sábado, maio 14, 2011

A libertação de um crente



Rodrigo Constantino

“Acautelai-vos, porém, dos falsos profetas, que vêm até vós vestidos como ovelhas, mas, interiormente, são lobos devoradores.” (Mateus 7:15)

Um relato leve e divertido, porém corajoso e com momentos tocantes. Assim é Ímpio: o evangelho de um ateu, do jornalista Fábio Marton. O autor mostra ser espirituoso já no seu currículo, onde diz: “Depois de ser evangélico, foi esquerdista, metaleiro, nacionalista, niilista, dark, punk e anarco-capitalista”, justificando que “é uma vida muito longa para se persistir em só uma idéia errada”. E, de fato, seu livro demonstra como qualquer tipo de seita fanática pode destruir a liberdade ou mesmo uma vida.

Nascido em família humilde de crentes, incluindo um avô pastor, Fábio consegue, por meio de suas próprias reflexões, libertar-se da doutrinação imposta desde cedo em sua casa. Sua infância foi marcada pelos dogmas pentecostais que limitaram absurdamente suas escolhas e, pior ainda, incutiram sentimento de culpa somente por desejar fazer aquilo que todos as outras pessoas de sua idade faziam. Ser “normal”, com amigos e namoradas, gostar de rock e ir a festas eram coisas complicadas para o “pastorzinho” diferente, que desde muito cedo aprendera que tudo aquilo era obra do diabo.

O livro começa com uma citação de H.L. Mencken, um dos ateus mais iconoclastas e irreverentes: “Devemos respeitar a religião de um sujeito, mas apenas no mesmo sentido e até o limite em que respeitamos sua teoria de que sua mulher é bonita e seus filhos são espertos”. A passagem quer dizer que não somos obrigados a tratar como tema sagrado aquilo que é sagrado apenas para a subjetividade do indivíduo. Claro que seria uma ofensa desnecessária ridicularizar a crença alheia sem mais nem menos, mas igualmente ofensivo – e autoritário – , é querer obrigar os outros a encarar como Verdade absoluta e objetiva aquilo que não passa de uma opinião particular sem qualquer embasamento científico.

Na introdução, Fábio assume ser um ateu, mas logo depois explica que todos somos, de fato, ateus. Ao menos em relação a todas as divindades já inventadas pelos homens na história, que são abundantes. O cristão que não acredita em Zeus, Osíris, Ganesh, Amaterasu e Tupã é um ateu quando se trata destes deuses. O ateu vai apenas um passo além, como Fábio coloca: “Entre mim e o cristão, há apenas um deus a mais do qual duvido”. Na verdade, não se pode negar algo que não existe, e o ônus da prova cabe aos crentes. Ninguém assume que Saci Pererê existe só porque ninguém prova o contrário.

Fábio transitou por várias das igrejas protestantes durante sua vida, e fica claro como há rivalidade entre elas. Uma disputa para ser mais “cristã” que a outra, todas em busca do monopólio da fé “correta”, assumindo até mesmo que crentes de outras seitas vão para o Inferno. Talvez seja aquilo que Freud chamou de “narcisismo das pequenas diferenças”, ou então o fato de que o mercado das crenças é bastante concorrido, e cada igreja disputa a mesma alma, o mesmo perfil de ovelha para pastorear (normalmente cobrando uma tarifa elevada pela salvação eterna, com direito a boleto bancário e tudo).

Algo que chama a atenção no livro é a ansiosa busca pelo fim do mundo. Os crentes chegam a desejar que isso aconteça, e muitos oram com este intuito. Logicamente falando, até faz sentido: se esta vida é uma provação constante da fé, e após a morte os crentes finalmente terão a recompensa eterna por seu sacrifício, que louco não gostaria de ir logo pegar este fantástico prêmio? Mas, no fundo, penso que motivadores mais emocionais estão por trás desta torcida pelo Apocalipse: a falta de amor pela própria vida, com pitadas fortes de inveja daqueles que parecem mais felizes (o que não é difícil, já que aos crentes são negados inúmeros prazeres da vida). Tanto que os crentes que procuram sinais do fim do mundo iminente sempre se regozijam com a crença de que agora, finalmente, os incrédulos vão pagar por seus pecados, enquanto os justos serão arrebatados, transportados para o Paraíso.

