Rodrigo
Constantino
Até
que ponto um médico deve sacrificar sua vida pessoal para tentar salvar os
outros? Essa delicada questão surgiu automaticamente quando vi Mãos que Curam (“El Mal Ajeno”), o filme
do espanhol Oskar Santos.
Diego
é um médico acostumado a lidar com as situações mais extremas. Para suportar
esta condição, ele acabou se tornando uma pessoa fria, insensível. A fim de
evitar a dor da perda dos pacientes, ele também passou a evitar a alegria nos
casos de sucesso. Ou seja, seu envolvimento passou a ser nulo. Com isso, ele
acabou se afastando de sua mulher, enfermeira que trabalha no mesmo hospital,
de sua filha adolescente, e de seu pai idoso.
Um
encontro sinistro mudaria sua vida. O amante de uma paciente terminal o
encontra no estacionamento do hospital, e lhe faz ameaças com uma arma. Ele exige
que Diego prometa ver a paciente todos os dias. Após fazer a promessa, Diego
não lembra de nada, apesar de ouvir um disparo e da estranha sensação de ter
levado um tiro.
Terei
que estragar a surpresa de quem ainda não viu o filme para continuar. O fato é
que Diego levou mesmo um tiro na cabeça, mas milagrosamente viveu, e nenhum
médico achou indício algum de bala. É que o autor do disparo tinha um dom, ou
uma maldição, dependendo do ponto de vista. Ele podia curar as pessoas com o
toque de sua mão. E ele atirou em Diego, mas depois transferiu seu poder a ele,
matando-se em seguida.
Eis
o motivo: o dom tem uma contrapartida. Para ele salvar outras vidas, aquelas de
seus entes queridos acabam sacrificadas. Armand, o autor do disparo, assumiu
este dom quando atropelou uma menina que se jogou na frente de seu carro. Ela
buscava se livrar do mesmo dom, pois sua irmã, a que virou amante de Armand e
estava agora no hospital entre a vida e morte, estava morrendo enquanto a irmã
mais nova salvava vidas.
O
próprio Armand, ao assumir o dom, acaba deixando doente primeiro sua mulher,
uma mulher bonita com seus 40 anos que já entrou na menopausa e não pode mais
ter filho, seu grande sonho, e depois a própria amante, Sara, a irmã daquela
que ele atropelou. Desesperado ao descobrir o que se passa, decide se matar e
transferir ao médico Diego o poder da cura, mas exigindo que ele ficasse todo
dia com Sara no hospital.
Diego,
que é médico, descobre mais rápido seu dom, e passa a curar várias pessoas. Mas
em pouco tempo ele descobre também o custo disso. Seu pai, em quem ele tinha
feito exame de toque para analisar a próstata sem encontrar nada, morre um mês
depois com metástase. Sua filha adoece e está prestes a morrer. Seu casamento
acaba.
A
conclusão é evidente: para continuar salvando as outras vidas, as vidas de seus
familiares estarão em sérios riscos. Sua vida pessoal sacrificada pela cura de
estranhos. Eis o dilema que se apresenta a ele.
Tive
que contar praticamente o filme todo para chegar a este ponto. A metáfora é
óbvia. Médicos com vocação para a medicina acabam tendo que sacrificar boa
parte de suas vidas. Plantões na madrugada, ligações de emergência no meio da
noite, coração mais endurecido após conviver diretamente com tanta desgraça,
essa é a vida típica de um médico que trabalha nos casos limites entre a vida e
a morte. Salvar vidas pode custar caro em termos pessoais.
Há
uma mensagem cristã no filme: Jesus teria morrido na cruz para nos salvar. O
médico com o dom para a cura terá que se sacrificar também. Ele está disposto a
isso? Ele conseguirá carregar este fardo, esta cruz, em prol da vida de seus
pacientes? Ele suportará ver as pessoas que mais ama sofrendo enquanto tenta
colocar um fim no sofrimento alheio?
São
questões bastante complicadas. O médico que tem esta vocação tem mesmo tanta
escolha assim? Ou ele é “chamado” a este sacrifício sem muita alternativa? O
mesmo vale para outras áreas além da medicina. Será que Einstein foi um bom
marido? Alguém sabe quem foi Mileva Maric, sua esposa? Será que Einstein foi um
bom pai? Até que ponto sua contribuição para a física e o que isso representou
para a humanidade justificam uma ausência nas demais funções?
Freud
teve seis filhos. Chegou a usar uma de suas próprias filhas como “cobaia” em
terapia, o que provavelmente deixou sérias sequelas. Ele trabalhava por longas
horas em seus estudos. Até que ponto a psicanálise justifica uma paternidade
mais distante? O sacrifício familiar dos gênios que legaram ao mundo feitos
incríveis está perdoado? Mas e quanto aqueles que pagaram o preço, o
sacrifício?
O
ponto talvez seja que não há muita escolha nesses casos. Gênios costumam ser
obcecados demais. Eles não saberiam ou suportariam fazer outra coisa e abrir
mão de seus temas obsessivos. O médico com vocação pode enfrentar a mesma
angústia. Ele sabe que sua vocação terá um custo elevado para seus entes
queridos, mas será que ele pode realmente abrir mão dela?
A
vocação é um dom maravilhoso, mas ao mesmo tempo uma maldição. Impõe custos
altos demais. Não há mesmo almoço grátis. Atender ao “chamado” e dar vasão ao
dom implica grandes sacrifícios pessoais. A questão é: há escolha?
Para
Diego houve, ainda que cruel. Ele optou pelo autossacrifício, preferindo tirar a própria vida
para salvar sua filha. Transferiu para Sara o dom da cura, ou seja, outros vão
carregar o fardo “altruísta” em seu lugar. Ele não suportou ver o sacrifício de
sua filha. Ele não tinha mais como ser um bom médico.
Já
Sara abriu mão de seu filho recém-nascido, que entregou aos cuidados da viúva
de Armand, aquela que não podia ter filhos. Escolheu viver em função de seu
dom. Quem está certo? Faz sentido falar em escolha certa nestes casos?
Uma
coisa parece certa: seguir a vocação vai sempre envolver algum tipo de
sacrifício. O que é visto como um dom incrível de fora, pode muito bem se
tornar uma maldição para aquele que o possui, ou ao menos para seus familiares.
O sacrifício parece ser o outro lado da moeda da vocação.
4 comentários:
Sensacional. Em relação à medicina, seria pior para o Diego se ele trabalhasse em um hospital público no Brasil.
Off topic
Veja isto, Rodrigo. Mensagem enviada por Lula a Chávez e ao encontro do FSP que se encerrou ontem, em Caracas.
http://coturnonoturno.blogspot.com.br/2012/07/em-video-enviado-ao-foro-de-sao-paulo.html
Off topic.
E mais esse do Valter Pomar:
http://coturnonoturno.blogspot.com.br/2012/07/chavez-comanda-foro-de-sao-paulo-tendo.html
Cristo veio morrer por nós apenas no sentido de morrer inevitavelmente para entregar a sua mensagem. Já os profissionais deveriam ser mais estilo dr House.
Postar um comentário