terça-feira, abril 10, 2012

O filho pródigo

João Pereira Coutinho, Folha de SP

TODAS AS famílias têm seus motivos de vergonha: infidelidades, burlas, crimes. A família europeia tem uma vergonha maior. Chama-se Holocausto. E não é fácil engolir a matança maquinal e sistemática de milhões de seres humanos, na sua maioria judeus (porque a "solução final", convém lembrar aos amnésicos, intitulava-se "solução final para a questão judaica"), sem risco de indigestão grave.
O Holocausto é uma mancha que não sai da consciência europeia. E uma das formas de lidar com ela é invertendo os papéis dos personagens, transformando as vítimas em carrascos.
Nos últimos anos, essa metamorfose tem sido praticada com fervor pela "intelligentsia" ocidental: os judeus de hoje não são muito diferentes dos nazistas de ontem; Gaza é um novo gueto de Varsóvia; e Israel é uma espécie de Terceiro Reich no Oriente Médio.
A Europa acredita que, através dessa inversão anacrônica, a culpa do crime irá desaparecer. E chegará um dia em que os europeus poderão afirmar, de cabeça limpa e sem vergonha da sua imagem no espelho: "Eles, os judeus, não são melhores do que nós".
Eis, em resumo, o poema que Günter Grass escreveu na imprensa alemã e que levou Israel a declará-lo "persona non grata".
Superficialmente, o poema de Grass é apenas mais uma acusação à política de Tel Aviv, ao seu programa nuclear e às suas alegadas intenções de atacar o Irã. Curiosamente, as ameaças diretas do Irã a Israel, que na verdade começaram as hostilidades, não figuram na obra literária de Grass.
E não figuram porque Grass é um caso à parte: aos 17 anos, o escritor marchou com as Waffen-SS, a tropa de elite de Hitler, e serviu ao Terceiro Reich nos seus momentos finais.
Um segredo tão "vergonhoso" que o próprio só recentemente decidiu partilhá-lo com os leitores da sua autobiografia, "Descascando a Cebola".
Infelizmente, esse pecadilho de juventude, escondido a vida inteira, ainda não está ultrapassado. E só isso explica que, algures no poema, Grass se permita sentenciar que Israel é hoje a maior ameaça à paz mundial.
A frase, que poderia ter sido dita por Mahmoud Ahmadinejad ou qualquer outro antissemita do gênero, não deveria merecer grande comentário. Mas, por uma vez sem exemplo, será que Grass tem razão?
A resposta a essa pergunta poderia ser dada por um compatriota do escritor. Em 2005, o cientista político Josef Joffe escreveu para a revista "Foreign Policy" um ensaio célebre em que imaginava a história do Oriente Médio sem a existência de Israel no mapa. "Um mundo sem Israel", lia-se na capa.
E, no interior, esse mundo não era muito diferente do mundo que existe hoje. Sunitas e xiitas não seriam menos inimigos; os cristãos da Síria, do Egito ou do Iraque não estariam a ser menos perseguidos; a Arábia Saudita não teria melhores relações com os aiatolás de Teerã; Saddam não teria poupado a vida de curdos ou xiitas ou kuwaitianos; a guerra entre o Iraque e o Irã, o mais longo conflito do século 20, não teria sido evitada.
E, sobre o destino dos palestinos, a luta de "libertação" seria provavelmente dirigida contra o Egito e a Jordânia, caso esses dois países ainda dominassem Gaza e a Cisjordânia como o fizeram até 1967.
Por outras palavras: o fracasso político, econômico e cultural do Oriente Médio, esse oceano de 1 bilhão de muçulmanos, não se explica com uma gota de 5 milhões de judeus. Explica-se pelo autoritarismo, pela ignorância e pelo fanatismo dos seus líderes.
Günter Grass discorda. E, no seu poema-manifesto, limita-se a coligir os velhos temas do antissemitismo clássico: os judeus manipulam o mundo e, na sua ânsia de o dominarem, acabarão por destruí-lo. O seu líder de juventude, Adolf Hitler, não diria melhor.
Um mérito, porém, devemos reconhecer a Grass: o seu poema foi publicado nas vésperas do Pessach, um período que, durante a Idade Média e mesmo depois, servia para acusar os judeus de usarem o sangue dos gentios na feitura do pão da Páscoa. Era o pretexto ideal para as perseguições antijudaicas.
Günter Grass não é tão primitivo como os antecessores. Mas o seu sentido de "timing" é digno de um Fred Astaire.

4 comentários:

Anônimo disse...

Se os palestinos tivessem aceito o plano de partilha da ONU de 1948, muita coisa poderia estar resolvida.

Ou talvez fariam como estão fazendo com Abdulah Saleh, exigiram sua queda, ele concordou, mediante a uma imunidade. Os revoltosos aceitaram. Agora que Saleh saiu do poder, protestam querendo acabar com sua imunidade também.

Anônimo disse...

Porque um europeu de hoje teria vergonha de um ato que ele não participou? Quem fez o holocausto foram INDIVIDUOS, será que viramos coletivistas agora?

Anônimo disse...

Por que ele chama tanto a Alemanha de Europa? Será por razões econômicas?

Anônimo disse...

Bobagens...

Quando decidiram criar um país, estão aí para serem elogiados e criticados e não para ficar de mimimi com qualquer crítica dizendo ser "antissemitismo".

Israel ameaça muito mais o Irã que o contrário. Muita propaganda e informação deturpada como no factóide dizendo que o presidente do Irã dizendo que deveria "varrer Israel do mapa".

Tentar amenizar dizendo que "muçulmanos" se matam e são bárbaros também é muito engraçado. Não são menos bárbaros que os próprios europeus, que apesar de serem todos "brancos, europeus e cristãos" ainda não pararam de se matar ao longo dos séculos.

Europeu não se enxerga nessa unidade, por que exigem isso dos "muçulmanos"? Para desacreditá-los, colocarem como sendo "menos" que outros humanos?

No fundo continua sendo a religião o combustível para mover massas de idiotas uns contra os outros. E isso não é exclusividade de nenehum grupo citado.