A curiosidade foi despertada desde cedo em Fábio, que gostava de questionar. Ele não sabia ainda que esta inclinação à ciência entrava em conflito com a igreja, até por uma questão lógica: “Por que Deus haveria de fazer as pessoas espertas se seria um problema elas serem espertas?” Diante de “verdades” absolutas, Fábio começava a fazer perguntas incômodas, e isso era visto, até por ele, como obra do diabo, que tentava desviar uma ovelha do rebanho. Quando uma dúvida se instalava em sua cabeça, a reação automática era encará-la como tentação do diabo. O problema é que a matraca incrédula em seu cérebro começava a ter idéias demais pra serem ignoradas.

Muitas contradições começaram a ficar aparentes, e Fábio foi capaz de compreender “milagres” por uma ótica bem mais prosaica. O poder de sugestão, especialmente sobre aquele que deseja muito acreditar, jamais pode ser subestimado. Pessoas buscam desesperadamente confirmação para suas teorias prévias, ignorando tudo aquilo que vai contra suas crenças estabelecidas. Pessoas ingênuas em crise, então, costumam ser um prato cheio para abutres de plantão. Quando entendeu isso, pareceu a Fábio que o “demônio” que surge em cultos era apenas autossugestão alimentada pela técnica da hipnose. Para quem quiser pesquisar mais sobre isso, recomendo os vídeos de Derren Brown no YouTube.

Começou a incomodar Fábio a escolha altamente seletiva das passagens bíblicas também. Ele alega que nunca entendeu isso de “as pessoas escolherem que leis seguir do Velho Testamento como quem pinça o frango à passarinho e deixa o jiló de lado num bufê”. Realmente, não existe um único crente que siga literalmente a Bíblia, até porque se trata de um livro muitas vezes contraditório, ambíguo ou radical e ultrapassado. Um machista, por exemplo, pode encontrar boas passagens bíblicas para justificar sua misógina vontade de manter a mulher submissa. Uma vez que as “leis” do livro “sagrado”, que já foram escolhidas por homens no passado, devem ainda assim passar por novo filtro moderno, quem decide quais valem e quais devem ser descartadas? Com qual critério?

O que Fábio começou a notar nos grupos de crentes que participou era a absoluta dependência da igreja. Alguns mais radicais chegavam a fazer uma analogia direta, afirmando que Jesus era sua heroína. Eram grupos fechados, sem interesses fora daquilo, com desconfiança ou preconceito contra todos aqueles que não faziam parte da seita. Enfim, o típico sentimento tribal que cria o “nós contra eles”. Como Fábio argumenta, é “saudável ter um grupo de amigos com interesses em comum e ser ajudado por eles em situações de necessidade”, mas “viver num círculo encapsulado contra o mundo exterior, acusado de ser hostil e impuro, isso não me parece uma boa coisa”.

Algumas pessoas podem concordar com isso tudo, mas ainda assim alegar que o conforto trazido pela fé cega compensa. O problema é o preço deste falso conforto, não só o monetário, mas principalmente o de outro tipo. No caso de Fábio, ele foi alto demais. Uma adolescência e uma juventude vividas com baixa autoestima, sob o sentimento constante de culpa somente por desejar ser normal. Um garoto esperto que gostava de pensar e fazer perguntas, mas encontrando na religião um obstáculo permanente. Finalmente, Fábio conseguiu se libertar: “Não posso aceitar um Deus que quer que eu tenha ódio de minha própria mente”. Ele não era mais uma ovelha obediente, até porque ovelha é um bicho bem burro: “basta um cachorro para segurar duzentas ovelhas”. Quando Fábio chegou a esta conclusão, viu-se livre, em uma vida que voltava a fazer algum sentido, e que ele podia agora amar.

19 comentários:

fejuncor disse...

Mataram um homem e o penduraram numa cruz para, com isso, tentarem me dizer alguma coisa? São loucos?

Anônimo disse...

Pelo que li, Javé não estraçalhou somente sodomitas e gomorrinos. Matou egípcios, amalequitas...

pitombo disse...

Sem diabo e sem problemas, não há religião e nem estado.

Anônimo disse...

A Bíblia também diz que o Sol parou por uma hora.

Anônimo disse...

