1. A minha vizinha desapareceu há seis meses. No primeiro mês, estranhei a ausência: ela tinha o hábito de ficar à janela para ver quem passava --um hábito tipicamente lisboeta. Às vezes era eu: dizia "boa tarde", ela respondia com um aceno e pronto. Conversa acabada. No segundo mês, a janela continuava fechada. E no terceiro, e no quarto.
Ao quinto, reparei que o correio se acumulava --uma montanha de cartas que não cabiam mais na caixa postal. Considerando a idade, imaginei o inevitável: morreu, fez-se o funeral, eu não estava na cidade.
Acertei. Mas só parcialmente. Seis meses depois do desaparecimento, um cheiro estranho começou a empestear as escadarias do edifício. Pensou-se em tudo: cano de esgoto furado, inundação, fuga de gás. Ninguém imaginou que a mulher estava morta em casa, há seis meses. E que não houve familiar ou amigo que tenha indagado o seu destino.
Foram os bombeiros que removeram o corpo. O senhorio promete agora limpeza profunda. Ainda bem. Porque o cheiro, esse, continua: um cheiro de solidão, abandono e morte. Um outro vizinho, tapando o nariz, cruzou comigo no elevador e disse: "Esse cheiro é um castigo". Nunca escutei palavras tão sábias.
2. Deve a polícia informar o bairro quando existe um pedófilo por perto? O tema tem sido discutido em Portugal e os argumentos a favor são simples e simplórios: se existe alguém com cadastro nesse crime, as famílias têm o direito de saber para protegerem melhor as suas crianças.
O pensamento sempre me provocou horrores mil: publicitar o nome de alguém que já cumpriu pena por abuso sexual de menores é uma humilhação cruel e potencialmente perigosa, que só incita ao ódio e à violência.
A minha vizinha discorda: conhecer a ficha criminal do bairro inteiro deveria ser "um direito cívico". Depois aponta para as duas filhas --uma com 8 anos, a outra com 11-- e conclui: "Você não acha que eu tenho direito de saber?".
Olho para as meninas, que brincam na calçada. E então reparo que ambas imitam, no vestuário e no comportamento, as celebridades pop que passam na TV. Uma pose debochada e vulgar que deveria horrorizar os próprios pais.
Não horroriza. Depois da conversa sobre os pedófilos, a mãe me informa que a mais nova, com 8 anos, ganhou um concurso qualquer imitando a cantora Shakira.
Moral da história? Razão tem o filósofo Anthony O'Hear no ensaio "Plato's Children", que merecia
edição no Brasil: o mundo moderno é paradoxal. Vive aterrorizado com a pedofilia. Convive tranquilamente com a sensualização obscena da infância.
3. Sou um incurável hipocondríaco. Citando os clássicos, nada do que é doença me é estranho. Já pensei em cursar medicina e selar a minha sabedoria acumulada com um diploma formal. Mas para quê?
As aulas seriam provavelmente redundantes para quem já leu todos os manuais da especialidade, em parte por já ter padecido de todas as doenças conhecidas pelo homem desde o início dos tempos.
E, além disso, não é a ausência de um diploma que me impede de exercer a minha arte. Os meus vizinhos, sempre que tombam com uma doença qualquer, batem à porta do dr. Coutinho em busca de cura.
Nunca os desiludi. Receito como posso --oralmente-- e depois é só vê-los, felizes e aliviados, de volta ao reino dos vivos.
Claro que nem todo mundo abençoa o meu labor. Alguns pessimistas dizem que essas brincadeiras podem acabar mal. E citam o caso Michael Jackson, envenenado pelo próprio médico.
Curiosamente, não lhes ocorre que o caso Michael Jackson ilustra o meu ponto, e não o deles: os médicos podem matar. A minha ficha está limpa (acho). E, falando no caso Jackson, quem ministra anestésicos para um insone crônico dormir?
Se o pobre Michael fosse meu vizinho, eu teria aconselhado um coquetel potente de ansiolíticos que o entregariam aos braços de Morfeu.
Por outro lado, existe uma vantagem suplementar em não ser médico, caso exista negligência grave (toc, toc, toc): quem não tem licença para praticar, também não tem licença para perder. Tenho o melhor dos dois mundos: o máximo de liberdade com o mínimo de responsabilidade. E a vizinhança agradece.
2 comentários:
A TV e a Internet colocam dentro de nossas casas pessoas do outro lado do mundo, mas nos torna infinitamente distantes de quem habita a porta ao lado da nossa.
Casos como o da senhora citada serão cada vez mais frequentes, principalmente em Portugal, daqui a uns anos. Grande parte da população envelhecida e abandonada. Fica a pergunta: merecem uma atenção especial do governo, caso não tenham familiares?
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