quarta-feira, outubro 03, 2012

A compaixão não basta

Marcelo Coelho, Folha de SP


O público ri bastante em “Intocáveis”, filme de Eric Toledano e Olivier Nakache, em cartaz há algum tempo em São Paulo. É bem engraçada, sem dúvida, a sem-cerimônia, a mistura quase brasileira de pureza e malandragem revelada pelo personagem Driss (Omar Sy).
Ele é um imigrante africano com passagem pela polícia, que encontra emprego como cuidador do milionário Philippe (François Cluzet), tetraplégico depois de um acidente.
Muitas cenas se constroem a partir da ignorância quase selvagem, quase “rousseauniana”, de Driss. Ele se espanta, por exemplo, com o preço altíssimo de uma obra de arte que lhe parece apenas uma série de respingos espalhados sobre a tela.
Em vários momentos, o filme recorre a um mesmo expediente cômico: Driss fecha questão sobre alguma tarefa que não irá desempenhar em hipótese nenhuma, para logo em seguida, depois de um corte, a plateia se divertir assistindo ao enfermeiro fazer exatamente aquilo que lhe tinha sido ordenado.
Imagino que, depois de algum tempo, a maior parte das tiradas do personagem tenham sido previstas pelos espectadores. Isso não importa muito, porque o riso é menos provocado pela surpresa do que pela simpatia.
A vontade de rir nasce do fato de que o próprio ator ri com uma facilidade maravilhosa, pelos motivos mais comuns. Driss tem um pouco do caipira, à la Mazzaropi, que fica de queixo caído ao ver o luxo de um banheiro e morre de medo de avião.
Para sorte dos espectadores, o tetraplégico de quem ele deve cuidar reduz a poucos minutos seus instantes de agonia e depressão. Prefere divertir-se com o empregado, assustando-o quando convém, enganando-o outras vezes, numa espécie de jogo intelectual.
Os dois, neste filme que é feito de pura felicidade e vida, saem ganhando muito do encontro. Baseando-se numa história real, ainda assim “Intocáveis” parece, não digo totalmente falso, mas um bocado artificial e construído.
Como em qualquer roteiro de “Sessão da Tarde”, surgem pequenas dificuldades no meio do entrecho, apenas para que, superadas, o fim do filme seja especialmente satisfatório.
O encontro do bom selvagem e do aristocrata em fim de linha poderia ser mais caricato, em todo caso, se os diretores não soubessem que o clichê precisa ser maquiado para um público que já não é tão ingênuo assim.
Desse modo, o bom selvagem é também um sujeito de maus antecedentes, e seria preciso um ricaço muito especial para admiti-lo em sua própria mansão. Por isso mesmo, Philippe surge como alguém que gosta de se arriscar —tanto que se acidentou num voo de parapente. Prefere a emoção, a loucura e o imprevisto à rotina médica em que está encarcerado.
Nada disso, a rigor, fugiria das fórmulas mais batidas do cinema “independente”. É o chamado filme “humano”, com personagens em situações muito raras de acontecer, por trás de cuja estranheza sempre estarão pulsando sentimentos essenciais e bons.
Houve um momento em “Intocáveis”, contudo, em que uma verdade, a meu ver, mais profunda, se deixa entrever.
É quando Philippe justifica, a um amigo, a escolha imprudente que fez. De todos os funcionários que cuidaram dele, Driss era o único, explica, que não lhe dirigia olhares de compaixão.
De fato, Driss tem sempre na ponta da língua alguma piada incorreta sobre tetraplégicos e chega a fazer experiências “científicas” com a insensibilidade nas pernas do seu paciente.
Falando sobre a velhice e a doença, Baudelaire evoca “o horror secreto” que existe no olhar dos que se dedicam aos inválidos. Pior ainda se lermos esse horror nos olhos de alguém que, no passado, desejáramos com avidez.
“Intocáveis” talvez traga com isso uma lição contra o “politicamente correto” e também contra os que o consideram uma hipocrisia.
Não é num espírito de compaixão (pelos pobres, pelos doentes) que surge um relacionamento humano autêntico. Nem mesmo num espírito de “respeito” convencional. Certamente, nada se pode esperar do contrário disso —do desrespeito, do desprezo, do preconceito.
O caminho, mais difícil, não nasce da superação forçada de uma assimetria. E sim da aproximação de duas misérias desiguais, de duas pobrezas diferentes, de duas dores incompatíveis, próprias a cada um, e que, sem trocarem de lugar, pertencem ao fundamento geral (e superável) da fragilidade humana.

Um comentário:

samuel disse...

Parece ser este filme o antípoda de "driving miss Dayse"