Os livros religiosos revelam, verdadeiramente, como o homem É. Também encontro verdades sobre o homem quando leio Tio Patinhas, Asterix ou os Simpsons. A tragédia grega contém verdades sobre os homens. Shakespeare, Dostoievski, Chico Anisio contém verdades sobre os homens. A Bíblia, porém, tem centenas de fatos inverossímeis, delirantes, além de ser um livro incitador de violência e sem nenhuma consciência ecológica.

Col. Hans Landa disse...

Sabem por que muitos evangélicos procuram prosperidade financeira, se o que importa é a salvação: Porque é isso que a igreja oferece na propaganda. Se fosse oferecido sabedoria, estariam lá os interessados em sabedoria - e seriam bem menos.

CorruPTocracia: Roubar é poder! disse...

Será que existe um órgão como um "Conselho Regional de Pastores"?

Leo SKHM disse...

Todos concordam que a bíblia foi escrita por humanos. Mas os crentes de todas as vertentes cristãs acreditam que ela foi influenciada diretamente por deus enquanto os ateus acreditam que ela foi escrita sem nenhuma influência divina. As passagens preconceituosas e mais radicais derivam deste fato. Elas espelham os preconceitos dos homens daquela época e não as palavras de um deus inventado pelos homens. Um livro que se pretende moral e foi escrito por homens séculos atrás só podia ser preconceituoso de várias formas possíveis e em muitos casos ser repulsivo.

Assim como a ovelha, a maioria da humanidade é fraca e medrosa. Muitos preferem o fácil e enganoso conforto a encarar a realidade. Por causa disto eu acredito que os crentes sempre serão a maioria. O rebanho nunca será pequeno, mas sempre será uma potencial vítima de lobos manipuladores empunhando uma bíblia ou outro livro “sagrado”.

Ainda bem que no Ocidente existe a liberdade religiosa e não acreditar em deus também está incluso nesta liberdade. O que eu lastimo é o fato de muitas pessoas ainda morrerem por causa da religião em muitos lugares do mundo. Como por exemplo, os perseguidos (cristãos, judeus, budistas e ateus) em países teocráticos islâmicos, as vítimas de guerras cujo um dos motivos é a religião e as vítimas do terrorismo religioso fundamentalista.

O céu e o inferno existem, mas apenas de forma metafórica.

Anônimo disse...

meu amigo RODRIGO, o que há de mal em ter fé? Deveremos ser contra aqueles que USAM os ingenuos para enriquecimento pessoal, como o bispo safado e maçom EDIR MACEDO
Quanto À fé religiosa, sem fanatismo, a fé da vovó, permita que ela tenha seu terço, é o mínimo que possamos fazer por ela

Sergio Filho disse...

"...Muitos preferem o fácil e enganoso conforto a encarar a realidade." Cara, eu nunca conheci um cristão genuíno de vida fácil. Ou como o "famoso" Hitchens falou né:

"A palestina bíblica não se tinha muito o que fazer..."

Subentende-se que os cristãos primitivos punham suas vidas em risco pois não tinham nada melhor pra fazer... Quanto à questão do "machismo" na bíblia, vale salientar que todas as lideranças masculinas da bíblia denotam natureza sacrificial. Cristo sacrificou-se pela sua igreja (ou corpo de membros), tanto quanto o marido deve amar a esposa com um amor que é capaz de sacrificar a própria vida. Seguindo a questão das igrejas, dízimos e ofertas são e devem ser dadas de vontade genuína... Aquele que dizima ou oferta porque o pastor fala que vai ser amaldiçoado está seguindo um falso profeta. Certamente a crença em Jesus Cristo já adicionou mais a humanidade do que um ateísmo relativista de moral subjetiva.

Anônimo disse...

Essa trajetória de Fábio Marton, do evangelismo pentecostal ao ateísmo é bem parecida com a minha, até em muitos detalhes das etapas vivenciadas .
Realmente é muito difícil se libertar de crenças que são enraizadas desde a infância. Para mim, esse processo de desconversão teve início apenas a partir de um grave acidente que sofri, que quase me matou, e que considerei como um aviso de Deus para me tornar mais devoto. Passei, então, a estudar a Bíblia, base da minha crença religiosa, com mais afinco. Mas, ao assim fazer, fui percebendo cada vez mais que a mesma está repleta de contradições, erros, absurdos, omissões, intercalações textuais, etc. Ou seja, o resultado final foi exatamente o oposto do pretendido.

Paultruc

rodrigo disse...

