmo, esses "ou...ou" (p.ex., ou a liberdade individual ou a escravidão. Mesmo que a vida fosse um filme em preto e branco, existiria entre os extremos matizes, mediações, uma vasta gama de nuanças, do cinza claro ao escuro. Você é capaz de compreender isso?

Abraço.

Gerhard Erich Boehme disse...

Lamentável este comentário, sob todos os sentidos, mostra o desconhecimento de um princípio fundamental que é o princípio da subsidiariedade, bem como um dos compromissos dos liberais, que é o de atuar sobre as externalidades negativas.

Bens públicos têm como característica essencial a impossibilidade de limitar o seu uso àqueles que pagam por ele.

Devemos entender que é prioritário o investimento em saúde pública e educação fundamental, pois são serviços cuja provisão também deve ser garantida subsidiariamente pelo Estado, apesar de que a melhor solução provavelmente se encontra no financiamento a cada contribuinte para aquisição desses serviços, seja diretamente ou através de entidades cooperadas, privadas ou confessionais e não na prestação direta do serviço pelo Estado, sempre em fiel observância ao Princípio da Subsidiariedade. Os gastos estatais nesses setores se justificam porque geram externalidades positivas para a sociedade, que se beneficia de uma população educada e sadia, benefícios estes que não poderiam ser individualmente apropriados por investidores privados.
Além disso, existe um argumento normativo: os gastos nessas áreas reduzem as diferenças de oportunidade dos indivíduos no momento da partida do jogo social, para que a partir daí a competição ocorra baseada nos talentos e méritos de cada um.

O texto do Rodrigo Constantino merece elogios, e digo mais, deveria ser de leitura obrigatória de todos que efetivamente querem mudar o nosso país.

Gerhard Erich Boehme
gerhard@boehme.com.br