quarta-feira, novembro 24, 2010

Individualismo, sim; Sociopatia, não!



Rodrigo Constantino

Cada indivíduo deve ser um fim em si mesmo. Nas palavras de Kant, “ninguém poderá obrigar-me a ser feliz à sua maneira”. Esta tem sido a máxima dos liberais desde então, em contraposição aos coletivistas, que colocam algum coletivo qualquer, seja raça, nação, ou classe, como a finalidade nobre, transformando indivíduos em simples meios sacrificáveis.

Uma das grandes defensoras do individualismo foi Ayn Rand, cuja novela “A Revolta de Atlas” apresenta seu arquétipo de super-homem, John Galt. A frase em destaque no rancho de Galt resume bem sua filosofia: “Juro pela minha vida e meu amor por ela que nunca vou viver em função de outro homem, nem pedir a outro homem que viva em minha função”. Sem dúvida, trata-se de um individualismo exacerbado, mas compreensível como antídoto de uma individualista radical que fora vítima da mais nefasta experiência coletivista: a União Soviética.

Na novela anterior, “A Nascente”, Rand já esboçara este perfil de herói por meio de Howard Roark. Em determinada passagem, o vilão Ellsworth Toohey, um coletivista invejoso, quer saber o que Roark pensa dele, após um de seus golpes bem-sucedidos contra Roark. Este se limita a responder: “Eu não penso em você”. A mais completa indiferença frente ao mal existente na humanidade. Eis uma meta interessante. Mas digna somente dos deuses. Tanto que a própria Ayn Rand, de carne e osso, não conseguia ser indiferente, tendo que atacar seus inimigos através de suas novelas. Na fantasia, ela fugiu para seu paraíso, um lugar onde somente os melhores – todos com os mesmos valores e crenças – viviam. Narciso acha feio o que não é espelho.

A verdade é que Aristóteles já havia percebido que o homem é um “animal social”. Quem não é impelido a estar com outros homens, dizia ele, “ou é um deus ou um bruto”. Como nenhum ser humano é perfeito, então aquele que se mostra totalmente indiferente aos homens, mesmo aos piores, só pode ser um bruto. No fundo, todos nós necessitamos do convívio social, ainda que a sociedade seja vista como uma espécie de “baile de máscaras”, com seus ritos hipócritas e regras bobas de civilidade. O equilíbrio entre o puro individualismo, que escuta somente o chamado de potência de que falava Nietzsche, e a vida gregária, parece ser o grande desafio de todos.

Como organizar a sociedade de forma a preservar o máximo possível da liberdade individual, sem matar a própria comunidade? Esta é a questão que atormenta todos os pensadores individualistas desde sempre. Para Freud, estamos fadados a experimentar o “mal-estar na cultura”, pois o homem tem que abrir mão de parte de sua liberdade para viver em sociedade. As possibilidades de satisfação individual são reduzidas neste convívio, mas a alternativa é ainda pior. Renunciar a certos impulsos, ou sublimá-los, passa a ser questão de sobrevivência do próprio indivíduo na cultura.

Freud diz: “Portanto, o ímpeto libertário se dirige contra determinadas formas e exigências da cultura ou contra a cultura em geral. Não parece que se possa levar o homem, através de algum tipo de influência, a transformar a sua natureza na de um cupim; é provável que ele sempre defenda sua pretensão à liberdade individual contra a vontade da massa”. Encontrar um equilíbrio conveniente tem sido a luta da humanidade. O individualista estará sempre fadado à frustração na sociedade. Afinal, ele não é um inseto gregário como o cupim.

Antecipando Freud em mais de um século, Adam Smith já tinha notado que mesmo o “altruísmo” tinha uma natureza egoísta. A primeira frase de seu “Teoria dos Sentimentos Morais” é: “Por mais egoísta que se suponha o homem, evidentemente há alguns princípios em sua natureza que o fazem interessar-se pela sorte de outros, e considerar a felicidade deles necessária para si mesmo, embora nada extraia disso senão o prazer de assistir a ela”.

Mas, independente da causa original do sentimento de empatia, o fato é que os seres humanos, à exceção dos psicopatas, estão inclinados a olhar para o próximo sem indiferença. Por projeção ou não, o sofrimento alheio incomoda, a felicidade pode contagiar, e a banalidade do mal choca. Humanos de carne e osso não ficam indiferentes aos Tooheys da vida, mas sim revoltados. Levar os outros em consideração, ligar para o que se passa em volta, estar preocupado com o destino de outras pessoas, nada disso é necessariamente coletivismo. O individualista pode perfeitamente demonstrar traços “altruístas”. A diferença é que seu altruísmo estará voltado para indivíduos, e não abstrações coletivas.

“É fácil amar a Humanidade”, dizia Nelson Rodrigues, completando que “o difícil é amar o próximo”. O individualista rejeita o amor por abstrações coletivas, não por outros indivíduos. Para Karl Popper, a associação que Platão fez entre individualismo e egoísmo, em seu sentido pejorativo, tinha como estratégia manchar a imagem do primeiro, de forma a defender seu coletivismo. Mesmo o Cristianismo, lembra Popper, recomenda amar “teu próximo”, não “tua tribo”. Mas a visão distorcida platônica prevaleceu, e até hoje os individualistas são erroneamente confundidos com egoístas insensíveis, ou pior, sociopatas.