Na verdade acredito que a humanidade evolui mas as pessoas nem sempre evoluem no tocante ao quê recorrer para entender e internalizar o que é Deus, Cristo, religião, amor ao próximo. A Bíblia está cheia de erros? Contem uma novidade. Os crentes (no sentido corriqueiro da palavra) são muitas vezes irracionais e contraditórios? Contem outra. Eu sugeriria a este tal de Fábio conhecer uma doutrina cujo codificador, ao se referir a ela, afirmou: se o Espiritismo um dia divergir da Ciência, fiquem com a Ciência. Kardec era um cientista, e podem ser encontradas teses (inclusive no Brasil, USP por exemplo, e não estou falando de teses de teologia, mas de física), versando sobre os assuntos que ele abordou em suas obras. Se o Fábio quiser questionar isso estará fazendo um favor a sociedade. Se o Fábio quiser atacar obras de dois mil anos, vai ficar muito fácil prá ele, afinal no curso de todo esse tempo houve um monte de deturpações (causadas pelo homo sapiens), e houve uma grande evolução intelectual da humanidade, para a qual outros instrumentos de promoção de entendimento nessa área deveriam (e foram) utilizados (doutrinas mais modernas).

Anônimo disse...

rodrigo, só os espiritas acham que o que kardek fazia era ciência.

E mesmo que ele tenha teses de física, isso não significa que o espiritismo seja científico.É uma coisa que não tem nenhuma ligação lógica com a outra.Como uma fulana por aqui falando que o psicanalista não sei quem era cientista, e POR ISSO a psicanálise usava o método científico.

rodrigo disse...

Os artigos de que falo não são do Kardec, são de astrofísicos da USP (não sei se são espiritas, mas, conhecendo um pouco da doutrina e um pouco de astrofísica, isso pouco me importa). Se vc tbém quiser questionar tais artigos (posso mandar os links a vc), ou qualquer obra espírita, como disse estará fazendo algo melhor, penso, do que atacar obras da época romana, e provavelmente estará fazendo algo útil, afinal, não devemos acreditar que tudo codificado pelo Kardec está completamente correto. Se bater de frente com a Ciência, ele disse o que fazer. Ademais, no futuro, quem sabe não haverá uma doutrina ainda mais apropriada para uma humanidade menos ignorante que nós?

Mauricio Mendes Correa disse...

Constantino...apenas curiosidade...o que o Mises achava da religiao???

Rodrigo Constantino disse...

Que não se misturava com liberalismo, pois era coisa da esfera pessoal que tratava de outro mundo além do nosso. Mas era basicamente um agnóstico, tal como Hayek.

Anônimo disse...

De certa forma os agnósticos são mais racionais que os ateus.
Era uma vez uma casa, quem entra nunca sai pra contar o que tem nela.Do lado de fora uns falam que lá tem um cachorro, outros falam que tem um gato, outros falam que não tem nada, só um vácuo.Nenhum tem provas de nada, então porque diabos a atitude mais lógica é concordar com o cara do nada?

rodrigo disse...

Anonymous, você que está dizendo que ninguém nunca sai dessa casa para dizer o que tem nela! (rsrs). O Constantino foi certeiro quando disse que o Espiritismo não é uma ciência - a propósito, nem eu nem nenhum espírita que eu conheço disse o contrário - no entanto seu codificador foi um cientista "que se dedicou à estruturação de uma proposta de compreensão da realidade baseada na necessidade de integração entre os conhecimentos científico, filosófico e moral, com o objetivo de lançar sobre o real um olhar que não negligenciasse nem o imperativo da investigação empírica na construção do conhecimento, nem a dimensão espiritual e interior do Homem". Eu particularmente prefiro esse posicionamento à uma desistência Huxleyana...Mesmo porque existem evidências inegáveis das proposições kardecistas, quer seja na forma de manifestações físicas (mensuradas até pela NASA), quer seja pela simultaneidade de relatos mediúnicos "com concordância entre as revelações realizadas espontaneamente (médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares do mundo)", quer seja pela descrição física do espaço no Livro dos Espíritos discutida por até por astrofísicos... (obs: sou católico, mas acredito que posso me considerar espírita também, principalmente depois de ouvir alguns relatos bem consistentes de seres que saíram dessa casa...até o FBI se vale desses seres em certas ocasiões para solucionar alguns casos!)

Ana Celia disse...

Quero muito ler este livro.