sexta-feira, maio 19, 2006

O Bom Selvagem



Rodrigo Constantino

A análise de uma idéia deve ser objetiva, independente de quem a profere. Caso contrário, podemos incorrer no risco de argumento ad hominem, desqualificando o autor da idéia em vez dela em si. Em certos casos, porém, faz sentido abrirmos uma exceção e julgarmos quem defendeu certa coisa, se esse estudo nos ajudar a melhor compreender sua lógica – ou a falta dela. Foi o que fez o historiador Paul Johson em Os Intelectuais, que começa a investigação sobre esse grupo de pensadores com Jean-Jacques Rousseau, considerado o primeiro dos intelectuais modernos, além de o mais influente de todos, em vários aspectos.

Rousseau popularizou o culto da natureza, identificando e apontando a artificialidade da civilização. Uma de suas idéias mais famosas, a do “homem bom” no estado natural, depois corrompido pela sociedade, já parte de uma certa contradição, já que a sociedade é justamente formada por esses mesmos “homens bons”. Isso não o impediu de idealizar o homem, imaginando como ele deveria ser, mas ignorando como ele de fato é. Rousseau passou a considerar a competitividade um pecado que destrói o senso comunitário inato ao homem, estimulando suas características mais perversas, incluindo o desejo de exploração. Ele desconfiava da propriedade privada, julgando-a a causa da criminalidade social. Marx iria explorar sem limites tal idéia depois, com conseqüências terríveis para as cobaias da experiência. E não deixa de ser curioso que as tribos à parte da civilização, os bárbaros, costumavam mostrar doses bem mais cavalares de violência uns com os outros. Foi justamente o aumento das trocas voluntárias, calcadas no direito de propriedade privada, que permitiu um progresso pacífico jamais visto antes pela humanidade.

As idéias de Rousseau eram pregadas em tom messiânico, e ele se autoproclamava o mais virtuoso dos homens. Sentia-se bastante diferente dos demais, e considerava sua situação singular, “sem precedente desde o início dos tempos”. Costumava apelar para a autocomiseração em busca de atenção e interesses, alimentando um egoísmo exagerado. Ele se dizia amigo de toda a humanidade, porém, desenvolveu forte predisposição para brigar com seres humanos em particular. Colecionou uma lista e tanto de inimigos e desafetos, vários desses considerados grandes amigos antes. Como dizia Nelson Rodrigues, “amar a humanidade é fácil; difícil é amar o próximo”.

Conscientemente ou não, ele era bastante habilidoso em se autopromover. Atraía bastante atenção para si, fosse através de suas brigas ou de suas excentricidades. Sua base de negociação com as pessoas era simples: elas davam, ele recebia. E ainda por cima justificava tal atitude afirmando que aquele que o ajudasse estaria, na verdade, fazendo um favor a si próprio, visto que ele era um ser incomparável. Já não é algo comum uma pessoa virtuosa ter que espalhar aos ventos sua infinita virtude. Mas Rousseau ia além, e chegou a falar que deveria ser estrangulado aquele que observasse sua natureza, caráter e princípios morais, e ainda assim acreditasse ser ele um homem desonesto.

Grande parte da reputação de Rousseau se deve a suas teorias sobre a educação das crianças. Creio que seria relevante então sabermos como ele realmente agia no que diz respeito ao tema. Quando sua mulher deu à luz ao primeiro filho, Rousseau a convenceu de abandoná-lo, para que “a sua honra fosse salva”. A criança foi colocada em uma trouxa e levada para o Hospital das Crianças Encontradas. Outros quatro filhos tiveram o mesmo destino depois. Rousseau passou então a transferir para o Estado a responsabilidade da paternidade, inspirado na República de Platão. Sua tentativa de se autojustificar, num comportamento claramente anormal, levaria à proposição de um Estado paternalista ao extremo. Como Paul Johson coloca, “graças a uma lógica infame, a perversidade de Rousseau como pai estava ligada a sua conseqüência ideológica futura: o Estado totalitário”.

A defesa de um contrato social, calcado na Vontade Geral à qual todos obedeceriam por convenção, transformaria indivíduos em filhos do orfanato paterno, o Estado. Rousseau confessava ter um “certo ressentimento em relação aos ricos e bem-sucedidos, como se a riqueza e felicidade deles tivessem sido alcançadas à minha custa”. A inveja parece ser outro ingrediente nos sentimentos que levaram Rousseau à defesa de um modelo de “centralismo democrático”, similar ao imposto por Lênin posteriormente, com catastróficos resultados. Caberia ao Estado o controle até mesmo do pensamento individual, tudo em prol do conjunto da comunidade. Temos em Rousseau um ícone do coletivismo perverso que transforma indivíduos em meios sacrificáveis para outros fins.

O caráter verdadeiro de Rousseau não passou totalmente despercebido por outros filósofos, apesar de sua dissimulação toda. Hume descreveu-o como um “monstro que se via como o único ser importante do universo”. Diderot considerou-o um “enganador, vaidoso como Satã, mal-agradecido, cruel, hipócrita e cheio de maldade”. Estes foram pessoas próximas e amigos dele. Para Voltaire, ele era “um poço de presunção e vileza”. Sophie d’Houdetot, quem ele mesmo considerou seu único amor, julgou-o, quando mais velha, como “repulsivo”, uma “figura patética” e um “louco interessante”. Não foram poucos os relacionamentos destruídos por Rousseau ao longo de sua vida.

A história da vida de Rousseau poderia servir apenas para nos despertar pena, pois tratava-se claramente de um ser desequilibrado e perturbado. Entretanto, idéias têm conseqüências, assim como mitos. Não obstante o absurdo de grande parte de suas idéias, o mito Rousseau exerce influência até os dias de hoje, principalmente na esquerda mais romântica. As idéias de Rousseau muito contribuíram para o surgimento de Robespierre, que o considerava o “professor da humanidade”. Os sangrentos anos de terror da Revolução Francesa merecem uma boa parcela de culpa deste pretensioso reformador.

Em vez do mundo voltar sua atenção para a verdadeira revolução, que ocorria nos Estados Unidos através das idéias infinitamente mais sensatas dos seus “pais fundadores”, eram as idéias de Rousseau que ainda despertavam fortes emoções, encontrando eco nos corações de muitos sonhadores. Para Kant, por exemplo, Rousseau tinha “uma sensibilidade espiritual de inigualável perfeição”. Parece espantoso que pessoas de tal gabarito ainda viam Rousseau desta forma idílica. A realidade é bem diferente, como Paul Johnson demonstrou muito bem. O defensor do “bom selvagem”, ao que parece, tinha muito mais de selvagem que de bom.

Um comentário:

Anônimo disse...

Leia "Tábula Rasa", de Steven Pinker, aborda inteligentemente a natureza humana, criticando posturas antigas que ainda regem alguns dos valores morais ocidentais, como a tábula rasa e o bom selvagem de Rousseau.