segunda-feira, abril 09, 2012

O espírito da BMW

(Abaixo vai minha segunda tentativa de escrever um conto, após "Sinais". Claramente sou atravessado pelo tema, criando o fantástico como fuga para a realidade, quase sempre menos interessante. Espero que gostem, e sejam obsequiosos no julgamento)

Rodrigo Constantino

Era uma noite quente de março, com fortes rajadas de vento e nuvens carregadas prenunciando o temporal iminente. João havia trabalhado até tarde aquele dia, finalizando o relatório sobre sua última viagem de negócios. Seus olhos avermelhados imploravam por descanso, e sua cabeça igualmente solicitava uma parada merecida. Ele olhou o relógio. Já passava das 21:30, e o escritório não tinha mais vivalma. Era tudo um breu só, à exceção de sua mesinha, com o brilho da tela do computador servindo como única fonte de luz no recinto.

João afastou o teclado do computador e reclinou sua cadeira, colocando os pés em cima da mesa. Sem saber ao certo o motivo, colocou-se a pensar em sua avó, já falecida havia um par de décadas. Ficou curioso com estas lembranças, uma vez que levava uma vida tão atarefada que raramente se entregava a estes momentos nostálgicos. Sua avó Nilza, então, dificilmente era tema de suas memórias esporádicas sobre aqueles anos enterrados no passado. Sua infância, na casa 34 da Rua José Bezerra em Grajaú, bairro pobre de São Paulo, não foi fácil, e João não fazia muito esforço para rememorar aquela época. Por isso o espanto.

Após estas estranhas reminiscências, João sorriu, um tanto confuso, e decidiu que já era hora de partir para um justo descanso em sua casa. Desligou o computador, passou a chave na porta e pegou o elevador até a garagem. Lá o aguardava seu novo objeto de gozo fálico, o ícone dos novos tempos em que a pobreza da infância não passava de uma distante lembrança. Tratava-se de seu novo sedã de marca importada, cor prata reluzente, e o mais importante de tudo: com um sistema de multimídia de dar inveja ao melhor home theater da cidade.

Era hábito muito recente de João voltar para casa assistindo a novela em sua enorme televisão estampada bem ao centro do painel de madeira perolizada. Na verdade, esta era sua terceira noite nesse novo esquema, que regozijava João, nunca com tempo para as frivolidades noveleiras que todos comentavam nas horas de almoço do trabalho. Antes ele se sentia excluído, antissocial, mas agora ele podia fazer um ou outro comentário sobre os principais personagens da novela, apesar de não demonstrar apreço sincero pela trama banal.

A novela contava a história boboca de uma menininha que via espíritos bondosos e conversava com eles. João não tinha visto mais que três capítulos, mas inferiu que era o suficiente para conhecer o enredo todo. O mais enfadonho para João era o apelo sensacionalista e religioso. Um ateu convicto, João era cético em relação a tudo, especialmente a estas crenças religiosas que claramente existiam como amuletos e consolos para gente sofrida e desesperada.

Ele não conseguia esconder seu tédio ao ver aquelas cenas tolas, mas insistia heroicamente na tarefa por causa das sonhadas amizades no trabalho. Afinal, João era tido como um solitário estranho, excêntrico até, e sempre teve dificuldade de se entrosar naturalmente com as outras pessoas. Era tempo de mudar isso, e ele estava disposto ao sacrifício. Nem que fosse preciso aguentar alguns minutos daquela baboseira toda.

Distraído com uma das cenas mais estúpidas, em que a menina mediúnica conversava com um espírito todo de branco que emanava uma forte luz, João nem notou quando um carro preto encostou ao seu lado e a motorista, uma mulher na casa dos 40 anos, gesticulou algo na tentativa de chamar sua atenção. Após alguns segundos, aqueles braços em movimento acabaram por formar uma imagem monolítica que o campo de visão de João não podia mais ignorar. Dando-se conta de que era com ele, voltou seus olhos naquela direção, e viu o sinal que a mulher fazia para que ele abaixasse o vidro.

Sempre desconfiado, conhecedor das inúmeras histórias originais de assalto na cidade, ainda mais sendo aquilo o Rio de Janeiro e não uma Suíça, João levou mais alguns segundos pensando no que fazer. Estavam parados no sinal, e ele observou pelo retrovisor que não havia perigo aparente, nenhuma moto se aproximando ou um transeunte perto do carro. Resolveu arriscar e abaixou seus vidros escuros, achando que provavelmente a mulher queria alguma informação de endereço ou algo assim. Foi quando passou pela situação mais inusitada de sua vida.

A mulher simplesmente quis saber se poderia fazer uma pergunta a João, que não soube direito o que dizer. Descendo e subindo a cabeça de forma lenta e automática, bastante desconfiado, João aguardou a pergunta com certa ansiedade. Foi quando a mulher jogou a bomba, ao proferir as seguintes palavras: “Você acredita em Deus?”