Quem tratou de forma clara deste tema foi Mário Vargas Llosa, escrevendo sobre o livro “O Estrangeiro”, de Albert Camus. Seu personagem principal, Meursault, não aceita “jogar o jogo” da sociedade, repleta de hipocrisias e máscaras. Ele se recusa a ser um ator no teatro da vida. Mas, conforme lembra Vargas Llosa, “não existe sociedade, quer dizer, convivência, sem um consenso dos seres que a integram, de respeito a certos ritos ou formas que devem ser respeitadas por todos”. Sem isso, haveria apenas uma “selva de bípedes libérrimos onde somente sobrevivem os mais fortes”. Meursalt pode não saber, mas ele também interpreta um papel: o de “ser livre ao extremo, indiferente às formas entronizadas da sociabilidade”.

Mário Vargas Llosa acredita que “no fundo de todos nós existe um escravo nostálgico, um prisioneiro que queria ser tão espontâneo, franco e anti-social” como o personagem de Camus. Mas mesmo os espíritos mais livres reconhecem que há um preço a se pagar pela cultura, qual seja, o de renúncia à soberania absoluta, aos impulsos que poderiam colocar em risco a vida em sociedade. Se todos fossem puro instinto, até a instituição da família estaria em perigo, e com ela os próprios indivíduos.

O parecer de Vargas Llosa não é favorável ao tipo “libertário” representado por Meursault. Em sua opinião, o estrangeiro de Camus vive num mundo desumanizado, e mostra a “imagem deprimente de um homem a quem a liberdade não engrandece moral ou culturalmente; talvez, destrua sua espiritualidade e o prive de solidariedade, de entusiasmo, de ambição, e o torne passivo, rotineiro e instintivo, num grau pouco menos que animal”. Em suma, um bruto no sentido aristotélico.

O individualista deve sim colocar sua própria felicidade no topo da hierarquia de valores, e não deve levar tanto em conta o que os outros pensam o tempo todo dele. Ele tem o direito de existir para a própria felicidade. Aquele que vive sempre preocupado com tudo que dizem ou pensam dele não passa de um escravo. Mas isso não é sinônimo de total aversão à vida em comunidade, ainda que esta exija, em contrapartida, o convívio com suas infindáveis imperfeições e limites à própria liberdade plena. Esta só existe mesmo nas utopias.

15 comentários:

Unknown disse...

Parabéns, como sempre,ótimos texto!!

Anônimo disse...

Se ouvesse a cadeira de Antropologia Criminal, este campo de estudos estaria bastante motivado, tendo em vista que com o desaparecimento dos valores morais e éticos foram elevados à categoria de 'excelência', os que deveriam servir de objeto de análise nesta área científica: os sociopatas e os de instintos perversos.

ntsr disse...

'Na fantasia, ela fugiu para seu paraíso, um lugar onde somente os melhores – todos com os mesmos valores e crenças – viviam.'

É o unico jeito de um dia existir uma anarquia capitalista no mundo

Sergio Oliveira Jr. disse...

Todo ser humano parece que necessita, de uma forma natural, a aprovação dos seus pares. O individualismo exacerbado de Ayn Rand, da qual sou fã, não leva em consideração esse aspecto. Os extremos são utopias. Acho que ninguém é totalmente mau e ninguém é totalmente bom. Ainda assim o mau e o bem existem. Um mundo em que "cada um por si e Deus por todos" é irreal e provavelmente indesejável, mas o grande desafio é conciliar isso com o não-sacrifício. O problema é que muitos, se não a maioria, caem no extremo do mal, do coletivismo e do sacrifício a qualquer causa menos a sua.

Anônimo disse...

Misturar Immanuel Kant e Ayn Rand em um mesmo artigo sobre "individualismo" deixaria a última furiosa.

Citar o personagem Howard Roark fora de contexto e ainda interpretar a passagem de forma tosca, mais ainda. Toohey não representa "o mal existente na humanidade", e sim uma determinada forma de atuação do mal (ele é um intelectual mal intencionado), que diante de Roark é impotente.

Artigo fraco, apoiado sobre um emaranhado de citações e interpretações mal articuladas. Fica parecendo que você leu muito e perdeu o fio da meada.

cleber disse...

Olá Rodrigo,

Eu gostei muito do tema de seu artigo. Apenas acho que você pecou, como o anônimo observou acima, em recorrer a muitas citações corroborando muitas idéias envolvendo aspectos distintos do tema individualismo vs comunidade. Esse aglomerado de idéias tornou-o confuso.

