Contardo Calligaris, Folha de SP
1) É habitual que, na infância e na adolescência, um jovem sonhe com vitórias e aplausos, sem pensar nos esforços necessários para merecê-los.
Nestes dias, deparo-me com crianças ninadas por devaneios de glória olímpica. Sem querer, corto seu barato, explicando o que é indispensável fazer para que esses sonhos se transformem numa chance real de chegar lá.
As crianças respondem que elas não têm a intenção de realizar o tal sonho: apenas querem o prazer de devanear em paz. Até aqui, tudo bem, mas os pais me acusam de estragar, além dos sonhos, o futuro dos filhos, os quais, segundo eles, para triunfar na vida, precisariam confiar cegamente em seus dotes.
O problema é que os elogios incondicionais dos pais e dos adultos não produzem "autoconfiança", mas dependência: os filhos se tornam cronicamente dependentes da aprovação dos pais e, mais tarde, dos outros. "Treinados" dessa forma, eles passam a vida se esforçando, não para alcançar o que desejam, mas para ganhar um aplauso.
Claro, muitos pais gostam que assim seja, pois adoram se sentir indispensáveis (no cinema, uma mãe enfia a cara embaixo de seu próprio assento para atender o telefone que vibrou no meio do filme e sussurrar um importantíssimo: sim, pode tomar refrigerante).
2) Meu irmão, aos dez anos, quis que todos escutássemos uma música que ele acabava de "compor". Movimentando ao acaso os dedos sobre o teclado (não tínhamos a menor educação musical), ele cantou uma letra que começava assim: sou bonito e eu o sei. Minha mãe escutou, constrangida, e, no fim, declarou que a letra era uma besteira, e a música, inexistente. Mas, se meu irmão quisesse, ele poderia estudar piano --à condição que se engajasse a se exercitar uma hora por dia. Meu irmão (desafinado como eu) desistiu disso e se tornou um médico excelente.
3) Os pais dos meus pais davam, no máximo, um beijo na testa de seus filhos. Já meus pais nos beijavam e abraçavam. Mesmo assim, não éramos o centro da vida deles, enquanto nossos filhos são facilmente o centro da nossa.
Para a geração de meus avós e de meus pais, a vida dos adultos não devia ser decidida em função do interesse das crianças, até porque o principal interesse das crianças era sua transformação em adulto (criança tem um defeito, foi-me dito uma vez por um tio: o de ser ainda só uma criança).
Lá pelos meus oito anos, eu tinha passado o domingo com meus pais, visitando parentes. A noite chegou, e eu não tinha nem começado meu dever de casa. Pedi uma nota assinada que me desculpasse. Meu pai disse: esta criança está com sono e deve trabalhar, façam um café para ele. Detestei, mas também gostei de aprender que, mesmo na infância, há coisas mais importantes do que sono e bem-estar.
4) Na pré-estreia do último "Batman", em Aurora, Colorado, um atirador feriu 58 pessoas e matou 12. Um comentador da TV norte-americana (não sei mais qual canal) disse, de uma menina assassinada, que ela era "uma vítima inocente".
Se só a menina era inocente, quer dizer que os outros 11, por serem adultos, eram culpados e mereciam os tiros?
Tudo bem, estou sendo de má-fé: o comentador queria nos enternecer e supunha, com razão, que, para a gente, perder um adulto fosse menos grave do que perder uma criança, que tem sua vida pela frente e, como se diz, ainda é "um anjo". No entanto, eu não acredito em anjos e ainda menos acredito que crianças sejam anjos. Também não sei o que é mais grave perder: a esperança de um futuro ou o patrimônio das experiências acumuladas de uma vida? Você trocaria seus bens atuais por um bilhete da Mega-Sena de sábado que vem?
5) Cuidado, não sonho com uma impossível volta ao passado. Essas notas servem para propor uma mudança preliminar na maneira de contabilizar as falhas que podem atrapalhar a vida de nossos rebentos. Explico.
A partir do fim do século 18, no Ocidente, as crianças adquiriram um valor novo e especial. Únicas continuadoras de nossas vidas, elas foram encarregadas de compensar nossos fracassos por seu sucesso e sua felicidade.
Desde essa época, em que as crianças começaram a ser amadas e cuidadas extraordinariamente, nós nos preocupamos com os efeitos nelas de uma eventual falta de amor. Agora, começo a pensar que nossa preocupação com os estragos produzidos pela falta de amor sirva, sobretudo, para evitar de encarar os estragos produzidos pelos excessos de nosso amor pelas crianças.
8 comentários:
Texto interessante, isso me faz bater na tecla do desenvolvimento da dita "auto-estima" ainda na infância, que ao estaria desenvolvendo indivíduos "sem noção" e desprovidos de "maturidade emocional".
Esse endeusamento percebe- se claramente em uma sala de aula. Hoje em dia o aluno te despreza, xinga, humilha e vc tem que... Sorrir. Se você reclama com a coordenadora, ela fala que temos que ter compreensáo pois são imaturos, se manda chamar os pais eles não aparecem pois a escola é que tem que dar jeito na criança, se aciona o conselho tutelar este por sua vez fala com a psicóloga que em uma conversa conclui que esse tipo de comportamento faz parte da atual geraçãoY. Da forma em que estamos, professor que reprovar aluno vai ser processado de assédio moral, pois humilhou o pobrezinho diante da comunidade escolar ou ser acusado processualmente de incutir o fracasso naquele ser que aparentava ser tão brilhante antes de ter se tornado nosso aluno. Estamos quase lá.
Monica Pires.
Um texto onde o autor usa sua própria experiência de vida como referencia para o todo. Uma falácia. Muitas pessoas são amadas por seus pais e nem por isso se tornam dependentes do amor destes.
ps. Meu nome é Márcio Astrachan. escrevi o coment acima 5:42 pm
graças a Deus não tenho filhos.
Bem humorado o anonymous acima! Marcio Astrachan
Excelente texto que expressa uma verdade incômoda e real. Fruto de uma sociedade perdida em valores e moral.
Para os que não gostam da verdade aí vai: educar é saber frustar. E os pais hoje em dia estão fracos nesse mister. Além de não quererem se incomodar, impondo limites, estão confundindo amor com servilismo e excesso de zelo. Passam a mão na cabeça e depois reclamam que estão sendo mal tratados e até desafiados pelos filhos.
É isso.
Nem todos os pais ficam incomodados em dar limites. Ocorre que, épocas passadas, a cultura do pai severo era o comum. Ser pai era dizer sim ou não.
A propósito, um diálogo que expressa bem esta questão: numa maternidade, um jovem se torna pai. assustado, emocionado, aproxima-se do avô e diz:vô, sou pai!! O avô,do alto de sua experiência e alguma sabedoria, abraça o neto e fala:
- meu filho, lembre-se sempre destas regrinhas, que me foram muito úteis:
1- diga sempre não e depois, se proceder,diga sim.
2- nunca ultrapasse os limites de seu bolso,nunca,salvo para educação e saúde.
O neto vira-se e pergunta: e o amor vovô,o afeto de pai? Vira-se o avô,senta na poltrona do hospital, acolhe o neto e rindo proclama: muito, muito amor e carinho, mas lembre-se de que sem os itens 1 e 2 de nada adiantara!
Márcio Astrachan
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