Aquilo não fazia o menor sentido! Como assim, alguém travar contato no meio do trânsito só para perguntar uma coisa dessas? João, meio paralisado, com um esboço de sorriso nervoso no rosto, disse que não, sem saber ao certo o que esperar daquele encontro maluco. O que veio em seguida fez daquela experiência uma das mais intensas de sua vida. A mulher, com uma cara séria, fulminou: “Pois eu sou espírita. Tem certeza que não acredita em Deus?”

Totalmente incrédulo com aquela cena absurda, João repetiu que não. O sinal ficou verde, e ele viu o carro preto arrancar, cruzando para o outro lado da larga pista em disparada. Conseguiu identificar a marca, uma BMW, e também pegou a placa do veículo. Foi um ato instintivo, pois João não raciocinava direito. Um arrepio tomou conta de todo seu corpo quando ele percebeu a incrível coincidência, por causa da cena que acabara de assistir na TV do carro. Tudo era surreal demais. Seria aquilo um sinal divino?

O lado cético de João logo se pôs a funcionar. Alguns psicólogos chamam isso de racionalização. Mas o fato é que João queria eliminar qualquer possibilidade paranormal para aquilo que acabara de vivenciar. Ele parecia disposto a comprovar – ou se convencer – que tudo não passava de um acaso, um estranho acaso. Passou por cada hipótese possível, mas sua própria lógica derrubava uma a uma.

Ela poderia ter visto a mesma cena em sua TV, e de alguma forma inferido que ele não apreciava em absoluto aquela baboseira? Não era possível, pelo ângulo do carro dela, e principalmente pela sua película escura colada nos vidros. O que então? Talvez alguma teoria científica de universo paralelo? Não, isso era ainda mais ridículo do que o espiritismo. Quem sabe um fluxo de energia, que pessoas mais sensíveis podem captar? Ou será que ele era um esquizofrênico que via coisas que não existiam?

João ficava mais tenso a cada nova tese patética que sua mente cética criava para fugir daquela experiência nova, onírica, que lhe abria um novo universo à frente. Ele sabia muito bem o que tinha visto. Ele também sabia perfeitamente que era impossível alguém conseguir ver sua TV de fora, e ainda por cima entrar em seus pensamentos para ler sua reprovação. O que tinha ocorrido, afinal? Será que o cético teria de sucumbir ao paranormal, e aceitar que entre o céu e a Terra há mais que nossa vã filosofia pode compreender, como alertava o bardo?

Homem que não se entregava facilmente, João estava determinado a seguir os rastros daquela BMW e averiguar melhor essa história louca. Ele agradecia o instinto que lhe logrou obter aquela placa. Era mais que uma pista: era o que ele precisava para encontrar a mulher misteriosa e passar a coisa toda a limpo.

Mal chegou em casa e foi direto para o computador, sem sequer dar boa noite a sua mulher. Entrou no site do Detran e digitou a placa no espaço de busca. Nada. Deu-se conta então de que a placa não era do Rio. Sem acesso ao Detran de outro estado, teria que aguardar até a manhã do dia seguinte, quando poderia solicitar a sua colega de trabalho, cujo pai trabalhava no Detran, o favor de encontrar o proprietário de um carro. Inventaria alguma desculpa qualquer, diria talvez que o carro em questão tinha batido no seu e fugido, pensaria em algo. Mas a espera é que o mataria. Oito horas até o batente. Era o tempo de sua angústia, até desvendar tudo e retornar à segurança de seu mundo previsível e científico.

Passou a noite sem pregar direito os olhos, naturalmente. Aquele rosto, aquela pergunta, aquela sensação estranha que tomara conta de seu corpo, tudo vinha à tona durante o sono leve, e João acordava suando de hora em hora. Mas se convencia de que logo encontraria uma explicação razoável para aquela maluquice aparente. Só mais algumas horas...

O sol raiou, e João nem precisou do alarme programado no despertador para levantar. Já estava no banho, e em poucos minutos engolia a fatia de pão, bebia o café e tomava o rumo do escritório. Lá chegando, ainda teve que esperar outros 40 intermináveis minutos pela atrasada colega. Assim que esta colocou os pés no escritório, João pediu dois minutinhos de seu tempo, em tom conspiratório, e puxou a colega para uma sala de reuniões.

Deu sua versão mentirosa, explicou que era muito importante saber ao menos o nome da motorista, e que se fosse possível ter também seu endereço, o que ele reconhecia ser um pouco demais para pedir como favor, ele seria eternamente grato. Ela prometeu ajudar, e disse que o faria imediatamente, pois para seu pai isso era moleza, coisa de um clique e pronto. Talvez ela tivesse notado o nervosismo atípico que a voz de João traía. Pediu para ele aguardar alguns minutos, e falou que mandaria os dados solicitados pelo email tão logo os recebesse.

