segunda-feira, fevereiro 27, 2012

O fio de cabelo de uma mulher

Luiz Felipe Pondé, Folha de SP

Dias atrás escrevi que não me preocupo com a África nem com as baleias nem com você. Pânico na bancada da classe média...
Muita gente pergunta o que eu queria dizer com isso. Uma pessoa se indignou porque eu tive a ousadia de dizer que ele não era objeto de minha preocupação.
Se ele me lê, pensa ele, devo me preocupar com ele. Ele, ele, ele. Não. Sou indiferente a sua necessidade de autoestima.
Só levo a sério um argumento como este (quem me lê deve ser objeto de minha atenção) se nele estiver em jogo as leis de mercado e olhe lá. Mas pessoas indignadas normalmente acham que seus sentimentos morais são infinitamente mais caros do que as leis de mercado. Eu, de minha parte, sei que minha fisiologia é parte das leis de mercado.
Assim como a prostituta é a primeira e a mais sublime vocação de toda mulher, afirmo: sou lido, logo existo. Saber que eu tenho um preço é uma das formas mais belas de libertação que conheço.
Mas a queixa de nosso mal-amado está longe disso. É a queixa de um indignado com a maturidade.
Se Freud já dizia que pessoas adultas são uma raridade, hoje ficaria chocado com o fato de que infantilidade se tornou um direito de todo cidadão.
A maior desgraça da democracia, dizia Nelson Rodrigues, é que ela traz à tona a força numérica dos idiotas, que são a maioria da humanidade. Aceitar a idade adulta hoje em dia é tão raro como a virtude de uma mulher que bebeu vinho demais no jantar.
Aliás, devo pedir perdão às mulheres "fáceis", por compará-las a tão miserável condição: a recusa da maturidade.
Ainda bem que nem todo mundo que me lê ou me conhece depende de mim para se sentir amado, porque, antes de tudo, amo muito pouco. E, com os anos, menos ainda. O deserto pode ser uma graça.
Dou hoje uma indicação para os adultos que me leem. "Adulto" aqui, como sempre, não tem a ver com a data de nascimento no RG. Já vi pessoas muito jovens serem capazes de suportar "a hostilidade primitiva do mundo" ("Mito de Sísifo", outro livro de Camus) sem reclamar da gloriosa indiferença do Sol.
Assista à bela e econômica montagem do "O Estrangeiro", uma adaptação feita pelo dinamarquês Morten Kirkskov do livro com o mesmo nome do francês Albert Camus. Ela está em cartaz, até 4/3, no Teatro Cacilda Becker, com Guilherme Leme e direção de Vera Holtz. Uma pérola discreta, como deve ser tudo o que tem valor.
O estrangeiro da história, Meursault, vive em Argel, Argélia (país de Camus). Ele mata um árabe e é preso. Dias antes, sua mãe morrera. Ele não chorou no enterro.
Para muita gente, assim como para o promotor que condena Meursault, não chorar na morte da mãe é prova cabal de "ter o crime no coração" (antes mesmo de ele matar um "homem qualquer"), e é, portanto, o ato de um niilista.
Por isso, o promotor diz que Meursault tornou possível o parricídio ao ser julgado no dia seguinte, e, por isso mesmo, deveria ser julgado por ambos os crimes. Para o promotor, não chorar a morte da mãe é abrir as portas para o parricídio.
O fato de, no dia seguinte à morte da sua mãe, ele ter se deliciado, na praia, nos braços de uma mulher, Marie, cheia de amor para dar, era evidência de sua desumanidade. Pior: fora ao cinema com ela para ver uma comédia.
Vê-se que Camus era um apreciador do sexo frágil (coisa cada vez mais rara) na forma como descreve Marie, linda, cozinhando sua comida, de vestido solto e listrado, enchendo sua vida de desejo, com os cabelos caindo nos ombros. Marie usava aquele tipo de vestido de verão solto, que permitia Meursault tocar, como se fora seu dono, o calor úmido entre suas pernas.
Mas o promotor está enganado. Chorar no enterro da mãe pode ser tão falso como as indignações de hoje em dia.
Como diz Meursault ao padre: "Sua religião não vale um fio de cabelo de uma mulher". Em meio à "doce indiferença do mundo", o desejo por uma mulher pode ser mais difícil do que chorar a morte de uma mãe "distante".
Concluo, com uma ponta de dor, que sou da raça de Meursault.
Prefiro a hostilidade primitiva do mundo e mulheres fáceis com vestidos de verão.

7 comentários:

Anônimo disse...

Texto excelente!
Franco e corajoso.

De fato no caminho de se tornar um grande articulista, em algum momento o autor tem mesmo que desprezar lugares-comuns, adulações baratas e a sabedoria (ou ignorância) convencional.

Parabéns!

Rodrigo Constantino disse...

O artigo não é de minha autoria, mas sim de Pondé, respeitado filósofo que escreve às segundas na Ilustrada da Folha de SP.

Anônimo disse...

O respeitado sente uma necessidade tão grande de dizer que não sente muito por sua mãe (como ele mesmo afirmou, uma puta), e por nós... por que essa necessidade, essa preocupação?.. alguém achou o que ele havia escrito ofensivo? digamos prá ele não ligar prá torcida, seguir o caminho dele, ser ele mesmo, feliz...

Anônimo disse...

Rodrigo, não havia percebido que o texto não era de sua autoria, apesar de agora eu ter reparado a menção ao autor, logo no início do post.

Meus parabéns para o texto vão, então, para seu autor.

Ainda assim por favor aceite minhas congratulações também pelos textos de sua autoria. Noto que você vem ganhando consistência e musculatura para polemizar com elegância e jogar um pouco de luz sobre as trevas da mediocridade editorial na imprensa brasileira atual.

Dessa forma, os elogios que fiz a Pondé posso fazer a você também.

Notei o mesmo tipo de coragem em seu último artigo sobre o lixo editorial atualmente vendido no Brasil.

O verdadeiro articulista tem que se expressar com franqueza, doa a quem doer. É cada vez mais comum observarmos a pasteurização da imprensa, com as notícias sendo veiculadas e reproduzidas de forma padronizada e sem nenhum tipo de crítica. Exatamente como aquelas notícias que passam em TV de elevador.

Os Blogs autorais, como o seu, são os últimos oásis, onde podemos ler textos realmente significativos sobre o que se passa no país.

Obrigado por seu trabalho e boa luta!

Anônimo disse...

Este é o tipo de texto que quando leio percebo que há profundidade, raciocínio e sagacidade argumentativa. Ufa é uma raridade ler algo assim. Hoje em dia tudo está tão raso, e imediatista.

Pondé, eu também descobri que tenho um preço e apesar disso chocar minha moral infantilizada e catolicista é libertador pensar nessa possibilidade. Mesmo sabendo que dificilmente teria coragem de faturar imprimir a fatura.

att,
River

Anônimo disse...

http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1055321-juiz-recorre-a-biblia-para-negar-indenizacao-por-espera-em-banco.shtml

Anônimo disse...

..."lagrimas e chuva molham o vidro da janela mas ninguém me veeeeeeeeeeeeee..."


Mônica - Itaperuna RJ