Duas abordagens que poderiam ser adotadas para tornar mais clara a apresentação da questão e o seu posicionamento sobre ela seriam as seguintes:
1- dividir a questão em diversos artigos cadal analisando um determinado aspecto (p.ex.: cultural, social, econômico, etc)

2- apresentar o desernvolvimento histórico da questão em ordem cronológica, dando ênfase aos principais conceitos, posições e argumentos envolvidos no tema.

Creio que seria uma série de artigos que lhe renderia um novo e bom livro.

Por favor, espero que aceite essa crítica como uma opinião construtiva para melhorar ainda mais o seu blog.

Abraços,

Cleber

Rodrigo Constantino disse...

Meu objetivo principal, neste ousado artigo (pela pretensão do tema), foi mostrar que o individualismo não é sinônimo de desprezo ou indiferença ao próximo, que o individualismo pode andar de mãos dadas com o altruísmo, contanto que este não seja por abstratos coletivos. Muitos confundem isso, e associam individualistas a egoístas insensíveis. Quis mostrar também que todos, especialmente os espíritos mais livres, possuem dentro de si este egoísmo mais "bruto", mais instintivo, mas que a vida em sociedade demanda concessões.

O Federalista disse...

Texto sensacional. O individualismo guia todo o sistema de liberdades, mas não é uma fronteira intransponível, pois em determinados momentos o "próximo" será tão importante quanto a si próprio (relação pai-filho, por exemplo). O altruísmo coletivista, sempre voltado para um setor social dividido e estimulado artificialmente a se rebelar é lamentável. Os coletivistas sempre se alçaram à condição de caridosos e benevolentes, em clara pretensão de se colocarem acima dos oprimidos, para guiá-los rumo à felicidade, em um "complexo de Moisés" que beira a vergonha.

Unknown disse...

Com este artigo dá para fazer uma comparação entre a esquerda e o individualismo. Pegando carona na famosa frase de Nelson Rodrigues, os esquerdistas amam a humanidade em detrimento da liberdade do próximo. Já os individualistas amam uma maior liberdade para si e para os outros, o que representa uma sociedade cujos valores humanos e suas liberdades essenciais são respeitadas.

É muito fácil ser coletivista, morrendo de amores por uma ideia tão abstrata. O difícil para muitos é respeitar as diferenças entre as pessoas em uma convivência coletiva.

Roberto Rachewsky disse...

Altruismo, no entendimento de Ayn Rand, é enaltecer, como se virtude fosse, o auto-sacrifício. É, sem juizo de valor, sem distinção, colocar o interesse alheio acima do seu próprio interesse. Diferentemente disto, o indivíduo que se entrega à alguém que tem, para ele, valor, não está se sacrificando. As sociedades que enaltecem o altruismo tendem ao arbítrio e à coerção.

Roberto Rachewsky disse...

Sim, podemos ser benevolentes sem sermos altruistas. A contribuição voluntária àqueles que para nós tem algum valor é uma virtude. A troca espontânea entre total desconhecidos é a maior demonstração de virtude que poderíamos encontrar. A enaltação do espírito altruista é o caminho daqueles que, sob o pretexto de fazerem o bem, espalham o mal.

Aprendiz disse...

Rodrigo

O tema é importantíssimo. Alguns acharam o texto mal articulado, mas penso que o problema foi que você tentou abarcar muita coisa num texto curto. Discordo de algumas coisas, mas sua ênfase na liberdade é corretíssima.

O altruísmo é uma face visível do amor, e portanto é uma virtude individual. Não há problema nenhum, pelo contrário, em por os interesses de uma outra pessoa a frente dos seus. É o que fazem, por exemplo, os pais, muitos amigos também são leais até a morte, muitas pessoas dedicam suas vidas a ajudar pessoas qe sofrem (orfãos, por exemplo).

A questão dos libertários com os coletivistas deveria ter outro foco. Os coletivistas não defendem o verdadeiro altruísmo, apenas usam chamtagem emocional para escravizar, destruir, roubar e matar as pessoas. O verdadeiro altruísmo, sendo uma relação de pessoa a pessoa, foca o bem da pessoa que é objeto dele. Mas buscar o bem de alguém exige conhece-lo. Sem envolvimento pessoal, o amor é uma farsa. Na sua acepção mais correta, o amor SÓ PODE SER FOCADO NO PRÓXIMO, nunca no grupo.

As idéias esquerdistas não deveriam ser "debatidas", deveriam ser DESMASCARADAS. O verdadeiro sentimento dos socialistas pelo próximo, e demonstrado nos assassinatos, tortura, prisões, escravizações.

Quem ama liberta.

Julio Cesar disse...

Desde os primórdios da civilização, o homem procura viver em coletividade, se assim não fosse, como venceriam as doenças, os animais, as catástrofes. O texto traz algumas citações, pretendendo ser erudito, quando a rigor, foi uma verdeira miscelania, principalmente quando cita Kant totalmente descontextualizado.

Anônimo disse...

Os argumentos errados em prol de uma posição são sempre mais onerosos que o silêncio puro e simples.

Nilma disse...

Eu gostei muito do seu artigo. Meu deu oportunidade de pesquisar vários pontos que eu desconhecia ou não lembrava. Obrigada.