Nos 15 minutos seguintes, João não conseguiu trabalhar. Fingia que lia um relatório, mexia no mouse, mas não tirava os olhos daquela caixa de entrada, obcecado com um único remetente. Foi quando piscou em negrito a mensagem com o título Detran. João mal simulou sua ansiedade, respirou fundo e clicou no email. Ele poderia finalmente encerrar o mistério e regressar ao mundo da razão. Leu cada palavra com total atenção e os músculos do corpo retesados. Precisou reler letra por letra. Seu cérebro não acreditava no que seus olhos enxergavam. A mensagem dizia:

Proprietário: Nilza.
Endereço: Rua José Bezerra 34, Grajaú - SP.

8 comentários:

Anônimo disse...

Ruim. Os sinais ficou melhor. Previsível e risível.

Eronildo Aguiar disse...

Rodrigo, li seu artigo sobre o livro do Marcel. Gostei, e até entendo seu ceticismo. De certa maneira, também fui cético rs rs. Caso se interesse mais pelo assunto, sugiro a leitura do livro de William Crookes (1832-1919). Físico e químico inglês. Famoso pela descoberta do tálio e a invenção do tubo de raios catódicos que leva seu nome.

Livro para ler no site (em inglês)
Researches in the phenomena of spiritualism ( 1874) - original
http://www.archive.org/stream/researchesinphe01croogoog#page/n4/mode/2up

Livro em PDF para baixar (em inglês)
Researches in the phenomena of spiritualism ( 1874) - original
http://ia700303.us.archive.org/9/items/researchesinphe01croogoog/researchesinphe01croogoog.pdf

Fatos Espíritas - William Crookes (versão em português)
http://www.4shared.com/office/7heXWgvQ/CROOKES_William_-_Fatos_Esprit.html

Outro livro interessante, para quem é cético é: A Grande Síntese, de Pietro Ubaldi. Leia algumas opiniões sobre esta obra:

"É Admirável a força da linguagem e a vastidão dos assuntos tratados em A GRANDE SÍNTESE".

Albert Einstein

"Para quem conhece pouco ou nada de química, é verdadeiramente surpreendente, porque os conceitos emitidos são realmente científicos e, portanto, de um profundo conhecedor de química."

(Prof. Dr. Stopolloni, catedrático de antomia descritiva, histologia e embriologia da Universidade de Camerino, citado no prefácio de Mário Corbioli, na 5ª edição da LAKE)

Trata-se, realmente, de uma grande síntese de todo o saber humano, considerado do ponto de vista positivamente transcendental, em que se estudam todos os ramos do saber, sendo esclarecidos e resolvidos numerosos problemas até hoje insolúveis, com o acréscimo de novas orientações científicas, além de considerações filosóficas, religiosas, morais e sociais, a tal ponto elevadas que induzem a reverente assombro.

Ernesto Bozzano - Cientista, Filósofo.

A Grande Síntese, de Pietro Ubaldi (pdf)
http://www.4shared.com/office/CXV2Wnwl/Pietro_Ubaldi_-_02_A_Grande_Sn.html


Ficam aí as sugestões,
grande abraço,
Eronildo

Anônimo disse...

Gostei. O "O espírito da BMW" terá continuação? hehe

André disse...

Gostei mais desse que do primeiro,embora tenha achado o primeiro legal também.Algum embasamento em fatos reais nesses contos?Rs

Rodrigo Constantino disse...

Inspirado em fatos reais sim, mas com pitadas de fantasia que o tornam bem mais interessante que a realidade.

Anônimo disse...

A frase de abertura parece o cliche "it was a dark and stormy night" e o conto é a velha lenda urbana requentada.
Desculpe, mas conto é muito ruim mesmo. Sugiro tirar do seu ótimo blog.

Anônimo disse...

Rodrigo, achei o texto interessante. Mas dou uma dica: agora que você está começando a escrever seus primeiros contos, deveria experimentar inserir mensagens liberais em suas entrelinhas.
Afinal, abordar assuntos que você acredita e domina e inseri-los em pequenas histórias é uma ótima maneira de disseminar ideias que andam tão esquecidas aqui no Brasil.

Abs,

Diogo F.B.

Anônimo disse...

Não vou dizer o que achei, mas o João provavelmente pensaria de seu texto o mesmo que pensava da tal novela espírita. Sugiro, caso queira se aventurar mais nessa seara, um compêndio de estórias de almas-penadas bem melhor, se chama "O Céu e o Inferno", ditado a médiuns da Sociedade Espírita de Paris no séc XIX, e organizado por Kardec na mesma época.